Política de financiarização neoliberal dos EUA
vs. socialismo industrial da China
por Michael Hudson
Quase meio milénio atrás,
O Príncipe
de Niccolo Machiavelli descreveu três opções de como uma
potência conquistadora poderia tratar os estados que derrotou na guerra,
mas que "estavam habituados a viver sob suas próprias leis e em
liberdade: ... a primeira é arruiná-los, a seguinte é
residir lá pessoalmente, a terceira é permitir que vivam sob suas
próprias leis, arrecadando um tributo e nele estabelecendo uma
oligarquia que manterá amizade para consigo".
[1]
Maquiavel preferia a primeira opção, mencionando a
destruição de Cartago por Roma. Foi o que os Estados Unidos
fizeram com o Iraque e a Líbia depois de 2001. Mas na Nova Guerra Fria
de hoje o modo de destruição é em grande medida
económico, por meio de sanções comerciais e financeiras,
tal como as que os Estados Unidos impuseram à China, Rússia,
Irão, Venezuela e outros. adversários designados. A ideia
é negar-lhes insumos essenciais, principalmente em tecnologia e
processamento de informação essenciais, matérias-primas e
acesso a conexões bancárias e financeiras, tais como as
ameaças dos EUA de expulsar a Rússia do sistema de
compensação bancária SWIFT.
A segunda opção é ocupar os rivais. Isto é feito
apenas parcialmente pelas tropas nas 800 bases militares americanas no
exterior. Mas a ocupação habitual e mais eficiente é
através de aquisições corporativas americanas da sua
infraestrutura básica, possuindo seus activos mais lucrativos e
remetendo sua receita de volta ao núcleo imperial.
O presidente Trump disse que queria confiscar o petróleo do Iraque e da
Síria como reparação pelo custo da
destruição das suas sociedades. Seu sucessor, Joe Biden, procurou
em 2021 nomear Neera Tanden, leal a Hillary Clinton, para chefiar o Gabinete de
Gestão e Orçamento (OMB) do governo. Ela instou a que os Estados
Unidos obrigassem a Líbia a entregar suas vastas reservas de
petróleo como reparação pelo custo da
destruição da sua sociedade. "Temos um défice
gigante. Eles têm muito petróleo. A maior parte dos americanos
escolheria não se envolver no mundo por causa desse défice. Se
quisermos continuar a nos envolver no mundo, gestos como fazer com que
países ricos em petróleo nos paguem parcialmente
não me parecem loucura".
[2]
Os estrategas americanos preferiram a terceira opção de
Maquiavel: Deixar o adversário derrotado nominalmente independente, mas
dominar por meio de oligarquias clientes. O conselheiro de segurança
nacional do presidente Jimmy Carter, Zbigniew Brzezinski, referiu-se a eles
como "vassalos", no significado medieval clássico de exigir
lealdade aos seus patronos americanos, com um interesse comum em verem a
economia sujeita privatizada, financiarizada, tributada e transferida para os
Estados Unidos pelo seu patrocínio e apoio, com base numa reciprocidade
de interesses contra a afirmação democrática local de
auto-suficiência nacionalista e de manter o excedente económico em
casa a fim de promover a prosperidade interna ao invés de
enviá-lo para o exterior.
Esta política de privatização por uma oligarquia cliente
com sua própria fonte de riqueza baseada na órbita dos EUA foi o
que a diplomacia neoliberal americana consumou nas ex-economias
soviéticas depois de 1991 para assegurar a sua vitória na Guerra
Fria sobre o comunismo soviético. A forma como as oligarquias clientes
foram criadas foi uma
grabitization
[NT]
que rompeu totalmente as interconexões económicas que tornam
as economias integradas. "Para dizer isto numa terminologia que remonta
à era mais brutal de antigos impérios", explicou Brzezinski,
"os
três grandes imperativos da geoestratégia imperial são
evitar conluio e manter a dependência de segurança entre os
vassalos, mantê-los como tributários cordatos, protege-los para
evitar que os bárbaros se unam".
[3]
Depois de reduzir a Alemanha e o Japão à vassalagem a seguir
à sua derrota na Segunda Guerra Mundial, a diplomacia dos Estados Unidos
em 1946 fez o mesmo à Grã-Bretanha e a sua área da libra
imperial, seguida no devido tempo pelo resto da Europa Ocidental e suas antigas
colónias. O próximo passo foi isolar a Rússia e a China,
enquanto evitava que "os
bárbaros se unissem". Se se unissem, advertia Brzezinski, "os
Estados Unidos podem ter de determinar como enfrentar coligações
regionais que procuram expulsar os EUA da Eurásia, ameaçando
assim o status da América como potência global".
[4]
Em 2016, Brzezinski viu a Pax Americana desfazer-se dado o seu fracasso em
atingir estes objectivos. Ele reconheceu que os Estados Unidos "não
são mais a potência imperial global".
[5]
Foi isso que motivou o seu crescente antagonismo em
relação à China e à Rússia, juntamente com o
Irão e a Venezuela.
TRANSIÇÃO: o problema não era a Rússia, cuja
nomenklatura
comunista deixou o seu país ser dominado por uma cleptocracia orientada
pelo ocidente, mas a China. O confronto EUA-China não é
simplesmente uma rivalidade nacional, mas um conflito económico e de
sistemas sociais. A razão pela qual o mundo de hoje está a ser
mergulhado numa Guerra Fria 2.0 económica e quase militar pode ser
encontrada na perspectiva de controle socialista daquilo que as economias
ocidentais desde a antiguidade clássica trataram como activos geradores
de renda de propriedade privada: moeda e bancos (junto com as regras que
regem
a dívida e execução hipotecária), terra, recursos
naturais e monopólios de infraestrutura.
O contraste entre dinheiro, crédito, terra e monopólios naturais
privatizados e concentrados nas mãos de uma oligarquia
rentista
ou utilizados para promover a prosperidade geral e o crescimento tornou-se
basicamente um contraste entre capitalismo financeiro e socialismo. No entanto,
em termos mais vastos, este conflito já existia há 2500 anos, no
contraste entre a realeza do Oriente Próximo e as oligarquias grega e
romana. Tais oligarquias, ostensivamente democráticas numa forma
política superficial e de ideologia hipócrita, lutaram contra o
conceito de realeza. A fonte dessa oposição era que o poder real
ou o dos "tiranos" internos poderia patrocinar o que os
reformadores democráticos gregos e romanos estavam a advogar: o
cancelamento de dívidas para salvar as populações de serem
reduzidas à servidão da dívida e à
dependência (e em última análise à
escravidão) e a redistribuição de terras para impedir que
a sua propriedade se polarizasse e se concentrasse nas mãos de credores
e latifundiários.
Do ponto de vista actual dos Estados Unidos, tal polarização
é a dinâmica básica do neoliberalismo hoje patrocinado pelo
país. China e Rússia são ameaças existenciais
à expansão global da riqueza financiarizada
rentista.
A Guerra Fria 2.0 actual visa dissuadir a China e potencialmente outros
países de socializar seus sistemas financeiros, terras e recursos
naturais, e manter no domínio público as empresas de
serviços de infraestrutura a fim de impedir que sejam monopolizados em
mãos privadas para desviar rendas económicas a expensas do
investimento produtivo em crescimento económico.
Os Estados Unidos esperavam que a China fosse tão crédula quanto
a União Soviética e adoptasse uma política neoliberal que
permitisse que sua riqueza fosse privatizada e transformada em
privilégios de extracção de renda, para ser vendida aos
americanos. "O que o mundo livre esperava quando saudou a entrada da China
no organismo do livre comércio [a Organização Mundial do
Comércio] em 2001", explicou Clyde V. Prestowitz Jr, conselheiro
comercial no governo Reagan, era que "desde a época da
adopção de Deng Xiaoping de alguns métodos de mercado, em
1979, e especialmente após o colapso da União Soviética em
1992 ... o aumento do comércio e do investimento na China levasse
inevitavelmente à mercantilização de sua economia, ao
desaparecimento das suas empresas estatais".
[6]
Mas, ao invés de adoptar o neoliberalismo baseado no mercado, queixou-se
Prestowitz, o governo da China apoiou o investimento industrial e manteve o
controle da dívida e do dinheiro nas suas próprias mãos.
Esse controle governamental estava "em desacordo com as regras do sistema
global liberal" de acordo com as linhas neoliberais que haviam sido
impostas às antigas economias da soviéticas depois de 1991.
"Mais fundamentalmente", resumiu Prestowitz:
"A economia da China é incompatível com as principais
premissas do sistema económico global hoje corporificadas na
Organização Mundial do Comércio, no Fundo Monetário
Internacional, no Banco Mundial e numa longa lista de outros acordos de livre
comércio. Estes pactos pressupõem economias que sejam baseadas
primariamente no mercado, com o papel do Estado circunscrito e as
decisões microeconómicas deixadas em grande parte aos interesses
privados que operem sob um estado de direito. Este sistema nunca previu uma
economia como a da China, na qual empresas estatais respondem por um
terço da produção; a fusão da economia civil com a
economia estratégico-militar é uma necessidade do governo; planos
económicos quinquenais orientam o investimento para sectores-alvo; um
partido político eternamente dominante nomeia os CEOs de um terço
ou mais das principais corporações e estabeleceu células
partidárias em todas as empresas significativas; o valor da divisa
é administrado, dados corporativos e pessoais são meticulosamente
colectados pelo governo para serem usados para controle político e
económico; e o comércio internacional está sujeito a ser
transformado em arma a qualquer momento para finalidades
estratégicas".
Isso é uma hipocrisia de cair o queixo como se a economia civil
dos EUA não estivesse fundida com seu próprio complexo
militar-industrial e não administrasse sua moeda ou usasse seu
comércio internacional como arma a fim de atingir objectivos
estratégicos. É o caso de dizer: quem tem telhados de vidro
não atira pedras ao vizinho, uma fantasia que retrata a indústria
americana como independente do governo. Na verdade, Prestowitz disse que
"Biden deveria invocar a Lei de Produção de Defesa para
aumentar a produção baseada nos EUA de bens críticos, como
medicamentos, semicondutores e painéis solares".
Enquanto os estrategas comerciais estado-unidenses comparam a
"democracia" americana e o Mundo Livre com a autocracia chinesa, o
principal conflito entre os EUA e a China tem sido o papel do governo no apoio
à indústria. A indústria americana cresceu fortemente no
século XIX com o apoio do governo, tal como agora a China está a
providenciar. Afinal de contas, essa era a doutrina do capitalismo industrial.
Mas, à medida que a economia dos Estados Unidos se torna financiarizada,
ela se desindustrializa. A China tem-se mostrado consciente dos riscos da
financiarização e tem tomado medidas para tentar contê-la.
Isso a ajudou a alcançar o que costumava ser o ideal estado-unidense de
providenciar serviços básicos de infraestrutura a preços
baixos.
Aqui está o dilema da política dos EUA: Seu governo está a
apoiar a rivalidade industrial com a China, mas também apoia a
financiarização e privatização da economia interna
a mesma política que tem usado para controlar os países
"vassalos" e extrair seu excedente económico pela busca de
renda monopolista
(rent-seeking).
Por que o capitalismo financeiro dos EUA trata a economia socialista da China
como uma ameaça existencial
O capital industrial financiarizado quer um estado forte para servir a si
mesmo, mas não para servir ao trabalho, aos consumidores, ao meio
ambiente ou ao progresso social de longo prazo ao custo de erodir lucros e
rendas.
As tentativas dos EUA de globalizar essa política neoliberal
estão a levar a China a resistir à financeirização
ocidental. Seu êxito fornece a outros países uma
lição objectiva de por que evitar a financiarização
e a busca de rendas monopolistas que aumentam as despesas gerais da economia e,
portanto, seu custo de vida e de fazer negócios.
A China também está oferecendo uma lição
prática sobre como proteger sua economia e a de seus aliados de
sanções estrangeiras e da desestabilização
relacionada. Sua resposta mais básica tem sido impedir o surgimento de
uma oligarquia independente interna ou externa. Isso tem acontecido sobretudo
pela manutenção do controle do governo sobre finanças e
crédito, propriedade e política de posse da terra nas mãos
do governo tendo em mente um plano de longo prazo.
Olhando para trás no curso da história, foi com esta
retenção que governantes do Oriente Próximo da Idade do
Bronze impediram a emergência de uma oligarquia que ameaçasse as
economias palacianas. Foi uma tradição que persistiu durante os
tempos bizantinos, tributando grandes agregações de riqueza para
evitar uma rivalidade com o palácio e a sua protecção de
uma ampla prosperidade e a distribuição de terras de
auto-sustento.
A China também está a proteger a sua economia do comércio
e das sanções financeiras apoiadas pelos EUA e dos
distúrbios económicos, visando a auto-suficiência no
essencial. Isso envolve independência tecnológica e capacidade de
providenciar alimentos e recursos energéticos suficientes para sustentar
uma economia que possa funcionar de forma isolada do bloco unipolar dos EUA.
Também envolve o desengate do dólar americano e dos sistemas
bancários a ele vinculados e, portanto, da capacidade de os Estados
Unidos imporem sanções financeiras. Associado a este objectivo
está a criação de uma alternativa informatizada interna ao
sistema de compensação bancária SWIFT.
O dólar ainda representa 80% de todas as transacções
globais, mas menos da metade do comércio sino-russo de hoje e a
proporção está a diminuir, especialmente as empresas
russas assim evitam que pagamentos ou contas dolarizadas sejam confiscadas por
sanções dos EUA.
Estes movimentos de protecção limitam a ameaça dos EUA
à primeira opção de Maquiavel: destruir o mundo se ele
não se submeter à extracção de rendas
financiarizadas patrocinadas pelos EUA. Mas, como Vladimir Putin enquadrou as
questões: "Quem gostaria de viver num mundo sem a
Rússia?"
Kin Chi: Meu comentário rápido: Os EUA certamente gostariam de
destruir seu rival, optando pela primeira opção. Mas sabem que
é impossível ter êxito, mesmo no caso da Rússia, sem
mencionar a China. Assim, espera que o rival se desintegre a partir de dentro,
ou por blocos de interesses significativos dentro que sejam cúmplices
dos interesses dos Estados Unidos. Portanto, precisamos avaliar como a
Rússia e a China estão a reagir a este desafio, uma vez que
existem múltiplas forças contestatárias dentro de cada
país. E é também por isso que nos temos preocupado muito
com os economistas políticos neoliberais pró-EUA e decisores
políticos nestes dois países.
Concordo consigo em que a China investiu muito em infraestrutura e
indústria. No entanto, estamos preocupados com os movimentos de
financiarização da China. Daí, a sua
declaração de que "a China tem evitado a
financiarização" pode não ser o caso real, pois foram
feitos vários movimentos de financiarização, mas podemos
dizer que a
China parece estar consciente dos riscos da financiarização e tem
tomado medidas para tentar contê-la, causando descontentamento por parte
dos interesses financeiros dos EUA, que gostariam de ver a China a ir mais
longe nesse caminho.
É interessante que ontem a Casa Branca exprimiu
preocupação com o uso do
RMB
digital pela China e o Iraque para liquidar contas de petróleo, pois
isto estaria além do monitoramento das transacções pelos
EUA.
15/Abril/2021
[1] Niccolo Machiavelli,
O Príncipe
(1532), Capítulo 5: "A respeito da maneira de governar
cidades ou principados que viviam sob suas próprias leis antes de serem
anexados".
[2] Neera Tanden, "A Líbia deve pagar-nos?" memorando para Faiz
Shakir, Peter Juul, Benjamin Armbruster e NSIP Core, 21 de outubro de 2011. O
Sr. Shakir, para seu crédito, respondeu: "Se acharmos que podemos
ganhar dinheiro com uma incursão, o faremos? Isso é um
sério problema de política / mensagem / moral para nossa
política externa, acho eu". Como presidente do Center for American
Progress, Tanden apoiou uma proposta de 2010 para cortar os benefícios
da Previdência Social, reflectindo o objectivo de longo prazo de
Obama-Clinton de austeridade orçamental interna e externa.
[3] Zbigniew Brzezinski,
The Grand Chessboard: American Primacy and its Geostrategic Imperatives
(New York: 1997), p. 40. Ver a discussão de Pepe Escobar,
"
For Leviathan, It's So Cold in Alaska
", Unz.com, 18 de março de 2021.
[4] Brzezinski,
ibid.,
P. 55.
[5] Brzezinski, "Towards a Global Realignment,"
The American Interest
(17 de abril de 2016). Para uma discussão, consulte Mike Whitney,
"The Broken Checkboard: Brzezinski Gives Up on Empire,"
Counterpunch,
25 de agosto de 2016.
[6] Clyde Prestowitz, "Blow Up the Global Trading System,
Washington Monthly,
24 de março de 2021.
[NT]
Grabitization:
"A palavra russa para
privatização
depois de Boris Yeltsin ter dissolvido a União Soviética em 1991
e aceite o conselho americano para entregar empresas e recursos naturais
existentes a directores vermelhos e aos bancos que eles se apressaram a
organizar. Os neoliberais da Guerra Fria aplaudiram isto como um mercado livre,
reconhecendo que o único meio pelos quais os apropriadores
pós-soviéticos poderiam transformar suas conquistas em cash e
mantê-las livres de impostos futuros e restituições
(clawbacks)
era vender suas acções a compradores dos EUA e europeus,
mantendo a maior parte das suas receitas em Londres e outros centros de
hot-money.
"A narrativa neoliberal de encobrimento era que administradores a actuarem
no seu próprio interesse tornariam a indústria mais produtiva do
que no caso de propriedade estatal. Na prática o resultado foi o
despojamento de activos
e
operações de iniciados
(insider dealing)
(ver
Cleptocracia
). Os novos proprietários das fábricas deixaram de pagar
benefícios aos empregados e ficaram longos períodos sem lhes
pagar de todo. Isto transformou a Rússia e outras economias
pós-soviéticas em oligarquias financeiramente polarizadas, com
muito menos tributação progressiva do que a aplicada no ocidente
tipicamente um imposto uniforme
(flat tax)
que incidia só sobre o trabalho e os consumidores, não sobre a
propriedade e o rendimento financeiro ou ganhos com preços de activos.
As acções russas listadas nas bolsas de valores de Nova York e
Londres tornaram-se as principais ganhadoras o que levou à crise
financeira russo-asiática de 1997, mas entre 1997 e 2015 a Rússia
sofreu fugas de capital e perdas da ordem dos US$25 mil milhões por ano
mais de 500 mil milhões de dólares".
in
J is for Junk Economics: A Guide to Economic Survival in an Age of Deception
, Michael Hudson, Islet, 2017, p.110.
O original encontra-se em
thesaker.is/...
Este artigo encontra-se em
https://resistir.info/
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