De Jânio a Bolsonaro
por Jorge Figueiredo
Ideologicamente, entre a classe dominante brasileira e a de Porto Rico
não existe diferença alguma. O tamanho respectivo dos dois
países em nada altera o modo de pensamento destas classes dominantes,
que são gémeas perfeitas. A máxima aspiração
de cada uma delas é ser sócia menor das transnacionais, reverter
à situação colonial, alinhar-se incondicionalmente com o
império e saquear os seus povos e as riquezas naturais dos seus
países.
A ambição não é realmente o que caracteriza estas
burguesias subdesenvolvidas. É isso que as distingue de classes
dominantes de países asiáticos, as quais aspiram a muito mais.
É por isso que hoje o Brasil não tem uma indústria
automobilística própria, ao contrário da Coreia do Sul que
começou depois. A falta de ambição da classe dominante
brasileira vem de longa data. Quando Getúlio Vargas ousou lançar
a primeira siderurgia do Brasil convidou a burguesia paulista a investir no
projecto, mas esta recusou-se. Assim, a siderurgia de Volta Redonda nasceu como
empresa estatal não por uma opção ideológica do
governo de então e sim porque era a única maneira de
fazê-la. Décadas depois o aço ali produzido serviu de base
para a instalação de fábricas das transnacionais do
automóvel, pois a burguesia local não se dispôs a tal
empreendimento (e a antiga empresa estatal que fabricava camiões, os
"FNM", foi encerrada para dar mercado às transnacionais).
É preciso conhecer a história económica do Brasil para
entender os tempos de hoje. Nada mudou. É assim que agora acontecem
paradoxos como este de o actual presidente da Federação das
Indústrias do Estado de S. Paulo (FIESP) apoiar alegremente a
desindustrialização
do Brasil (já mensurável ao nível estatístico).
Trata-se de uma burguesia que não tem um projecto de país, com
mentalidade de curto prazo e cuja máxima ambição é
sacar o máximo e o mais depressa possível. A
acumulação primitiva proporcionada pela exportação
de produtos primários (minérios em bruto, soja, etc) não
é investida no desenvolvimento do próprio país ela
vai engordar o capital financeiro e contas polpudas em off-shores.
Os representantes políticos de uma classe dominante assim têm
necessariamente de ser gente muito especial. Trata-se de indivíduos que
devem ter habilidade suficiente para enganar as massas a fim de obterem os
votos necessários para subirem ao poleiro. Ao mesmo tempo, têm de
ser muito cuidadosos para não ferirem os interesses daqueles que os
apoiam e financiam. Por outras palavras, têm de ser demagogos q.b. Como
não têm um projecto de país e nem podem revelar as suas
verdadeiras intenções, habitualmente embrulham o seu discurso
numa retórica moralista.
É por isso que o Brasil tem tradição de eleger gente
desequilibrada. Basta pensar no fenómeno Jânio Quadros, um
indivíduo tresloucado mas que tinha um dom especial para captar o apoio
de massas com cultura política baixíssima. Tais indivíduos
correm atrás do poder pelo poder e são capazes, para isso, de
prometer e fazer seja o que for. A retórica pseudo-ética cai bem
nas camadas médias e em massas amorfas, sem consciência de classe.
A classe dominante sabe perfeitamente que tudo o que eles dizem é
retórica, mas apoia-os porque é funcional aos seus interesses.
Para ela, o horror seria permitir que o povo interviesse como sujeito da
história. Por isso, considera desejável que este seja entretido
com historietas contra a "corrupção" e anestesia-o com
mass media nivelados pelo mínimo denominador comum. As ilusões
devem ser mantidas a todo o custo entre os que nada entendem da sociedade em
que vivem/sobrevivem.
A história do Brasil tem muitos exemplos desse jaez, tanto na
presidência da república como em governos de estados e de
municípios. Os exemplos presidenciais vão desde Jânio
Quadros o homem que usava como símbolo uma vassoura com a qual
supostamente iria varrer a corrupção do Brasil até
o actual energúmeno que emporcalha a presidência do Brasil,
Messias Bolsonaro. O primeiro, com grande sentido publicitário, fazia e
dizia coisas caricatas, ridículas e estapafúrdias, mas elas
serviam de diversionismo para manter a discussão política
pública afastada do fundamental. O segundo faz igualmente coisas do
mesmo jaez e toda a gente, os media inclusive, põe-se a falar das suas
estupidezes quase diárias enquanto avança o desmonte do Estado
brasileiro. A privatização selvagem da Previdência, a
privatização das empresas estatais mais importantes (como as do
grupo Petrobrás), desflorestação da Amazónia para
benefício dos pecuaristas, a destruição do ensino
público pelo sufoco orçamental, o sucateamento da
indústria privada brasileira, etc são ocultados pela enxurrada
diária de sandices bolsonaristas.
Muitos na Europa poderiam pensar que com uma actuação tão
destrutiva a base social de apoio a tais indivíduos deveria diminuir
significativamente. Mas isto não é necessariamente assim.
Jânio Quadros antes e depois da sua tentativa de golpe de Estado (que
resultou na sua renúncia) continuou a ter uma base de apoio bastante
ampla entre os que nele votaram, desde os marginalizados até às
camadas médias da população. A persistência das
ilusões é um facto mesmo após o desaparecimento do
demiurgo. Igualmente Bolsonaro ainda hoje depois de mais de um ano de
presidência absolutamente desastrosa continua a ter um
"núcleo duro" de apoiantes (alguns estimam ser da ordem de 30
por cento do eleitorado). Este núcleo apoia um desenlace claramente
fascista através da eliminação do que resta de democracia
burguesa no Brasil, com o encerramento do Congresso e do Supremo Tribunal
Federal.
Pode-se perguntar: Então, se a tradição brasileira
pós II Guerra Mundial era essa, o que representou o lulismo? A resposta,
é doloroso dizê-lo, é que o lulismo não significou
uma ruptura com o modelo esboçado acima. Na sua essência foi um
projecto de conciliação de classe em que se concederam algumas
migalhas para a massa marginalizada da população a fim de
mantê-la passiva. No dizer de
Chico de Oliveira
, foi uma manifestação da social-democracia retardatária
no Brasil. As pobres migalhas concedidas pouco ou nada afectaram a
repartição do rendimento nacional e o próprio Lula da
Silva disse numa reunião de industriais que "a burguesia nunca
ganhou tanto dinheiro quanto no meu governo" (sic), queixando-se da
"ingratidão" dos mesmos.
Apesar da sua origem sindical, os governos Lula (e da sua sucessora Dilma)
fizeram todo o possível para desarmar política e ideologicamente
os trabalhadores brasileiros. Pior: colaboraram activamente para impedir que
isso pudesse acontecer. Quando, por exemplo, o presidente Hugo Chávez
lançou a Telesur, uma cadeia progressista de televisão
continental, o sr. Lula da Silva proibiu que esta fosse difundida no Brasil.
Em termos de política externa, o lulismo acenava com pretensões
balofas de o Brasil integrar o Conselho de Segurança da ONU de modo
permanente. Mas na realidade prática comportava-se de modo servil
perante o império estado-unidense. Quando os EUA derrubaram o governo
eleito do Haiti precisaram de uma força de ocupação a fim
de controlar o país. Assim, o governo Lula prestou-se a enviar
forças armadas àquele país irmão a fim de reprimir
o seu povo. Esta experiência haitiana serviu de treino às
forças armadas brasileiras para a repressão de movimentos
populares e está a ser aplicada contra o próprio povo brasileiro
(exemplo: a intervenção militar no estado do Rio). O general
Heleno um dos colaboradores de Bolsonaro que quer encerrar o Congresso e
o Supremo Tribunal Federal foi um dos comandantes brasileiros no Haiti.
A génese do fenómeno lulista é pouco conhecida. O seu
grande responsável é o general Golbery do Couto e Silva, o
ideólogo da ditadura militar. Quando a ditadura estava no fim dos seus
dias e já se discutia a necessidade da "abertura" (o modelo
espanhol de transição do pós-franquismo era então
activamente estudado nos altos comandos militares), o general Golbery
preocupava-se em que os comunistas não viessem a recuperar a
influência que tinham no movimento sindical. Assim, deu
instruções às autoridades policiais e militares para
passar a fazer uma
repressão selectiva
contra líderes operários. Ou seja, continuar a repressão
feroz contra líderes sindicais considerados comunistas e mais branda
contra os demais. Ora, Lula da Silva, que conduzira as
greves do ABC
, era um destes últimos. O seu movimento pôde assim desenvolver-se
ao passo que trabalhadores como Manuel Fiel Filho e muitos outros continuavam a
ser assassinados nos porões da ditadura.
Os treze anos de governos lulistas (Lula & Dilma) não representaram uma
ruptura com a tradição brasileira de governos de
conciliação de classe. Foram, sim, uma continuação.
A pseudo-esquerda lulista deu de facto algumas benesses ao povo brasileiro,
sobretudo aos marginalizados, mas através de programas assistencialistas
e não como direitos permanentes. Para os trabalhadores organizados pouco
foi dado em termos de direitos efectivos e incorporados na
legislação trabalhista. O lulismo ficou aquém do antigo
getulismo. A governação lulista foi uma cedência permanente
a tudo o que a classe dominante pretendia, com banqueiros neoliberais como
ministros das Finanças, latifundiário/as como ministros da
Agricultura, com grandes negócios com empreiteiros de obras
públicas financiados pelos BNDS, etc, etc. A classe dominante brasileira
tolerava o lulismo porque dele se beneficiava e porque considerava que este
apaziguava os trabalhadores. O boom exportador de produtos primários
ajudava a manter a festa.
Entretanto, a situação do povo em geral, e dos trabalhadores em
particular, continuava a deteriorar-se. Até que explodiram as revoltas
espontâneas de 2013, como o Movimento Passe Livre (MPL) em S. Paulo (e em
outras cidades do Brasil). Numa cidade em que os trabalhadores gastam
até quatro horas por dia em deslocações e com transportes
públicos péssimos, a reivindicação do MPL era mais
do que justa. Contudo, nessa altura o PT já estava tão afastado
das aspirações das massas que não compreendeu o movimento
e até o reprimiu. Isto foi um sinal de alerta para a classe dominante.
Ela descobriu assim que o petismo já não lhe era útil pois
não controlava as massas. Era o começo do fim do petismo. Antes
disso o apoio ao PT entre os trabalhadores organizados do ABC já
começara a desvanecer-se com as malfeitorias do governo Dilma. É
interessante notar, e é significativo, que a base social de apoio ao PT
deslocou-se gradualmente do movimento operário organizado para os
marginalizados do nordeste do país. Isto é constatável
até eleitoralmente.
A desmoralização da social-democracia lulista é uma
tragédia para o Brasil porque aos olhos da opinião pública
(e dos media corporativos) ela é considerada como
"a"
esquerda. Esta confusão é agravada pelo facto de o PT dispor de
um apoiante que se proclama comunista, o PCdoB. Mas o actual PCdoB nada tem a
ver com o antigo, cujo comité central foi quase todo assassinado pela
ditadura em 1976 (os seus actuais dirigentes provém em grande parte da
esquerda católica).
Verifica-se que mesmo agora, em pleno descalabro bolsonarista e com a
ameaça de eliminação dos últimos resquícios
de democracia burguesa, tanto Lula como o petismo continuam a fazer o seu
trabalho de solapar a construção de uma esquerda consequente no
Brasil. É assim que até hoje o PT não ousou propor no
Congresso o
impeachment
do sr. Bolsonaro, quando há motivos mais que suficientes para isso.
É assim também que a sua central sindical, a CUT, permanece
estranhamente passiva diante dos atentados brutais que estão a sofrer os
trabalhadores brasileiros. A conciliação parece ser a
alma mater
do petismo e do sr. Lula
[1]
. Diante disso, as abencerragens fascistas ganham cada
vez mais atrevimento.
27/Fevereiro/2020
[1]
No dia 1/Março o sr. Lula declarou em Paris: "não podemos derrubar um
presidente porque não gostamos dele, é preciso ter paciência com Bolsonaro,
temos de esperar quatro anos", manifestando-se contra o impeachment. Ver
aqui
.
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