Zumbis, vampiros e capitalismo global
por Jorge Figueiredo
"Monsters of the Market",
[1]
de David McNally, é um livro importante para compreender o mundo dos
nossos dias. O seu autor dispensa óculos cor-de-rosa e é animado
por uma
paixão de lucidez e eticismo. Assim, produziu este livro original e bem
escrito, que alia a
análise da situação actual do planeta da Europa e
da África em particular com as suas manifestações
reflexas nas superestruturas das sociedades que padecem as agruras da
globalização. Vivemos, como diz o autor, na era do
"capitalismo zumbi" e de "bancos zumbis", com vampiros a
actuarem no palco central. Como escreve Marx, "O capital é trabalho
morto que, tal como o vampiro, vive apenas para sugar o trabalho vivo". O
mundo actual é a demonstração disso.
A historiografia corrente costuma caracterizar os mitos como meras
superstições de um mundo ultrapassado, coisa de gente inculta e
atrasada. Grande erro, pois eles são mais actuais do que nunca e
reproduzem-se ou adaptam-se aos acontecimentos correntes. É o que
demonstra o autor com a sua análise do famoso clássico
Frankenstein
, de Mary Shelley. O seu enorme êxito literário no século
XIX não por acaso coincidiu com a Revolução Industrial. A
sua dissecação (palavra adequada) do romance de Shelley mostra
como este correspondia aos processos sociais que então se verificavam,
com o desmembramento dos corpos e das mentes da classe que fora despojada
durante as
enclosures
do séc. XVIII. Transformada em mercadoria, esta classe estava a ser
consumida nas fábricas da época quase sempre em
condições atrozes. Ao mesmo tempo a legislação
britânica sofria modificações tendentes a criminalizar a
pobreza, aplicando-lhe inclusive penas pesadas de trabalhos forçados.
Nem depois de mortos os pobres escapavam à sanha da classe dominante: os
que morriam nos trabalhos forçados ou enforcados eram entregues aos
"anatomistas" a fim de serem dissecados. O
Frankenstein
de Mary Shelley tem essa realidade social como pano de fundo.
Nas artes plásticas, a famosa
A lição de anatomia do Dr. Nicolaes Tulp,
de Rembrandt, antecede esta afirmação de poder de classe.
Não por acaso, este Dr. Tulp era o burgomestre e um dos homens ricos da
cidade. A imagem mostra os rostos inteligentes e com interesse
científico dos burgueses que assistiam à lição, ao
passo que o do pobre dissecado (condenado à forca por roubar um casaco)
aparece convenientemente na sombra. Os espectáculos (pagos) de
dissecação pública eram comuns na época. McNally
apresenta a sequência deste teatro do poder: "O Acto Um era a
execução pública do criminoso condenado. O Acto Dois
consistia na dissecação pública do criminoso enforcado na
véspera, a qual podia perdurar até cinco dias. O Acto Três
envolvia um banquete semi-privado da Guilda dos Cirurgiões-Anatomistas
na noite em que se concluía a dissecação. Finalmente, o
Acto Final consistia num desfile com tochas a seguir ao banquete. Como
observamos aqui, cerimónias cuidadosamente orquestradas de poder de
classe".
A literatura sobre monstros e vampiros ganha impulso precisamente no
princípio do século XIX numa sociedade brutalmente dividida pela
Revolução Industrial. Data dessa época a
Revolução dos Luditas, que aterrorizou a classe dominante
britânica entre 1811-17 e acabou por ser afogada em sangue após a
revolta de Abril de 1812 em numerosas cidades inglesas. Para sufocá-la,
os governantes precisaram enviar 35 mil homens armados às
áreas rebeladas. Na verdade, "a literatura de terror nasceu
precisamente do
terror de uma sociedade dividida
e do desejo de curá-la". Tanto o monstro como o vampiro, que
vieram ser conhecidos como o
Frankenstein
de Shelley e o
Drácula
(de John Polidori), nasceram na mesma época.
Shelley não era uma revolucionária. O seu
Frankenstein
queria ser uma advertência à classe dominante britânica
sobre as consequências de manter uma sociedade dividida e sobre os riscos
de uma vingança sangrenta. Ela retrata o seu monstro como um ser
inteligente e com capacidades linguísticas, o que destaca a sua
humanidade e demarca-o radicalmente da classe dos zumbis mortos-vivos
sem pensamento, bons apenas para obedecer ordens e trabalhar. O seu
Frankenstein pertence à classe trabalhadora pois labora à noite,
de forma oculta, para proporcionar alimento e combustível ao Dr. Lacey e
sua família. É um trabalho invisível, não
reconhecido, oculto. Assim, enquanto a economia política dominante na
época enfatizava a magia do mercado, regulada pela famosa mão
invisível de Adam Smith, Shelley põe em primeiro plano os
trabalhos invisíveis que sustentam a vida económica. Ela
esboça o trabalho excedente, trabalho acima e além daquele
exigido para a subsistência própria, através do qual a
Criatura ajuda seus vizinhos. É uma réplica deliberada à
teoria económica burguesa, uma paródia à metáfora
de Smith.
A literatura e o cinema modernos estão cheios de monstros, tais como
vampiros, lobisomens, zumbis, etc. No entanto, estes personagens são
pálidos substitutos dos verdadeiros pois são formatados,
distorcidos e sujeitos aos códigos da indústria cultural.
Trata-se, como diz o autor de "bestas domesticadas, seres derivados do
inconsciente colectivo a fim de produzir personagens inofensivos para consumo
em massa". Contudo, acrescenta, "só fitando horrores
frontalmente e insistindo no seu carácter sistémico, não
acidental, é que a teoria suporta compromissos radicais. Eis porque no
Capital
de Marx abundam descrições pormenorizadas dos ultrajes
monstruosos do capital: fábricas nas quais Dante teria considerado
ultrapassados os piores horrores no seu Inferno; o implacável
tráfico de carne humana; a transformação do sangue de
crianças em capital; a mutilação do corpo e da mente dos
trabalhadores; a extirpação, escravização e
sepultamento em minas das populações indígenas das
Américas; a conversão da África numa reserva para a
caça de peles negras; o vampiro que não irá embora
enquanto permanecer um único músculo, tendão ou gota de
sangue a ser explorado. Nomear estes horrores é também efectuar
uma contra-magia à feitiçaria do capital. Pois os grandes poderes
de ilusão do capital jazem no modo como torna invisível sua
própria formação monstruosa".
No discurso europeu, o fetiche emergiu como um meio de marcar os africanos como
primitivos que supersticiosamente atribuem poderes divinos a coisas brutas.
Mas, como recorda McNally, "num acto poderosamente irónico de
inversão, o jovem Marx inverteu a acusação de
devoção ao fetiche sobre a classe dominante europeia, declarando
que era ela que se curvava perante objectos: como o ouro, no caso dos
colonizadores espanhóis das Américas". E na sua mania da
pilhagem de coisas como ouro e prata, o seu fetichismo ganhou
proporções assassinas, transformando-se numa
"religião do desejo não sensual". Nos dias de hoje este
fetichismo tornou-se hiper-fetichismo como no caso do capital fictício.
Uma acção é um pedaço de papel que confere ao seu
possuidor uma minúscula parte dos lucros futuros de uma companhia
se
se materializarem. E com o actual paroxismo de financiarização,
os derivativos, erigiu-se toda uma estrutura de hiper-fetichismo que cresce de
modo exponencial. As pessoas acreditam freneticamente nas propriedades
mágicas destes pedaços de papel (ou dos seus equivalentes
electrónicos) que se tornariam cada vez mais valiosos. Isto dá
origem, também, às teorizações de uma (suposta)
economia pós-moderna na qual já não se aplicam as
distinções entre o real e o fictício. Tais teorizadores e
os que neles acreditam por vezes arrebentam, como se vê nos instrutivos
colapsos da Enron em Dezembro de 2001 (a 7ª maior companhia dos EUA) e do
banco de investimento Salomon Brothers no fim de 2008. Por muita fraude que
tenha havido (e houve) tais desastres radicam numa patologia sistémica e
não na corrupção.
Vampiros africanos na era da globalização
"De várias partes da África sub-saariana chegam hoje
inquietantes contos de vampiros e zumbis e do extraordinário
intercâmbio entre os vivos e os mortos. Toda uma enorme quantidade de
lendas populares, cultura oral que se propaga, vídeos e
ficção barata descreve processos de acumulação
mágica que atravessam o mundo do oculto. Na Nigéria, jornais
contêm relatos de passageiros de taxis-motocicletas os quais, depois de
porem os capacetes nas cabeças, transformam-se em zumbis e
começam a cuspir dinheiro das suas bocas, como se se tornassem
máquinas multibanco humanas. Nos Camarões, abundam rumores de
trabalhadores-zumbis a labutar em plantações invisíveis
numa obscura economia nocturna. Estórias semelhantes vêm da
África do Sul e da Tanzânia, incluindo contos de zumbis em tempo
parcial, capturados durante as suas horas de sono, só para acordarem
exaustos após a sua exploração nocturna. Enquanto o
trabalho é visto como possuído, dizem que o dinheiro é
encantado. Autoridades congolesas, por exemplo, falam de dólares
"ferozes", segregados dentro dos lares dos seus possuidores, cujo
crescimento súbito e descontrolado esmaga seu enredado
proprietário. Mercadorias também partilham estes poderes bizarros
de expansão; no Sudoeste do Congo, por exemplo, florescem contos de
pessoas possuídas e devoradas por diamantes", conta o autor,
acrescentando muitas outras estórias.
Na verdade, estas fábulas míticas reflectem algo mais. Elas
emanam de um sentimento popular profundo, reacção a uma realidade
que não lhe é compreensível. Elas são mais do que
simples lendas da cultura popular, correspondem à realidade de uma
exploração cujos mecanismos e lógicas não
são perceptíveis (ex.: como puderam surgir novos-ricos sem
trabalho visível, qual a legitimidade dessa riqueza?). Os temores,
ansiedades e valores que exprimem permeiam as vidas diárias do povo,
definindo tanto a posição social quanto as possibilidades
(restritas) de acção política. Trata-se de estórias
acerca da violência da desigualdade e da polarização
social. A penetração devastadora do capitalismo em África,
com monetarização das relações sociais, a
corrupção das elites, as consequências selvagens dos
programas de ajustamento estrutural, a pandemia da SIDA destrói o modo
de vida tradicional africano. Mas em meio a estes contos populares de horror
encontram-se imagens recorrentes da acumulação através do
desmembramento corporal e da desencarnação. São as marcas
da incorporação no mundo do capitalismo reflectidas na
superestrutura mental.
Uma das imagens da monstruosidade do mercado o zumbi é um
produto da experiência africana que foi reprocessado, primeiro no Haiti,
a seguir descoberto e adaptado por Hollywood para ser finalmente transformado
outra vez nos recentes contos populares africanos. Na figura do
trabalhador-zumbi encontram-se traços do circuito global do capital. Os
actuais contos de zumbis são portanto
fábulas da modernidade,
não podem ser tratadas como "tradicionais" ou
"pré-modernos" como pretende o preconceito colonialista de que
os africanos seriam pré-históricos, gente fora da
história. Tais preconceitos têm a função
ideológica de justificar um apartheid global.
A economia capitalista mundial é opaca, mesmo nos países
desenvolvidos do Ocidente poucos a entendem. Mas na cultura tradicional
africana a concepção de riqueza é um jogo de soma zero: se
um aldeão tem 10 galinhas e o vizinho tem 20, este tem dobro de
"riqueza". Por isso, a moderna economia globalizada que na
África tem um carácter sobretudo extractivista é um
mistério incompreensível dentro do quadro mental tradicional.
Assim, as lendas com zumbis e vampiros são um ensaio de
"explicação" de algo não apreensível. A
riqueza dos novos-ricos não pode ser explicada pelo simples roubo dos
seus vizinhos porque nem mesmo toda a riqueza da aldeia chegaria para atingir os
níveis que ostentam.
A moderna literatura africana reflecte os limites estabelecidos pelo
imaginário africano tradicional e as novas realidades impostas pela
globalização, com relações impessoais e mediadas
pelo dinheiro. O autor cita a historiadora
Luise White
, a qual afirma que
"os vampiros emergiram no imaginário africano só no
século XX, quando a crescente penetração de imperativos
capitalistas provocou novos modos de compreender e retratar os perigos da vida
diária". Na verdade, argumenta ela, "as estórias de
vampiros envolveram esforços complexos para penetrar os mistérios
dos processos de trabalho capitalistas".
No ano 2000, recorda o autor, a África sub-saariana estava a enviar
US$337 milhões por dia para o Ocidente a título de reembolso de
dívida. Trata-se da sua sujeição a uma
recolonização sistemática promovida pelas
instituições financeiras internacionais. Assim, não
é de admirar que o folclore e a cultura de massa imaginem as
corporações globais como sugadoras do sangue do subcontinente.
Como conclusão McNally afirma: "A sociedade de mercado capitalista
abunda em monstros. Mas nenhuma destas espécies grotescas domina tanto a
imaginação moderna como o vampiro e o zumbi. De facto, estas duas
criaturas precisam ser pensadas em conjunto, pois interconectam momentos da
dialéctica monstruosa da modernidade. Tal como Victor Frankenstein e seu
Criador, o vampiro e o zumbi são dúplices, pólos ligados
da sociedade dividida. Se os vampiros são os pavorosos seres que podem
possuir-nos e transformar-nos em seus dóceis servos, os zumbis
representam a nossa auto-imagem assombrada, advertindo-nos que podemos
já estar sem vida, como agentes impotentes de poderes alheios".
O autor de
Monsters of the Market,
um professor americano que conhece bem a Nigéria, tem uma
erudição
prodigiosa tanto da literatura, da história e da sociologia ocidentais
como da cultura tradicional africana. Ele fez a façanha notável
de conseguir combinar tudo isso nesta obra, a qual contém
percepções extremamente agudas das realidades africanas assim
como da nossa própria realidade ocidental. Este livro ensina, e muito.
É preciso que seja publicado em português.
Plano da obra
Capítulo Um:
- A dissecar o corpo que faz o trabalho árduo:
Frankenstein,
anatomia política e a ascensão do capitalismo
- "Salve meu corpo dos cirurgiões"
- A cultura da dissecação: anatomia, colonização e
ordem social
- Anatomia política, trabalho assalariado e destruição dos
baldios
(commons)
ingleses
- Anatomia da economia cadáver
- Monstros da rebelião
- Jacobinos, irlandeses e luditas: Monstros rebeldes na era do
Frankenstein
- Os direitos dos monstros: horror e sociedade dividida
Capítulo Dois:
- Monstros de Marx: O capital-vampiro e o mundo de pesadelo do capitalismo
tardio
- Dialéctica e a vida dupla da mercadoria
- O espectro do valor e o fetichismo das mercadorias
- "Como se possuído pelo amor": o capital vampiro e o corpo que
labuta
- Trabalho-zumbi e os " ultrajes monstruosos " do capital
- Dinheiro: segunda natureza do capitalismo
- Capital que "nasce de si próprio" e a alquimia do dinheiro
- Dinheiro selvagem: as economias ocultas da globalização
capitalista tardia
- Enron: estudo de caso na economia oculta do capitalismo tardio
- "O capital vem ao mundo a gotejar sangue por todos os seus poros"
Capítulo Três:
- Vampiros africanos na era da globalização
- Parentesco e acumulação: da velha feitiçaria para a nova
- Zumbis, vampiros e espectros do capital: as novas economias ocultas do
capitalismo globalizante
- Fetiches africanos e o fetichismo das mercadorias
- O morto-vivo: trabalhadores-zumbis na era da globalização
- Capitalismo vampiro na África Sub-Saariana
- Acumulação encantada, estradas da fome e os infindáveis
condenados da Terra
Conclusão: Beleza feia: Sonhos monstruosos de utopia
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[1]
David McNally
,
Monsters of the Market Zombies, Vampires and Global Capitalism
, Haymarket Books, Chicago, 2012, 296 p., ISBN 978-1-60846-233-9
Esta resenha encontra-se em
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