A esquerda ausente
|
Não poderiam ser encontrados pormenores chocantes sobre episódios
de crueldade?
Otto von Bismarck
Ninguém mente tanto como o indignado.
Friedrich Nietzsche
|
O historiador do futuro não deixará de se surpreender com um
fenómeno que caracteriza a nossa sociedade e o nosso tempo. Por um lado,
não é difícil ler em livros, revistas e jornais
análises realistas e incisivas sobre a condição actual do
Ocidente, dos problemas e dramas de nosso presente. Uma crise política
acresce à crise económica: segundo autores de prestígio,
há um esvaziamento da democracia, que regride perante as grandes
fortunas e a "plutocracia". Mas existe uma esquerda no Ocidente capaz
de fazer essa análise e essa denúncia e, a partir daí,
articular um projecto de luta e transformação política do
existente?
No que diz respeito à política internacional, mesmo alguns
órgãos de imprensa que frequentemente se destacam pela sua
coragem evitam admitir o carácter neocolonial que tiveram as guerras
mais recentes desencadeadas pelos Estados Unidos e pela NATO no Médio
Oriente. Está à vista de todos, o horror de Gaza e a
tragédia que é infligida ao povo palestino pelo domínio e
o expansionismo colonial de Israel. E não temos outro remédio a
não ser perguntar novamente: existe uma esquerda no Ocidente capaz de se
opor à terrível onda que agora semeia morte,
destruição e desenvolve os germes de uma
conflagração a uma escala muito maior?
Em Março de 2014, Seymour M. Hersh, jornalista americano premiado com o
prestigiado Prémio Pulitzer, fez importantes revelações
sobre o uso de armas químicas na Síria em 21 de Agosto do ano
anterior. Não, os responsáveis por essa infâmia não
eram os líderes do país, mas os "rebeldes" apoiados
pelas monarquias reaccionárias do Golfo Pérsico, aliados do
Ocidente e pela Turquia, um país membro da NATO e protagonista da
provocação e encenação, visando criar uma onda de
indignação mundial contra os líderes Sírios,
justificando a acção devastadora de bombardeiros com os motores
já ligados e prontos para entrar em acção.
Em Agosto de 2013, estadistas, jornalistas, reis e rainhas da sociedade do
espectáculo rivalizavam no modo mais sinistro de pintar o inimigo a
abater. Escusado será dizer que o desmascaramento da mentira teve nos
diferentes os órgãos de informação um eco muito
menor que a propagação da mesma mentira. Era melhor não
dar muita publicidade ao escândalo, para não desacreditar ou
comprometer a indústria das mentiras, pois esta será sempre
útil na preparação de guerras futuras.
E novamente a esquerda brilhou por sua ausência. Ela não teve
coragem de fazer perguntas e levantar dúvidas no momento em que a
manipulação foi mais intensa, e não considerou
necessário chamar a atenção do público para o
desmascaramento da manipulação e, em geral, para a
indústria bélica da mentira que apesar de tudo continua a
florescer. De facto, a esquerda encolhe-se justamente quando deveria reagir com
mais energia aos processos de polarização social e
redistribuição massiva do rendimento a favor das grandes fortunas
(muitas vezes parasitárias), perante o reaparecimento de guerras
coloniais ou neocoloniais e a ameaça de guerras em larga escala; perante
a redução e distorção da esfera pública
provocada pela "plutocracia" e por uma indústria da mentira
mais florescente, poderosa e invasiva do que nunca.
Já se vê com suficiente clareza qual é o paradoxo que
requer explicação. Não podemos deixar essa tarefa para o
historiador do futuro, porque os dramas e perigos do presente exigem uma
consciência e uma responsabilidade aqui e agora. Este livro tenta
facilitar isso.
Antes de mais, será necessário fazer um reconhecimento no
terreno. É a questão abordada no primeiro capítulo. A
crise devastadora que estamos sofrendo embora tenha um alcance
planetário, não afecta o planeta inteiro. Os países que no
século XX sacudiram o domínio colonial e neocolonial lutam hoje
para alcançar o desenvolvimento autónomo nos campos
económicos e tecnológicos, e no curso dessa luta eles colhem
sucessos importantes. Vemo-lo, acima de tudo, no caso da China e de outros
países emergentes. Nada seria entendido do cenário internacional
actual se dois processos contraditórios não fossem levados em
consideração: a "grande divergência" que durante
séculos colocou o Ocidente na posição de superioridade
absoluta sobre o resto do mundo tende a ser reduzida até ser cancelada;
ao mesmo tempo, nos países capitalistas avançados abre-se um
abismo, outra "grande divergência" que separa uma minoria
opulenta cada vez mais separada do resto da população.
Compreende-se então que o Ocidente capitalista reaja a esta
situação desmantelando o Estado social e aplicando medidas
anti-populares de "austeridade", porém tentando ao mesmo
tempo, salvar a sua preponderância internacional. Por isso, desencadeia
guerras cujo carácter neocolonial é cada vez mais evidente, o que
se reflecte inclusivamente nos media. Nestas guerras neocoloniais, a UE e os
EUA não hesitam em aliar-se às forças mais
reaccionários do Médio Oriente, que escravizam imigrantes,
oprimem mulheres, reintroduzem poligamia, etc.
Tudo isso deveria ter provocado a reacção da esquerda. Mas, como
se observa no segundo capítulo, o mundo capitalista-imperialista todavia
consegue creditar-se a si próprio como «mundo livre». É
uma pretensão que desde há séculos faz parte da auto
consciência e falsa consciência do Ocidente. Embora hoje, mais do
que nunca, devesse ter perdido toda a credibilidade. Desde a ofensiva
neoliberal, os "direitos sociais e económicos" definidos pela
ONU não só não foram postos em prática como
também se deslegitimaram no plano teórico. Quanto aos direitos
políticos, a "plutocracia" que gradualmente se impõe no
Ocidente esvazia-os de conteúdo. E como que sorrateiramente e de forma
indirecta foi reintroduzida a discriminação censitária,
que durante séculos excluiu as classes subordinadas da
participação na vida política.
Permanecem de pé pelo menos os direitos civis e o Estado de direito?
Todas as terças-feiras informa o
New York Times
o presidente dos EUA reúne-se com seus colaboradores para
preparar a "lista de mortes" (lista de assassinatos), a lista dos
suspeitos de terrorismo que devem ser "eliminados" como se diz na
anódina linguagem burocrática, desde que se iniciaram as
acções com drones. Nesta lista, podem até haver
cidadãos dos EUA. Para onde foi o Estado de direito? E acima de tudo:
é compatível a profissão de fé democrática
do Ocidente com sua pretensão de exercer uma ditadura à escala
planetária, reservando-se o direito soberano de desencadear guerras,
sanções devastadoras com ou sem a autorização do
Conselho de Segurança da ONU?
A prosápia do Ocidente às vezes é grotesca. Mas continua a
exercer uma influência ideológica tão forte que muitas
vezes é capaz de ofuscar a esquerda na Europa e nos EUA. Marx não
tinha falta de razão quando observou que o monopólio da
produção material é também o monopólio da
produção intelectual. Hoje a grande burguesia baseia o seu poder
no monopólio da produção de ideias, isto é
evidente, mas também, e acima de tudo, no monopólio das
emoções: tema central do terceiro capítulo do livro.
Como é actualmente programada e preparada a guerra? Procura-se
através da imprensa, rádio, televisão, Internet e redes
sociais, manipular completamente ou inventar uma imagem que possa demonstrar a
crueldade, ferocidade, falta de humanidade do inimigo a derrubar ou matar. Essa
imagem é difundida, obsessivamente repetida, com ela se bombardeiam, por
assim dizer, todos os recantos do planeta. Todos aqueles que não alinham
incondicionalmente com o Ocidente na guerra que está prestes a
desencadear-se são acusados de surdos às razões da
ética e de serem cúmplices do Mal. É o terrorismo da
indignação, um ultraje que afirma ser moral, mas é
realmente Maquiavélico no mau sentido da palavra. É assim que a
sociedade espectáculo se torna uma mortífera técnica de
guerra.
O terrorismo da indignação também desempenha um papel
fundamental nos golpes de Estado, habilmente camuflados de
"revoluções coloridas", que promovem a expansão
da NATO e do Ocidente em geral. Também nestes casos os distúrbios
baseiam-se numa mentira, uma manipulação ou uma
provocação capaz de desencadear uma onda de
indignação moral necessária para derrubar um regime odiado
ou considerado um obstáculo pelos aspirantes a donos do mundo.
O quarto capítulo do livro traça um balanço
histórico dos golpes consumados ou falhados ao longo dos séculos
XX e XXI: a primeira onda abrange mais ou menos os anos da guerra-fria e o
segundo começa quando se perfila o fim da Guerra-fria. Entre os dois
períodos não faltam elementos de descontinuidade, mas em ambos
é comum a arrogância imperial, que continua a manifestar-se.
Desencadeiam-se guerras ou golpes, o Ocidente sanciona-os constantemente
arvorando a bandeira do universalismo dos valores do mercado livre, um
universalismo que não conhece ou tolera fronteiras estatais e nacionais.
O quinto capítulo chama a atenção para as colossais
mudanças produzidas em relação ao passado. Aquele que hoje
é o país guia do Ocidente, na segunda metade do século XIX
foi o campeão mundial do proteccionismo aduaneiro. E o proteccionismo
também afectava as ideias, ainda nos anos da Guerra-fria, os comunistas
sofreram perseguições nos EUA por espalharem uma visão que
faz um apelo universalista aos proletários e povos oprimidos de todo o
mundo. Apesar da sua extraordinária capacidade de atracção
em todos cantos do planeta, as autoridades dos EUA proibiram-no qualificando-o
de alheio ao autêntico espírito "americano" e ao
"americanismo".
Isto deveria fazer-nos desconfiar da ideologia que se impõe hoje no
Ocidente. Na verdade, quando uma cultura ou uma civilização
determinada pretende ser a personificação permanente dos valores
universais, não está exibindo universalismo, mas, ao
contrário, um etnocentrismo exaltado que sempre serviu para desencadear
guerras coloniais ou neocoloniais em nome da Civilização, uma
noção monopolizada pelo agressor.
Porém, podem realmente ser consideradas neocoloniais as guerras entre o
final do século XX e o princípio do século XXI que
devastaram o Panamá, a Jugoslávia, o Iraque e a Líbia, e
continuam a devastar a Síria? A esta pergunta responde o sexto
capítulo do livro, que reflecte sobre a história secular da luta
entre
colonialismo e anticolonialismo e sobre os elementos de continuidade entre o
antigo e o novo colonialismo.
Em meados do século XIX, as canhoneiras britânicas subjugaram a
China, que não tinha possibilidade de responder ao fogo inimigo. Esta
situação foi repetida recentemente (a favor dos EUA e da NATO) no
Panamá, nos Balcãs e no Médio Oriente. Os derrotados,
embora ocupem o cargo de chefes de Estado, são entregues ao Tribunal
Penal Internacional, que em compensação não pode
investigar sequer um vulgar soldado americano ou mercenário. A dupla
jurisdição é um elemento essencial da
tradição colonial.
Hoje, a agressão é praticada em nome dos "valores" e
"interesses" ocidentais. É a mesma ideologia que sustentou as
guerras coloniais clássicas. Da sua preparação
ideológica se encarregavam no passado, os missionários
cristãos, que hoje transmitiram o testemunho para as ONG, frequentemente
controladas por Washington e por Bruxelas. A continuidade entre o colonialismo
e o neocolonialismo é impressionante, ainda que por este motivo, a
envergadura das alterações existentes não deva ser
subestimada. Algo que foi suficiente para desorientar e silenciar a esquerda
ocidental.
Os EUA, contando com os seus aliados europeus para consolidar as
posições do Ocidente no Médio Oriente ou noutras partes do
mundo está a deslocar para a Ásia e Pacífico a maior parte
de seu gigantesco aparelho militar. Começou a contenção e
cerco da China. É uma nova Guerra-fria, que por definição
está sempre a um passo de se tornar uma guerra quente ou mesmo num
holocausto nuclear.
Hoje, mais do que nunca, a luta pela paz é urgente, mas a esquerda que
deveria promovê-la está silenciosa porque, entre outras coisas,
não entende que é uma nova fase do choque entre colonialismo e
anticolonialismo. O país que encarna a causa do anticolonialismo
só pode ser a República Popular da China, que nasceu da maior
revolução anticolonial da história e continua dando uma
contribuição essencial ao movimento anticolonial. Com a teoria da
"guerra de aldeia" Mao Zedong explicou como um povo oprimido pode
desafiar e derrotar um grande poder. Deng Xiaoping explicou que a luta de
libertação nacional não está completa se à
independência política não sucede a independência
económica.
Depois de analisar os problemas e contradições da actualidade e
dar provas da fraqueza e das ausências da esquerda, devemos
avançar para uma reflexão mais sistemática sobre as
razões dessa fraqueza e dessas ausências.
O capítulo final do livro (o oitavo) é dedicado a esta tarefa e
à conclusão. É evidente que mudanças radicais como
as produzidas em todo o mundo entre 1989 e 1991 não podem deixar de
causar desorientação e confusão. Sim, no Ocidente, a
esquerda, moderada ou "radical", não poucas vezes foi a
reboque da ideologia dominante. O terrorismo de indignação que
prepara o desencadear de guerras neocoloniais intimidou principalmente a
esquerda. O papel desempenhado no século XIX pelo "cristianismo
imperial" que abriu caminho para a expansão colonial com seus
missionários bem-intencionados, corresponde hoje à "esquerda
imperial".
No que diz respeito à luta sócio-económica dentro de cada
país, acontece que a esquerda, embora saia em defesa do Estado social,
promove ao mesmo tempo a difusão de filosofias e ideologias extremamente
úteis ao neoliberalismo. A crise económica e política e a
deterioração da situação internacional exigem que a
esquerda saia deste estado de desorientação e confusão. A
isso pretende contribuir este livro de história e crítica do
declínio da esquerda e das situações objectivas nos planos
internos e internacionais que favoreceram esse declínio.
As análises evidenciadas nas páginas deste livro encontraram uma
confirmação trágica: enquanto estava a ser impresso, o
Médio Oriente estava a ser balcanizado e devastado por
implacáveis guerras de grupos islâmicos, usados pelo Ocidente para
atacar regimes de inspiração anticolonialista e laica; o golpe na
Ucrânia e o avanço ameaçador da NATO na Europa Oriental
provocou a reacção russa; a deslocação dos EUA para
a Ásia está a transformá-la numa barril de pólvora.
Agravam-se os perigos de guerra sobre os quais este livro insiste.
Saberá a esquerda mostrar sinais de vida?
[*]
Prefácio do último livro de Domenico Losurdo
(14/Nov/194128/Jun/2018),
La izquierda ausente. Crisis, sociedad del espectáculo, guerra
(ISBN 9788416288434). O livro pode ser encomendado
aqui
.
O original encontra-se em
https://www.elviejotopo.com/topoexpress/la-izquierda-ausente/
Este artigo encontra-se em
http://resistir.info/
.
|