"Vigilância massiva, registo permanente", de Edward
Snowden
por Jorge Figueiredo
Edward Snowden é o Daniel Ellsberg da nossa época. O analista da
Rand que teve a coragem de revelar os "Pentagon Papers" (1971) com o
relato dos crimes praticados pelo imperialismo no Vietname é um digno
antecessor de Snowden. Ambos caracterizam-se pelo eticismo. Fizeram-no
abandonando carreiras confortáveis e assumindo riscos enormes.
O livro
"Vigilância Massiva, Registo Permanente",
[1]
de Snowden, agora lançado em Portugal, é uma auto-biografia
intelectual e política. Ela revela a evolução de um homem,
extremamente talentoso do ponto de vista técnico e cuja origem social
radica nas camadas médias que trabalham para o aparelho de Estado
americano. Ele ingressou aos 22 anos na chamada "Comunidade da
Informação" (CI) motivado sobretudo pelos sentimentos
patrióticos em que acreditava.
Snowden trabalhou para a Central Intelligence Agency (CIA) e para a National
Security Agency (NSA), muitas vezes através dos empreiteiros que as
serviam. Começou a sua carreira como um jovem técnico desejoso de
colaborar para a construção de "um mundo melhor".
Acreditava nisso sinceramente e, graças ao seu enorme talento
técnico, em apenas sete anos atingiu os mais altos níveis de
responsabilidade operacional no aparelho mundial da CI, com acesso às
mais classificadas informações.
Pode-se perguntar. O que motivou um homem assim a tornar-se um denunciante? Ele
explica. Nos seus primeiros tempos de actuação trabalhou em
actividades técnicas específicas do sistema de vigilância
mundial do aparelho de espionagem americano. Tinha a ambição
intelectual de
ver o todo
do sistema, no seu conjunto. Mas como as actividades da espionagem são
compartimentadas, isso só ia se tornando possível à medida
em que subia nos escalões hierárquicos da CI.
Snowden não é um socialista, muito menos um marxista. Os seus
valores são os de um liberal que pretende aplicar a
Constituição americana do século XVIII que impõe o
respeito pelas liberdades individuais. Entretanto, verificou que a realidade
presente dos EUA nada tem a ver com tais propósitos. Hoje os EUA
são um Estado opressivo de vigilância massiva sobre todos os seus
cidadãos e sobre o resto do mundo.
A sua consciência evoluiu progressivamente, mantendo sempre bases
éticas e com o pano de fundo libertário dos primeiros tempos da
Internet. Entretanto, houve um momento em que se deu o "clic" na sua
consciência o célebre salto qualitativo. Foi, como ele
conta, o momento em que verificou que a vigilância individualizada
passara a ser massiva, uma vigilância de
toda
a população estado-unidense e mundial. Na verdade, como ele diz,
"redefinimos o conceito de espionagem". Esta deixou de ser a
clássica de encontros clandestinos estilo James Bond e passou a ser a
das redes de arrasto que colectam tudo.
Poucos sabem que a vigilância generalizada já é a realidade
actual pois o aparelho foi montado em segredo. Ele foi possível
graças a dois grandes saltos tecnológicos: 1) A capacidade de
interceptar todos os fluxos de comunicação (telefones, email,
mensagens, redes sociais, etc); e 2) A capacidade de armazenar
ad eternum
os gigantescos volumes de dados assim coligidos. Estas capacidades
tecnológicas permitiram uma sociedade muito mais vigiada do que qualquer
polícia política no mundo alguma vez teve possibilidade de
concretizar.
Ambas as capacidades têm implicações fundas e apontam para
uma sociedade distópica. O poder de interceptar significa o fim da
privacidade e o poder de armazenar para sempre o que foi interceptado
constituem armas a serem utilizadas selectivamente contra cidadãos. A
classe dominante que tem tais poderes exerce de facto um controle ditatorial
num Estado fascista de novo tipo.
Descobrir tudo isto, um processo em desenvolvimento acelerado e já em
curso mas ainda desconhecido da maior parte do mundo, deve ter sido angustiante
para Snowden sobretudo porque tinha de manter secretos tais pensamentos.
Na sua ingenuidade liberal, chegou a pensar em denunciar pelas vias
hierárquicas legais as infracções sistemáticas
à Constituição e às leis em vigor mas o
triste destino de colegas que fizeram tímidas tentativas desse tipo
dissuadiram-no. Estava assim diante de um problema de coerência entre
pensamento e acção. Denunciar ao mundo tal
situação, para preveni-la, era um dever. Mas cumpri-lo exigia
planeamento, coleccionamento de provas, contactos com jornalistas, rupturas,
perigo de vida e sobretudo uma enorme coragem tanta que dificilmente
poderá haver um outro denunciante do nível dele na CI
estado-unidense.
O acervo de provas que coligiu na CI dos EUA, a qual domina a rede dos Cinco
Olhos (com a Grã-Bretanha, Austrália, Canadá e Nova
Zelândia), é colossal. Snowden é um herói da
humanidade por tê-las trazido aos olhos do mundo, denunciando-as. Mas,
com este livro, ele vai mais além. Numa linguagem tão
didáctica quanto possível ensina às pessoas como se
defenderem da intrusão avassaladora do poder dominante. É assim
que mostra a ilusão corrente de que se possa "apagar" uma
informação e aponta o caminho, mais eficaz, da criptografia.
É uma lição importante, sobretudo, para as forças
progressistas (o liberalismo, ou inconsciência, é tamanho que o
Gmail, devassado pela NSA, continua a ser usado generalizadamente).
Outra percepção aguda de Snowden é a da
criação da irrealidade
, em que a verdade e a mentira se misturam de modo indetectável para o
comum dos cidadãos. Vale a penas citar as suas palavras:
"As tentativas de funcionários eleitos para deslegitimar o
jornalismo têm sido ajudadas ou consentidas por um assalto frontal ao
princípio da verdade. O que é real está a ser
deliberadamente misturado com o que é falso, através de
tecnologias capazes de levar essa mistura a um nível sem precedentes de
confusão global.
"Tenho um conhecimento íntimo deste processo, porque a
criação da irrealidade sempre foi uma das artes mais negras da
Comunidade da Informação. As mesmas agências que, só
no espaço temporal da minha carreira, manipularam a
informação com o objectivo de criar pretexto para uma guerra
e usaram políticas ilegais e um sistema judiciário
paralelo para permitir o rapto como "rendição
extraordinária", a tortura como "interrogatório
reforçado" e a vigilância massiva como "recolha de
dados" não hesitaram um instante em chamar-me agente duplo
chinês, agente triplo russo, e pior: "um
millenial
"
[2]
.
O livro de Snowden é uma leitura indispensável para as
forças progressistas do mundo todo. Elas têm o dever de abandonar
a displicência e o liberalismo quanto à segurança do que
recebem e transmitem, de defender a privacidade nas suas
comunicações inter-pessoais. Dizer que nada têm a esconder
é o mesmo que dizer que não se preocupam com a censura porque
não são jornalistas.
Registe-se finalmente o mérito da editora Planeta que foi capaz de
lançar esta obra em Portugal em simultâneo com a sua
edição em inglês, numa tradução rápida
e escorreita de Mário Dias Correia.
25/Setembro/2019
Ver também:
Ferramentas de privacidade
[1]
Vigilância Massiva, Registo Permanente
, Edward Snowden, Planeta, 2019, 398 p., ISBN 978-989-777-312-9
[2] Millenial: pessoa nascida entre 1981 e 1991, a geração que
já cresceu no mundo dos computadores, telemóveis inteligentes e
sistemas de jogos.
Esta resenha encontra-se em
http://resistir.info/
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