NIMA: Comecemos pelo conflito que se vive atualmente no Médio Oriente. Como é que o vê neste momento? O que é que se passa, Michael, na sua opinião, no Médio Oriente?
MICHAEL HUDSON: Penso que o Médio Oriente está a tornar-se um catalisador daquilo de que temos falado nas duas últimas vezes que nos reunimos, o mundo dividido em duas metades, os EUA, a NATO, o Ocidente contra o resto do mundo.
E penso que os Estados Unidos, o Próximo Oriente, são uma espécie de demonstração para a maioria global do que o que a América e Israel estão a fazer lá com o seu assassinato de indivíduos, a sua mudança de regime e a violência com que o partido de direita Likud, apoiado pelos Democratas de direita nos Estados Unidos, estão a tentar impor ao resto do mundo.
E a mensagem, penso eu, que a Eurásia recebe é que o que estão a fazer aos palestinos e o que a Europa está a fazer aos ucranianos, podem fazê-lo a nós, a menos que nos separemos realmente.
Penso que isto dá uma nota de urgência. Desde 1955, em Bandung, que os países falam sobre a forma de se afastarem e criarem uma espécie de regime mundial de comércio e investimento que não seja tão explorador. Mas quando vêem o que se está a passar na Ucrânia e no Médio Oriente, penso que isso dá uma nota de urgência, dizendo que temos de nos unir e fazer com que os aliados adiram ao nosso sistema, oferecendo a cada país que adere o suficiente para que valha a pena aderir à órbita da China, da Rússia, do Irão, da SCO [Organização de Cooperação de Xangai], em vez de manterem as suas ligações ao Ocidente. Tudo o que o Ocidente tem para oferecer é suborno e ameaça de violência.
NIMA: Richard?
RICHARD WOLFF: Sim, gostaria de pegar no que o Michael diz. E o que mais me impressionou foram os sinais da ascensão da China, a ascensão dos BRICS, a ascensão de muito daquilo a que costumávamos chamar o terceiro mundo, ou o mundo subdesenvolvido, ou os novos emergentes, todos esses eufemismos.
Essa ascensão é agora clara. É óbvio. As estatísticas que o Michael apresentou, que eu apresentei, que sei que discutiram connosco e com outros nos vossos programas, todas atestam isso.
Quero dizer, para vos dar um pequeno exemplo, li esta manhã que a corporação Uber, e ouçam esta história, que a corporação Uber, que no início deste ano estava em negociações com a Tesla, e a razão porque negociavam com a Tesla é que desejarem fornecer veículos elétricos baratos a cerca de 100.000 condutores da Uber em todo o mundo. E explicam na imprensa financeira o seu objetivo. Trata-se de dar a conhecer ao público, de o tornar mais interessado e mais confortável com os veículos eléctricos, o que é um tipo de negócio normal.
Depois, o acordo fracassou e esta manhã anunciaram que haviam feito o acordo, mas não com a Tesla e sim com a empresa BYD, que é o principal produtor de veículos elétricos da China.
Porquê? Porque não podiam chegar a um acordo com a Tesla, por causa de tudo o que Elon Musk fez ou deixou de fazer nos seus, como hei-de dizer, altos e baixos como empresário, e com o Ocidente, etc.
Não se pode continuar a fazer isto, agora que se vê basicamente uma empresa ocidental, a Uber, a fazer um acordo, a favorecer a China em detrimento de outra empresa ocidental.
É a própria concorrência dos capitalistas que está a conduzir a transição para as mãos daquilo a que chamam o seu inimigo. É a velha piada sobre, sabe, os capitalistas competindo para ver quem consegue vender o laço do carrasco para as pessoas que querem enforcar o capitalismo. É uma estranha auto-destruição que está a começar a acontecer.
Deixem-me dar-vos um segundo exemplo. De acordo com os registos internacionais, o preço de um galão de gasolina na estação de serviço de retalho no Irão é de 10 cêntimos por galão [1 US galão = 3,785411784 litros]. São cêntimos americanos, galão americano. O preço médio em França e na Alemanha para o mesmo galão de gasolina é superior a sete dólares.
É uma diferença insustentável no custo da energia. Quer dizer, pode demorar mais ou menos tempo, pode ir por aqui ou por ali, mas a concorrência está feita. Qualquer produção que necessite de petróleo pode ser feita no Irão e não pode competir se custar sete dólares em França e na Alemanha, e é mais de sete em ambos, para obter um galão de gasolina para o camião que vai e volta e para tudo o resto.
Penso que o que estamos a ver agora, e é aqui que eu entro para apoiar o último ponto mencionado por Michael, o que me surpreende não é tudo o que tem acontecido há algum tempo e que agora está a acelerar, como no caso da Uber e da BYD e assim por diante, mas o facto de o Ocidente ter escolhido este caminho como forma de lidar com isto, não se sentando para trabalhar um acordo enquanto ainda estamos fortes, enquanto o nosso dólar, embora mais fraco, ainda é a moeda número um do mundo, e assim por diante.
Não, não estão a fazer isso. Decidiram que vão, de alguma forma, parar ou inverter ou abrandar este processo, o que não podem fazer. Não há precedentes históricos para tal coisa. Não vão conseguir fazê-lo, e a sua frustração e o seu fracasso estão a levá-los a níveis de violência que são impressionantes.
Agora, o meu último exemplo para tentar explicar isto, a violência no Médio Oriente, o Michael tem toda a razão. Está fora dos mapas. Houve um debate em Israel, nos últimos dias, sobre a legitimidade de sodomizar prisioneiros palestinos na prisão. Houve um debate, a favor e contra, com muitos a favor.
O que é que aconteceu ao povo israelense para chegar a este ponto? É como as perguntas que se faziam ao povo alemão em relação às vítimas do Holocausto. Foram feitas, e com razão, aos alemães. É com razão que se faz agora aos israelenses.
E Michael também tem razão quando diz que o horror infligido ao povo ucraniano é realmente extraordinário. E se conhecermos a história, e não quero absolver o Sr. Putin e os russos. Eles invadiram. Violaram uma fronteira. Compreendo que se trata de um problema grave. Mas todos nós sabemos o que a NATO fez depois de 1989. Todos nós sabemos. E ninguém que preste atenção e não esteja perdido na guerra de propaganda não compreenderia que esta foi uma crise construída pelos planos da NATO, por um lado, e pela recusa da Rússia, por outro. Os russos disseram-no muitas vezes. É a sua linha vermelha. Está lá. Não podem fazer isto. Não podem fazer isto. E depois houve aquelas reuniões em fevereiro, e outra um pouco mais tarde em Istambul, e assim por diante. Não resultou em nada. A miséria da Ucrânia podia ter sido evitada. Serão precisas décadas para saírem do desastre em que se encontram, independentemente de quem ganhe ou perca esta guerra.
Este nível de violência mostra-nos o quão desesperadas estão as pessoas no Ocidente, o que estão dispostas a fazer, o que estão dispostas a assistir a que outros façam. Ainda não estão preparados.
E a questão não é quando é que nos vamos sentar com os russos. Toda a gente sabe que acabará por haver uma reunião e que chegarão a um acordo. É assim que todas as guerras como esta terminam. É assim que esta vai acabar. E toda a gente sabe isso, os que prestam atenção.
E os israelenses vão ter de chegar a um acordo com os palestinos, a menos que queiram literalmente exterminá-los, o que não podem fazer de qualquer maneira.
Portanto, o que estamos a ver é um sinal de um tal nível de desespero que a única coisa mais bizarra é ver líderes como Biden, ou Trump, a falar como se tivessem o poder que os EUA tinham nos anos 60 e 70. Mas isso já não existe. Mas eles parecem pensar que a necessidade política é enganar o povo americano fazendp-o imaginar ingenuamente que ainda está onde já esteve.
E noto esta simples estatística, que também já vos apresentei nos nossos debates, que o PIB agregado do G7 é agora significativamente inferior ao PIB somado dos BRICS. Mas é isso mesmo.
E reparo que quando explico isto ao meu público, eles olham para mim com uma espécie de olhar triste, como se eu tivesse acabado de dizer algo sobre a sua vida íntima que eles esperavam manter em segredo. E ali estou eu a libertar esta realidade desagradável. E não se vão lembrar dela dali a 10 minutos porque é muito desagradável.
E agora tudo está a ir com este nível de violência. Temos realmente a sensação, que apanho em toda a nossa cultura, de que estamos num ponto de inflexão muito assustador da história americana. E ninguém sabe muito bem o que é ou para onde vai. Mas vejo, sinto e ouço falar disso em todo o lado.
MICHAEL HUDSON: Gostaria de retomar a questão que o Richard acabou de mencionar sobre o desespero e a frustração. Sabemos o que os EUA têm andado a fazer para se sentirem frustrados. Têm imposto sanções à China e à Rússia.
O interessante é que quase todas as sanções que impuseram saíram pela culatra. O efeito das sanções sobre algo que é necessário para outro país é forçar esse país a produzir esses bens. Já falámos anteriormente neste programa sobre a forma como os EUA começaram por impor sanções contra a Rússia no domínio dos produtos agrícolas. Assim, a Rússia deixou de poder importar produtos lácteos e géneros alimentícios dos Estados Bálticos. O que é que aconteceu? A Rússia simplesmente transferiu a produção para si própria. Agora é independente. E quando nos tornamos independentes de algo e percebemos que nunca mais queremos que os países tentem interromper a nossa cadeia de abastecimento através de sanções, perdemos esse mercado para sempre.
Portanto, o que os Estados Unidos estão a fazer no seu desespero para tentar impedir a independência da maioria global, os 85% do Ocidente da NATO, é forçar esses países a tornarem-se independentes para que deixem de precisar dos EUA. Tudo o que estão a fazer para o impedir tem exatamente o efeito oposto.
E isso acontece porque a mentalidade ocidental é a de intimidar, de pensar que se não fizerem o que queremos, vamos magoar-vos. E pensam que as sanções vão fazer mal sem pensar, o que é que os outros países vão fazer em resposta? Não estão a pensar nisso.
E se pensam, bem, vamos matar as galinhas para assustar os macacos com o que estão a fazer na Ucrânia e na Palestina, isso também está a levar outros países a acelerar o facto de que é melhor agirmos rapidamente na reunião dos BRICS deste ano, sob a liderança da Rússia, e nas conferências dos BRICS do próximo ano, sob a liderança da China. É melhor sermos capazes de fazer acordos com todos os nossos vizinhos euro-asiáticos que nos ajudem a criar uma massa crítica que nos permita deixar de depender do Ocidente da NATO.
E o que é que o Ocidente da NATO pode fazer? Só pode acelerar a sua violência. E quanto mais a acelerar, mais acelerará a partida dos convidados.
Tudo o que eles querem é ser deixados em paz. E os Estados Unidos estão a tentar impedi-los de o fazer, obrigando-os a fazer a escolha entre ou avançam sozinhos, ou vão acabar por se parecer com a Alemanha e outros protetorados americanos.
RICHARD WOLFF: Se me permitem, gostaria de retomar a conversa do Michael. A visão de Michael, curiosa e invulgarmente, recebe um enorme apoio de um artigo. Se ainda não o viram, permitam-me que vos inste e a todos os que estão a ouvir e a ver.
No dia 25 de julho, ou seja, há alguns dias, o Washington Post publicou um artigo absolutamente extraordinário. Tratava-se da forma como os últimos quatro presidentes dos Estados Unidos iniciaram e organizaram uma aceleração maciça daquilo a que chamam guerra económica.
Mas o que realmente quer dizer são sanções, e diz isso mesmo. E deixa bem claro que os Estados Unidos são o sancionador mestre. Menciona Biden, Trump, Obama e Bush. Agora, é claro, as sanções vêm de longa data. Um exemplo no artigo é Cuba. Sancionámos Cuba durante mais de meio século. O objetivo era livrarmo-nos de Fidel Castro. Que fracasso.
E depois, aqui estão duas coisas que expandem o ponto de vista do Michael. Este artigo, tudo o que vos estou a dizer, vem desse artigo, do Washington Post de 25 de julho. Não o podem perder.
Primeira estatística. Os Estados Unidos têm atualmente, pendentes, 15 000 objectos sancionados. Indivíduos, corporações, países inteiros. 15 000. E nessa posição, os Estados Unidos ocupam o primeiro lugar, diz o Washington Post.
E o número dois é menor, tem cerca de 5 000. Portanto, cerca de um terço do que são os Estados Unidos, o número dois, e talvez fique surpreendido, o segundo país que impõe sanções no mundo é a Suíça. Certo? Por outras palavras, são os Estados Unidos. A Rússia e a China não aparecem na lista do Washington Post. Eles não fazem isso. Não o fazem.
Então, perguntamo-nos uma questão que uma criança de cinco anos perceberia. Se um dos lados da chamada grande luta, nomeadamente o Ocidente, os Estados Unidos, está a impor sanções em todo o lado, e o outro lado desta grande luta não está a impor sanções em lado nenhum, o que poderá explicar esta estranha situação, sabe, eles têm drones, nós temos drones, eles têm mísseis, nós temos mísseis, eles têm sanções, nós não temos. Nós temos sanções, eles não.
Bem, a resposta é a questão levantada pelo Michael, que eu quero realçar. Quando se sanciona um país, a liderança desse país, as pessoas que dirigem a sociedade, são quase sempre imunes. Não vão mudar de roupa, não vão fazer uma dieta diferente, não vão deixar de conduzir o seu carro. A dor que as sanções podem impor, e impõem de facto, é à massa de pessoas que sofrem, sabe, de pobreza, como Cuba que não teve acesso a medicamentos, drogas e assim por diante.
Então, como é óbvio, o que é que os líderes de uma sociedade sancionada fazem? Deixar bem claro, como sua prioridade número um, que a culpa não é sua como líder desse país, não é culpa do seu partido político, é culpa dos Estados Unidos. As sanções são uma forma de mobilizar a opinião pública mundial contra os Estados Unidos como o grande sancionador do nosso tempo.
Este é um programa em que se alinham os canhões para que sejam apontados diretamente para os nossos próprios pés. Isto é uma política de loucos.
Esqueçam todos os outros horrores e o sofrimento real que causa. É um programa auto-destrutivo e um sinal claro de que as pessoas que o seguem podem obter uma vantagem temporária no teatro político local, talvez, mas estão a pagar um preço inacreditável no futuro da sociedade e na sua própria capacidade de sobrevivência num mundo em que está a ficar cada vez mais isolada.
MICHAEL HUDSON: Quero dar uma perspetiva ao que o Richard acabou de dizer. Ele falou sobre o facto de as sanções estarem a mobilizar outros países para se apoiarem a si próprios, mas tem havido um efeito de retrocesso.
O principal efeito das sanções, especialmente contra a China, tem sido sobre os próprios Estados Unidos, os produtores. Richard e eu acreditamos na abordagem materialista da história, e a maior parte da nossa abordagem sempre foi: bem, o que os países fazem reflecte o interesse da sua comunidade empresarial, da comunidade financeira ou das elites.
Mas vejamos o que aconteceu na América com as sanções que foram impostas contra a venda de chips de computador e tecnologia da informação à China. A Intel [NR]e outros países disseram que se obedecerem às sanções que a administração Biden impôs, e especialmente se seguirem as sanções que Trump vai impor, lá se vão os seus lucros.
Os lucros da comunidade empresarial dos Estados Unidos têm sido, em grande parte, exportados para estes países que estão agora sujeitos às sanções que o próprio governo americano tem vindo a impor.
Ora, como conciliar o facto de as sanções americanas que são impostas pelos neoconservadores e pelos neoliberais serem contra a procura de lucros pelos principais sectores americanos, os sectores da informática, os construtores de automóveis, todos os outros?
Poder-se-ia dizer que as sanções acabam por penalizar muito mais a economia americana do que a dos outros países, porque enquanto os outros países têm uma interrupção a curto prazo do seu abastecimento, têm uma independência a longo prazo.
E para a América, este efeito a longo prazo, e mesmo o efeito a curto prazo, é retirar aos exportadores americanos, aos principais sectores industriais, certamente na bolsa, retirar-lhes este mercado. Está perdido.
Portanto, o que os americanos estão a fazer é auto-isolarem-se. Durante anos, todos nós pensámos que, de alguma forma, a maioria global se iria reunir e elaborar um meio de se tornar independente e ajudar os seus próprios interesses económicos.
Mas, ironicamente, são os Estados Unidos que estão a conduzir isto, não a China, não a Rússia, não estes outros países. Estão a reagir aos EUA que estão essencialmente a adotar políticas economicamente suicidas.
RICHARD WOLFF: Sim, também reparei nisso. Se lermos, por exemplo, as declarações publicadas periodicamente pela Câmara de Comércio dos Estados Unidos, percebemos o que o Michael está a dizer.
Eles estão muito nervosos. Não querem esta luta com a China. Representam um grande número de empresas que colocaram grandes quantidades de investimento na China. Não querem perdê-los. A China é o maior mercado e o que mais cresce no mundo. Ninguém quer ser excluído. Todas as escolas de gestão ensinam que se quer ganhar muito dinheiro. Vai-se para onde os salários são baratos e o mercado está a crescer. Ora, são estas outras partes do mundo. É lá que tudo isso está a acontecer. E isso vai ultrapassar a concorrência do Ocidente, mais cedo ou mais tarde.
Eles dizem tudo isso, por isso a pergunta do Michael mantém-se. O que é que se está a passar? E aqui está o melhor que posso fazer. Estou a adivinhar e espero que vocês ou o vosso público me esclareçam se estiver a cometer um erro.
Eles não estão a ver do que estamos a falar. Por outras palavras, quando disse há pouco, um pouco a brincar, que viviam nos anos 60 e 70, quando o domínio dos Estados Unidos era real. Talvez haja mais verdade nisso do que a minha zombaria deixaria entender.
Que eles acreditam de facto que este é um desafio temporário, momentâneo, que são capazes, estão dispostos e são capazes de esmagar. E que se dirigem a estas empresas e dizem: "Sim, sim, compreendemos que este tipo de tarifa é mau para vós, desta forma, daquela forma e da forma seguinte. No entanto, tenham paciência connosco, porque vamos ser bem sucedidos. E quando o conseguirmos, e está mesmo ao virar da esquina, vamos derrotá-los.
E depois vamos dividir a Rússia, que se tornará em 20 pequenos países como o resto da Europa de Leste, facilmente manipuláveis por todos nós. E quando acabarmos com a Rússia, faremos o mesmo com a China. E então, uau, teremos um mundo? Porque teremos integrado a Rússia e a China no nosso sistema de subordinação. É o sonho do colonialismo e do imperialismo desde há muito, muito tempo. É uma economia mundial unificada sob o domínio do Ocidente.
E para eles, que foram educados assim, que acreditam nisso, que passaram por esse período especial depois da Segunda Guerra Mundial, não é de admirar que pensem que esse projeto ainda é realizável. É um pouco mais difícil do que talvez tenham pensado. Mas é isso que eles vão fazer. E estamos todos aqui a perder o nosso tempo, Michael, tu, eu e todos os outros como nós, porque não vemos o panorama geral.
E é isso que eles dizem aos executivos das empresas. Sim, vão ter um ano, dois ou três, mas quando acabarmos, vão ficar contentes? E já agora, enquanto esperamos, vamos facilitar-vos as coisas. Vocês, os que têm chips, estão a perder o vosso mercado, vamos dar-vos um subsídio como nunca sonharam. Damos-vos este e aquele desconto. Por outras palavras, damos-lhe apoios para os seus lucros, tal como fazemos quando há uma recessão económica ou quando há uma pandemia ou qualquer outra coisa. Trata-se de um processo de ajustamento.
Assisti aos discursos da minha colega de curso, Janet Yellen. Andámos em Yale na mesma altura, tivemos os mesmos professores, tirámos o mesmo doutoramento, lemos os mesmos artigos, todos de pessoas que o Michael conhece demasiado bem. O nosso professor de macroeconomia foi James Tobin e o nosso professor de internacional foi Triffin, e por aí afora. Ela sabe e, no entanto, é uma gestora entusiástica para este momento difícil em que estamos a reorganizar o mundo para a próxima grande fase de acumulação de capital.
Michael, queres acrescentar alguma coisa? Muito bem, vamos ao conflito, à situação na Venezuela. O que é que aconteceu nos Estados Unidos? Eles tentaram fazer tudo para interferir na situação na Venezuela. Até o Elon Musk estava a fazer tudo para ajudar a situação na Venezuela.
RICHARD WOLFF: Sim, posso dizer uma coisa? Porque para mim há aqui um humor, e eu tento, nestes tempos negros, encontrar algum humor.
As mesmas pessoas que aqui nos Estados Unidos respondem a Donald Trump quando ele questiona a eleição, quando ele nega o resultado. Ele está assim a ameaçar a democracia. As pessoas na Venezuela que desafiam e ameaçam as eleições e negam o resultado estão a defender a democracia. É preciso ser um mágico para apreciar este tipo de truque, certo? A eleição aqui no nosso país, presumivelmente, nós sabemos tudo sobre ela.
A eleição a milhares de quilómetros de distância, num país diferente, com uma cultura diferente e uma língua diferente, podemos ser desculpados por não sabermos exatamente o que se está a passar.
Não, não, não. Sabemos que é uma ameaça à democracia quando se questiona o que acontece aqui, e que é uma defesa da democracia quando se rejeita uma eleição lá. E o conforto e a facilidade com que isto é dito.
Quando ninguém se apercebe da ironia que acabei de dizer, quando ninguém se apercebe disso, é muito óbvio. Se ninguém se apercebe, sabe-se o quão desesperado deve estar o disparate ideológico, porque está a obstruir o cérebro e a visão de pessoas que obviamente podiam e deviam saber mais.
MICHAEL HUDSON: O que Richard mencionou antes sobre as sanções reforçarem o apoio dos eleitores ao governo porque eles percebem que os problemas que a economia enfrenta são causados pelos Estados Unidos, a Venezuela fornece uma lição objetiva.
O problema que se coloca à Venezuela deve-se ao facto de um dos ditadores que os Estados Unidos impuseram ao país, não me lembro se foi Pérez ou outro, ter feito duas coisas. Colateralizaram os seus empréstimos em dólares estrangeiros com a indústria petrolífera venezuelana, incluindo a indústria petrolífera que tinha estendido a mão e utilizado os seus lucros para comprar a rede de distribuição americana para a venda do seu petróleo e gás.
Bem, os americanos começaram por apoderar-se de todas as participações da Venezuela nos Estados Unidos. Por outras palavras, apoderaram-se das suas reservas internacionais. É o que se poderia dizer do que hoje se chama um fundo de poupança nacional.
E, em segundo lugar, os Estados Unidos deram instruções à Grã-Bretanha para se apoderar do fornecimento de ouro da Venezuela e entregá-lo a um presidente que os Estados Unidos designavam. Os Estados Unidos dizem: "Olha, nós temos dois modelos de democracia para o mundo, a Ucrânia e Israel. Essas são as duas democracias. E a Venezuela, nós queremos acrescentar-lhe. Nós podemos nomear quem vai ser o chefe das democracias ou implantar uma oposição de mudança de regime.
Portanto, todos os acordos externos venezuelanos têm uma cláusula, tal como a Argentina tinha. Se houver uma disputa, ela será levada aos tribunais dos EUA. Outros países estão a olhar para a Venezuela e estão a pensar, aconteça o que acontecer, nunca teremos qualquer cláusula internacional que seja resolvida pelos tribunais dos Estados Unidos.
De facto, precisamos de um tribunal dos BRICS. Precisamos de um tribunal alternativo ao FMI, ao Banco Mundial e ao tribunal internacional. E será um tribunal dos BRICS entre nós. E em vez da ordem baseada em regras, será o verdadeiro Estado de direito. Portanto, está a ter essa função.
E também está, penso eu, a mostrar que se um país como a Venezuela é objeto de sanções, tal como os países africanos e os países latino-americanos, os países devedores do Sul Global são sancionados, isso é uma ação do bloco do dólar para os impedir de ganhar o dinheiro para pagar as suas dívidas em dólares. Isto torna-se uma desculpa legal, lógica e moral para repudiar as dívidas. É isso que vai ser a rutura definitiva. A rutura da desdolarização é o que vai ser o sinal desta fratura global entre a maturidade global e o Ocidente americano da NATO.
RICHARD WOLFF: Não posso perder esta oportunidade. E, mais uma vez, espero que as pessoas apreciem a ironia. Muitas das religiões do mundo – não sou especialista, por isso não posso dizer todas – mas muitas das religiões do mundo têm em si uma proposta muito próxima do que o Michael acabou de dizer.
Na religião cristã, chama-se o Jubileu. É uma ideia muito antiga, que existe há milhares de anos, segundo a qual quando uma sociedade começa a ficar tão amargamente dividida, que a cola que mantém a comunidade unida se dissolve, e a vida da comunidade é ameaçada pela desigualdade nos velhos tempos, por ter um grande pedaço de terra quando os seus concidadãos não tinham terra nenhuma, etc, etc.
O que se fazia periodicamente era apagar todas as dívidas. Apagavam-se todas as dívidas e começava-se de novo. Se se tratasse de terras, estas eram retiradas a quem as possuía e novamente divididas, talvez através de um sistema aleatório de "tu ficas com esta parte, tu ficas com aquela parte, e o outro fica com a outra parte", e depois vemos como corre. E se isso produzir uma desigualdade demasiado grande, bem, então, daqui a 10 ou 20 anos, vamos fazê-lo novamente.
Era uma forma de manter o que, numa linguagem moderna, seria a forma como os Estados Unidos gostavam de se descrever a si próprios como uma vasta classe média. Sabe, ninguém muito rico, ninguém muito pobre, toda a gente no meio.
Bem, o Jubileu tinha esse objetivo. O que Michael nos está a dizer é que o Jubileu também pode ser, não uma atividade regular voluntária, sancionada religiosamente, mas o Jubileu pode ser o fim explosivo quando não há outra alternativa para resolver o absurdo de um sistema que concentra grandes quantidades de riqueza nas mãos do credor e uma vida desesperada nas mãos do devedor.
Nessa altura, a esmagadora maioria, que é devedora, verá no Jubileu um desfecho muito feliz, e que os credores não o poderão impedir. Não terão recursos para o fazer e, nessa altura, o assunto estará encerrado. Já não se trata de uma questão de tribunais. É apenas o reconhecimento de que o contrato social exige o fim desta desigualdade, e o perdão da dívida é um golpe simples e direto para lidar com a maior parte dela.
MICHAEL HUDSON: O que Richard descreveu é, de facto, a distinção entre a civilização euro-asiática e a civilização ocidental. O meu livro, "... and Forgive Them Their Debts", e todos os livros que fiz com o meu grupo de Harvard sobre o Antigo Próximo Oriente, mostram que desde 2500 a.C., na Suméria, passando pela Babilónia, até aos seus vizinhos do Próximo Oriente, todas as sociedades, até à Judeia, cancelam as dívidas regularmente.
Todas elas tinham um rei – os manuais escolares chamam-lhes realeza divina, ou seja, um rei que tinha certas promessas aos deuses para manter a estabilidade. Todo o resto do mundo tem uma visão económica que é o oposto do que os americanos aprendem na escola.
Temos os modelos matemáticos babilónicos de 1800 AC. São mais sofisticados do que qualquer modelo utilizado pelo National Bureau of Economic Research. Os babilónios viram que, em todas as sociedades, o efeito natural da dívida é polarizar a sociedade entre credores e devedores.
Estavam bem cientes de que, se não se cancelassem as dívidas, surgiria uma oligarquia financeira. O papel do governante, quer se trate de Hamurabi ou de outros governantes do Médio Oriente, era impedir o desenvolvimento de uma oligarquia financeira.
Como os profetas bíblicos, Isaías e outros, a oligarquia vai usar o seu poder financeiro para endividar a população, para se apoderar das suas terras, e acabará por haver algumas pessoas que possuem todas as terras, que vão construindo lote a lote e casa a casa até já não haver espaço para a população livre na terra.
Bem, a Grécia clássica e a Itália foram os primeiros países do Ocidente a fundar a civilização ocidental. Eles não tinham governantes divinos e não cancelavam dívidas. Tinham uma oligarquia financeira.
Todos sabemos o que aconteceu a Roma num período de 500 anos. Houve revoluções, e acabámos por ter o colapso. Acabámos com a servidão e o feudalismo.
Enquanto o Ocidente seguia o cristianismo romano, não o cristianismo ortodoxo de Constantinopla, havia o Islão. E o Islão, normalmente, quando havia uma quebra de colheitas, cancelava, anulava todas as dívidas.
Por exemplo, foi o que aconteceu na Índia durante centenas de anos sob o Islão, até à chegada dos ingleses. Quando os ingleses tomaram conta da Índia, acabaram com a ideia da anulação das dívidas e deu-se uma polarização económica que se estendeu até à Índia de hoje, tornando-a um dos países mais desiguais do mundo.
Assim, poder-se-ia dizer que a caraterística definidora da civilização ocidental é, desde o início, deixar que se desenvolva uma oligarquia financeira.
E em todo o resto do mundo não ocidental, desde a Suméria babilónica, passando pelo Irão, pelo Islão, até ao Japão, foi assim. Na China, também. Esta costumava ser a caraterística distintiva entre a civilização euro-asiática e a ocidental, e eu esperaria que os grupos BRICS que estão a negociar a desdolarização reinventassem a roda e reinventassem a mesma ideia de que nenhum país deve colocar o pagamento de uma classe credora para criar uma oligarquia acima da ideia de equilíbrio social que permite que toda a economia cresça e se torne mais produtiva e sobreviva.
Para sobreviver e evitar cair numa idade das trevas e na servidão, é preciso ter uma autoridade superior à oligarquia que vai anular as dívidas.
E a civilização ocidental não tem uma autoridade superior. Temos, como dizia Aristóteles, as constituições de muitos países que se dizem democráticas. Na realidade são oligarquias. Todas as economias da civilização ocidental, nos últimos 2000 anos, foram oligárquicas.
A Ásia tem um contexto histórico completamente diferente. E tal como o Presidente Putin, na Rússia, está a tentar dizer que a Rússia tem uma caraterística civilizacional distinta, estou à espera que a China e outros países asiáticos e os países islâmicos digam que também temos um passado, e não é o do cristianismo romano. Vamos pôr os interesses globais à frente dos interesses de classe de uma classe financeira. Estou à espera que isso seja uma caraterística distintiva do que estamos a ver como uma rutura civilizacional.
Se me for permitido, deixem-me traduzir isto para a história americana muito recente. A sabedoria do assunto vai muito, muito longe.
Até cerca da década de 1970, mais ou menos, era possível ver a produtividade dos Estados Unidos a aumentar de forma lenta e constante, e os salários a aumentar de forma lenta e constante, mais ou menos. Ninguém deve ficar perplexo com este facto. A produtividade é o que o trabalhador dá ao empregador, e o salário é o que o empregador dá ao trabalhador. E os dois estavam a subir bem juntos. Os patrões obtinham mais lucros, os trabalhadores recebiam salários mais elevados. Esta situação manteve-se durante muito tempo e deu aos Estados Unidos um crescimento notável, ajudou a desenvolver a ideia de que cada geração vive melhor do que a anterior, e tudo isso.
Depois, na década de 1970, por uma série de razões, os salários reais estabilizaram. Deixaram de subir. A produtividade continua a subir. Bem, em inglês, simples, isso significa que o que os trabalhadores dão aos empregadores continua a subir e a subir e a subir, mas o que os empregadores dão aos trabalhadores não.
E é por isso que temos tido um boom de lucros nos últimos 40 ou 50 anos, e um boom no mercado de acções. Mas agora vem o outro lado da moeda. Se martelarmos a classe trabalhadora com o sonho americano, é isto que faz de nós um trabalhador de sucesso. É preciso ter um carro e uma casa. É preciso mandar o filho para a universidade. É preciso ter férias de várias semanas.
Se estamos a exigir a autoestima das pessoas, mas não lhes damos um salário que lhes permita pagar, o que é que vamos fazer? Vão endividá-las, porque é a única forma de terem o sonho americano, pedindo empréstimos e entrando no desastre da dívida.
E aqui está a dupla ironia. De onde é que vêm os credores? Os credores são os empregadores, porque os seus lucros têm vindo a aumentar, uma vez que a produtividade aumenta e os salários não. Portanto, têm a produtividade crescente para emprestar aos trabalhadores, porque para eles é fácil. Prefiro dar ao meu trabalhador um salário crescente ou um salário fixo e um empréstimo, que ele tem de pagar? Bem, isso é fácil. Nós sabemos o que vamos fazer. Portanto, é isso que temos.
E, nos últimos 40 anos, mergulhámos o povo americano num nível de endividamento que nunca ninguém viu. Dívida hipotecária, dívida estudantil, dívida de cartão de crédito, quero dizer, dívida automóvel. Se somarmos tudo, estamos a falar de um número cada vez maior de famílias com uma dívida superior ao seu rendimento anual. Quer dizer, isto é impossível.
Entretanto, a riqueza no topo é uma riqueza não só de obter o excedente do trabalhador na produção, mas também de receber o pagamento de juros quando se empresta o dinheiro em vez de lhe pagar um salário. Ou seja, este é um sistema que garantidamente produzirá desigualdades grotescas.
E é exatamente essa a história que o Michael tem estado a contar-vos. Quer recuemos à antiga Suméria ou estejamos aqui, nos Estados Unidos, nos últimos 50 anos, estamos a assistir a sistemas diferentes, mas que têm em comum o facto de, a menos que se faça algo de fundamental em relação a eles, produzirem uma desigualdade que se aprofunda e piora cada vez mais.
Thomas Piketty, há alguns anos, documentou-o no seu livro Capitalism, e depois rebentou. E a questão que se coloca é a seguinte: estamos no ponto de rutura? Estamos a aproximar-nos do ponto de rutura?
E a minha suspeita é, voltando ao início, que o nível de violência que se vê na Ucrânia, na Palestina, é um sinal de que estamos a agarrar-nos desesperadamente a algo cuja razão de ser já desapareceu há muito tempo.
MICHAEL HUDSON: Bem, o que o Richard descreveu foi o quanto o capitalismo se transformou. Ele acabou de mencionar como o capitalismo industrial tornou a América rica, e eles perceberam que o trabalho altamente remunerado, bem alimentado, bem educado e bem vestido era mais produtivo para os seus empregadores do que o trabalho pobre. E esta era essencialmente a filosofia económica do capitalismo industrial.
Bem, então aprendemos com Marx que o que distingue o capitalismo industrial é que os empregadores contratam mão-de-obra e vendem os produtos que a mão-de-obra produz com um lucro acima do que têm de pagar pelo custo da mão-de-obra.
Mas agora, vejam o que o Richard descreveu, e o que eu descrevi, sobre a dívida que os assalariados americanos – não lhes quero chamar classe média, porque na verdade não havia uma classe média, eles são assalariados – e a grande exploração deles já não é primordialmente apenas pelo facto de os empregadores industriais ficarem com os lucros do que os assalariados criam, porque afinal de contas, estamos a desindustrializar-nos.
A grande exploração que está a ocorrer é, em grande parte, no serviço da dívida. O 1% mais rico, talvez se possa dizer 10%, da população tem a maioria dos 90% endividados, e o rendimento que é pago aos 10% mais ricos é sugado dos 90% sob a forma de serviço da dívida.
E, mais importante ainda, o que é que esses 10% fazem com o dinheiro? Não gastam toda esta renda económica, juros e ganhos financeiros em bens e serviços. Compram ações, obrigações e bens imobiliários, ou emprestam ainda mais dinheiro a famílias para comprarem bens imobiliários, ou a empresas para adquirirem empresas.
Assim, o que se verifica é que a elite económica não ganha dinheiro empregando mão-de-obra para obter lucros e enriquecer com a poupança dos lucros, mas sim através de engenharia financeira, de ganhos de capital.
E o Richard acabou de mencionar o imenso aumento do mercado de ações, do mercado de obrigações, do mercado imobiliário. Há toda uma concentração na inflação dos preços dos ativos, nos direitos de propriedade e nos direitos dos credores para transformar o resto da economia numa cidadania de devedores e arrendatários.
Foi isso que aconteceu no feudalismo, basicamente. De alguma forma, a revolução industrial da Europa e dos Estados Unidos tinha a ideia de que iria evoluir para algo muito próximo do socialismo. E já falámos anteriormente que, no século XIX, toda a gente era a favor do socialismo, de um tipo ou de outro, de muitos tipos diferentes de socialismo.
Mas tudo isso mudou depois da Primeira Guerra Mundial, e os proprietários de terras, os banqueiros e os monopolistas ripostaram e lutaram contra a regulamentação governamental. Disseram que não existe rendimento não ganho, que não existe renda económica. Tudo é ganho, tal como os lucros. Os bancos ganharam dinheiro cobrando juros e ainda mais do que juros, as taxas de penalização por atrasos. Tudo isso é rendimento do trabalho.
E assim temos toda uma transformação na ideia do que é a riqueza e do que é a economia. E já não é a ideia que o capitalismo industrial tinha há dois séculos. É algo completamente diferente. É o capitalismo financeiro a que muitas pessoas chamam agora neo-feudalismo. É uma transformação.
É isso que está a afastar os outros países, porque o que é que fez a China enriquecer? Claro que é o socialismo, mas é também o socialismo que está a seguir exatamente o mesmo padrão que fez a América, a Alemanha e a França enriquecerem no século XIX. É o capitalismo industrial e o socialismo juntos, porque os industriais queriam um sector público ativo. Queriam infraestruturas públicas ativas para manter baixo o custo de vida e de fazer negócios, para subsidiar a sua produção.
Todos estes subsídios foram agora desmantelados pela luta contra o governo, pelo libertarianismo. Se se desativar a ação do governo, a regulamentação do governo e o investimento de capital do governo, uma vez que todas as economias são planeadas, o planeamento passa para a Wall Street. E hoje, temos o capitalismo da Wall Street, não o capitalismo industrial. É essa a verdadeira transformação que, ao nível mais profundo, separa atualmente o Ocidente da NATO daquilo que, penso eu, estamos a ver evoluir na Eurásia.
RICHARD WOLFF: Precisamente devido a esta concentração de riqueza, temos a reação que a riqueza concentrada sempre apresentou. As pessoas que estão no topo, que estão a reunir toda esta riqueza através da produção, e depois, quando esta se desvanece através da manipulação e reorganização financeiras, apercebem-se, à medida que se tornam cada vez mais ricas em relação à massa da população, que a sua riqueza está em jogo, que estão numa posição vulnerável.
Provavelmente não conseguem ultrapassar a ironia. Fizeram tudo para se tornarem ricos e poderosos e sentem-se menos seguros do que nunca nessa posição. E numa sociedade que valoriza, como ainda valorizamos, o sufrágio universal ou algo próximo disso, isso coloca-nos numa posição verdadeiramente vulnerável.
O número de empregadores é muito pequeno e o número de empregados é muito grande. O sufrágio universal, sabe-se onde é que isso pode dar. Os trabalhadores poderiam, em qualquer altura, votar para anular a desigualdade criada pela economia capitalista.
Ouve-se quando se discute, ainda que reprimida, a tributação progressiva. Quando se ouvem as queixas: "Caramba, tributamos os ganhos de capital a uma taxa mais baixa do que tributamos os rendimentos do trabalho", e por aí afora.
Então o que é que eles fizeram? Fizeram a única coisa que obviamente tinham de fazer. Têm de neutralizar o sistema político, o que fazem comprando-o. Porquê comprá-lo? Porque esse é o único recurso que eles têm. E os políticos podem ser obrigados a precisar de dinheiro. Isso foi fácil. E agora emprestamos-lhes o dinheiro, ou damos-lhes o dinheiro, e eles devolvem-nos ainda mais privilégios do que tínhamos antes.
Assim, os militares industriais têm o seu monopólio, e os médicos têm o seu monopólio. Agora, os fabricantes de chips estão a trabalhar rapidamente para organizar o seu monopólio. Torna-se então a velha anedota feudal de um punhado de monopolistas que se sentam no topo com os políticos necessários, e os políticos desenvolvem o palavreado para fazer com que tudo isto pareça natural, normal, que tenha a ver com tecnologia, qualquer coisa que não seja a verdadeira questão de como se organizou o local de trabalho.
E quando as pessoas dizem, bem, porque é que isto está a ir nesta direção? Deixem-me, deixem-me ser professor por um momento. O sistema capitalista organiza-se da mesma forma que o sistema feudal e o sistema de escravatura, de uma forma muito estranha. Pega num grupo muito pequeno de pessoas e coloca-as numa posição muito elevada. Os mestres, os senhores e os patrões.
É por isso que estamos tão desiludidos com o facto de a revolução para acabar com a escravatura o ter conseguido. Conseguiu-o. Mas acolheu o feudalismo, que, embora melhor do que a escravatura, não fazia das pessoas objectos como gado. No entanto, havia o senhor e o servo.
E depois tivemos as revoluções francesa e americana com todas as suas grandes esperanças de liberdade, igualdade, fraternidade e tudo o resto. Mas o que fizemos foi construir o capitalismo, que tem o patrão e o empregado, que é uma réplica do pequeno grupo no topo.
Então, porque é que nos surpreendemos com o facto de o nosso sistema financeiro e, na verdade, o nosso sistema político, reproduzirem um pequeno grupo de pessoas que tomam a decisão? Todos sabemos que é um pequeno grupo que toma as decisões em todo o lado. Lamentamo-lo, criticamo-lo, mas está incorporado na forma como o capitalismo se organiza na base, em todas as fábricas, escritórios e lojas. É assim que se faz.
A única exceção é um grupo de pessoas que tem uma cooperativa de trabalhadores, ou qualquer outro tipo de cooperativa. E essas são pessoas que não querem o capitalismo, mas que muitas vezes nem sequer podem dizer essas palavras devido à forma como a nossa ideologia e o nosso sistema educativo funcionam.
Mas se alguma coisa do que eu e o Michael temos dito tem validade, é porque se baseia num sistema económico que impõe esse estranho e totalmente antidemocrático arranjo como se fosse o normal necessário.
Recordo-me que, antes de nos livrarmos dos reis, vivíamos em sociedades em que a maioria das pessoas achava absolutamente apropriado que o neto de alguém que já morreu há muito tempo governasse sobre mim, porque ele ou ela discute com Deus todas as terceiras quintas-feiras, se não chover, como gerir tudo.
Sabes, o quê? Livrámo-nos dos reis e descobrimos que não precisávamos deles. Adivinha? Podem livrar-se do diretor executivo e descobrirão que nunca precisámos dele. Mas isso é demasiado nesta altura do desenvolvimento americano e de grande parte do mundo. Ainda temos de fazer um esforço para abrir este espaço para sequer pensar em tais coisas, quanto mais avaliar racionalmente sistemas alternativos.
MICHAEL HUDSON: Portanto, o que mantém tudo isto é a ilusão, como disse Margaret Thatcher, de que não há alternativa (TINA).
Agora, Richard e eu, e de facto todos os convidados que tem tido, Nima, no seu programa, temos um denominador comum. Estamos todos a dizer que há uma alternativa, e é por isso que os convidados que tem no seu programa não aparecem no New York Times e no Washington Post, e não estamos nos talk shows da televisão. Estamos a dizer que há uma alternativa, e esse é o pesadelo, o horror que a classe dominante no Ocidente tem, e é esse pesadelo que volta ao que Richard disse antes, o pânico.
É o pensamento de que os BRICS podem realmente ter um sistema económico diferente que assenta numa base completamente diferente de ganho mútuo e crescimento económico. Não se pode chamar a isto uma armadilha de Tucídides. A China, a Rússia e os BRICS não estão a tentar competir com os Estados Unidos, a Inglaterra e a Europa no seu próprio jogo. Não querem jogar esse jogo. Estão a dizer: "Não vamos seguir esse caminho. Não vamos competir convosco. Queremos que sigam o vosso caminho. Nós seguimos o nosso caminho. Estamos a criar uma civilização alternativa. Não tem de ser assim. Essa é a alternativa deles à TINA, e acho que é disso que todos os convidados dos vossos programas têm falado há já algum tempo.
RICHARD WOLFF: Têm estado a encontrar resistência. Concordo com o Michael. Encontram resistência porque é muito difícil para os responsáveis, que têm estado no comando durante o último século ou mais, admitir que isto possa existir.
A ironia é que estão convencidos de que a Rússia e a China os querem dominar, naquilo a que os psicólogos chamam pura projeção. É o colonialismo e o imperialismo europeus que encaram a emergência de qualquer outro país como um desafio, porque não conseguem imaginar que alguém não queira fazer-lhes o que eles sabem que, algures, têm feito ao resto do mundo.
Penso que se pode ver isso. Penso que o estamos a ver na Ucrânia e em Israel e, mais uma vez, na Palestina. Estamos a ver a capacidade de pessoas que, de outra forma, foram civilizadas em todos os aspectos, descerem a níveis de comportamento que esperávamos que, em meados do século XX, nunca mais voltássemos a ter. Como no slogan, nunca mais, e no entanto aqui está, apenas com os papéis invertidos e não com o problema resolvido.
NIMA: Só para terminar esta sessão, Michael e Richard, há um artigo no Economist. Diz que a China está a construir enormes reservas secretas de alimentos, matérias-primas e recursos energéticos para se preparar para possíveis problemas futuros. Acham que a China está a preparar-se para uma grande guerra com o Ocidente ou estão a falar assim porque querem imaginar isso na mente dos ocidentais?
RICHARD WOLFF: Bem, devo dizer-lhe que não posso falar obviamente pelos chineses e não compreendo a sua motivação nesta situação. Não tenho informações privilegiadas, mas digo-lhe o seguinte.
Se eu fosse um cidadão chinês e estivesse envolvido nestas discussões, diria a mim mesmo que, dadas as sanções dos Estados Unidos, desde as guerras tarifárias e comerciais de Trump até à continuação da maioria delas por Biden, dado todo o absurdo de Taiwan, dada a presença da frota no Mar da China Meridional, é preciso fazer preparativos. Caso contrário, é um líder incompetente. Tem de se proteger.
Poderão ter intenções agressivas? Não tenho conhecimento disso, mas não sei. Não estou a afirmar que sei. Mas não é necessária uma intenção agressiva para justificar o que acabou de dizer.
Os Estados Unidos, e isso remete para algo que o Michael disse, os Estados Unidos estão a dar não só à China a razão para o fazer, mas isto é mais importante. Todo o resto do mundo tem as mesmas razões que eu acabei de mencionar. Os observadores, os outros países, olham para a notícia que acabou de dar de que estão a armazenar alimentos e outras coisas. E perguntam a si próprios: isso é agressivo? E vão dar a mesma resposta que eu. Podem certamente ver nas manchetes de todos os dias o que se está a passar em todas as sessões da ONU, em todos os debates sobre se é a Ucrânia ou qualquer outro país.
Os Estados Unidos estão ocupados a aplicar 15 000 sanções para tentar fazer com que o mundo se comporte como eles querem. É para isso que servem as sanções. Mais ninguém tem a audácia de pensar assim.
E o que os Estados Unidos estão a descobrir com grande raiva é que podem pensar tudo ao mesmo tempo. Só não o conseguem fazer. As sanções, como o artigo do Washington Post admite, não funcionam. E, como Michael acrescentou, pior do que não funcionarem, elas pioram as coisas para os EUA.
Por isso, mais uma vez, é um sinal de uma sociedade com grandes problemas.
MICHAEL HUDSON: Bem, como o Richard e eu dizemos, não acreditamos em obter informações do New York Times e do Washington Post, mas há uma coisa que se obtém. E se formos chineses, é a única coisa que vale a pena ler no Times e no Post, e é que, dia após dia, a China é nossa inimiga. Os diplomatas americanos vão à China e dizem: "Não queremos que dêem qualquer apoio à Rússia, porque se lhes derem comida, eles podem alimentar soldados. Se lhes derem tecido, eles podem tecê-lo em uniformes. Não podem ajudar a Rússia porque queremos que a Rússia perca, para depois podermos lutar contra vocês e fazer-lhes o que fizemos à Rússia e à Ucrânia e fazer-lhes o que Israel fez aos palestinos.
Bem, eles lêem isto todos os dias. Eles podem ler os discursos americanos. Não creio que os americanos leiam os discursos do Presidente Putin ou do ministro de Estado Lavrov, e os chineses não são tão explícitos como os russos, mas podem ler a imprensa americana e pensam que toda a economia dos EUA tem como objetivo, se não a guerra, pelo menos a obtenção de lucros elevados para o complexo militar-industrial. Mesmo que as suas armas não funcionem, pelo menos são enormes lucros com custos acrescidos ao abrigo do capitalismo do Pentágono, uma outra forma de capitalismo de que ainda não falámos. E assim, sim, eles estão a preparar-se para agir sozinhos.
Não creio que estejam necessariamente a armazenar estas matérias-primas, como as terras raras e tantos outros produtos, hélio, outros produtos que estão a ter para si próprios, mas estão a tentar usar a posse destas matérias para falar com os outros vizinhos euro-asiáticos que têm e dizer: "Olhem, podemos ajudar-vos a tornarem-se independentes e a fazerem parte de uma civilização em crescimento na Eurásia. Temos o material necessário para vos apoiar. Já não precisam de depender do que os Estados Unidos, a Inglaterra e a Alemanha vos podem dar.
Penso que eles têm uma ideia que abrange toda a região, não apenas uma defesa militar, mas uma alternativa económica. A defesa deles vai ser: "Não queremos entrar em guerra. Queremos uma alternativa económica. E talvez um dia, daqui a uma ou duas gerações, o Ocidente pense: "Bolas, a Eurásia está a avançar e nós não. Talvez devêssemos adotar a civilização euro-asiática e perceber que a civilização ocidental não foi tão bem sucedida como nos ensinaram.
RICHARD WOLFF: Sabe, não foi assim há tantos anos que os europeus se juntaram e obtiveram algum apoio dos governos e enviaram expedições à China e descobriram que eles sabiam fazer têxteis melhor do que os europeus, que a sua dieta era muito melhor. Não é a primeira vez.
Quer dizer, há um nível de auto-ilusão no Ocidente que é mais uma parte de uma situação de declínio, quando não nos conseguimos abrir nem sequer à nossa própria história.
NIMA: Muito obrigado por estarem conosco hoje, Richard e Michael. É um grande prazer, como sempre.
RICHARD WOLFF: Sim, e está a tornar-se muito interessante, pelo menos para mim, um trio muito interessante que estamos a realizar aqui.
MICHAEL HUDSON: Sim, estou a adorar.
NIMA: Muito obrigado. Vemo-nos em breve.