Ressurgimento rentista e tomada de controle:
Capitalismo financeiro vs. capitalismo industrial (1)
por Michael Hudson
Marx e muitos dos reformadores menos radicais que lhe foram
contemporâneos via o papel histórico do capitalismo industrial
como sendo o de remover a herança do feudalismo os
latifundiários, banqueiros e monopolistas que extraíam renda
económica sem produzir valor real. Mas aquele movimento de reforma
fracassou. Hoje o sector das Finanças, Seguros e Imobiliário
(Finance, Insurance, Real Estate, FIRE) recuperou o controle do governo,
criando economias neo-rentistas.
O objectivo deste capitalismo financeiro pós-industrial é o
oposto daquele do capitalismo industrial bem conhecido dos economistas do
século XIX: Ele busca riqueza primariamente através da
extracção de renda económica, não da
formação de capital industrial. O favoritismo fiscal para o
imobiliário, a privatização do petróleo e da
extracção mineral, a banca e os monopólios de
infraestrutura aumentam o custo de vida e de fazer negócio. O trabalho
está a ser explorado crescentemente pela dívida à banca,
dívida estudantil, dívida do cartão de crédito, ao
passo que a habitação e outros preços são
inflacionados com o crédito, deixando menos rendimento para gastar em
bens e serviços quando economias sofrem deflação da
dívida.
A Nova Guerra Fria de hoje é um combate para internacionalizar este
capitalismo rentista pela privatização e
financiarização global dos transportes, educação,
cuidados de saúde, prisões e policiamento, correios e
comunicações, além de outros sectores que antigamente eram
mantidos no domínio público de economias europeias e americanas
de modo a manter seus custos baixos e minimizar seus custos de estrutura.
Nas economias ocidentais tais privatização reverteram o impulso
do capitalismo industrial para minimizar custos de produção e
distribuição socialmente desnecessários. Além dos
preços de monopólio para serviços privatizados,
administradores financeiros estão a canibalizar a indústria pela
alavancagem da dívida e elevados desembolsos de dividendos para aumentar
preços de acções.
As economias neo-rentistas de hoje obtêm riqueza principalmente pela
busca de renda, enquanto a financiarização capitaliza a renda
imobiliária e monopólica em empréstimos bancários,
acções e títulos. A alavancagem da dívida para
aumentar preços e criar ganhos de capital sobre crédito para esta
"riqueza virtual" tem sido alimentada desde 2009 pela Facilidade
Quantitativa
(Quantitative Easing)
do banco central.
Famílias e indústria estão a ficar afundadas em
dívida, devendo renda e serviço de dívida ao sector FIRE.
Esta sobrecarga rentista deixa menos rendimento de salários e lucros
para gastar em bens e serviços, levando a um encerramento dos 75 anos de
expansão dos EUA e da Europa desde o término da II Guerra Mundial
em 1945.
Estas dinâmicas rentistas são o oposto do que Marx descreveu como
leis do movimento do capitalismo industrial. A banca alemã na verdade
financiava a indústria pesada sob Bismarck, em associação
com o Reichsbank e os militares. Mas em outros lugares o empréstimo
bancário raramente financiou novos meios de produção
tangíveis. Aquilo que prometia ser uma dinâmica democrática
e em última análise socialista degradou-se em
direcção ao feudalismo e à servidão da
dívida, com a classe financeira de hoje a desempenhar o papel que a
classe dos senhores da terra tinha em tempos pós-medievais.
A visão de Marx do destino histórico do capitalismo: Libertar
economias do feudalismo
O capitalismo industrial que Marx descrevia no Volume 1 do
Capital
está a ser desmantelado. Ele considerava que o destino histórico
do capitalismo era libertar as economias do legado do feudalismo: uma classe
hereditária de senhores da guerra que impunha uma renda da terra
tributária e da banca usurária. Ele pensava que na medida em que
o capitalismo industrial evoluísse rumo a uma
administração esclarecida, e na verdade rumo ao socialismo, ela
substituiria a "usurária" finança predatória,
suprimindo o economicamente e socialmente desnecessário rendimento
rentista, a renda da terra, os juros financeiros e taxas relativas a
crédito improdutivo. Adam Smith, David Ricardo, John Stuart Mill, Joseph
Proudon e seus companheiros economistas clássicos analisaram este
fenómeno e Marx resumiu sua discussão nos Volume II e III do
Capital
e no seu livro paralelo
Teorias da mais-valia
que trata da renda económica e da matemática do juro composto, o
qual leva a que a dívida cresça exponencialmente a uma taxa mais
alta do que o resto da economia.
Entretanto, Marx dedicou o Volume I do
Capital
à característica mais óbvia do capitalismo industrial: o
impulso para fazer lucros pelo investimento em meios de produção
para empregar trabalho assalariado a fim de produzir bens e serviços
para vender com uma margem superior ao que pagava ao trabalho. Analisando o
valor excedente pelo ajustamento das taxas de lucro para levar em conta gastos
com a fábrica, equipamento e materiais (a "composição
orgânica do capital"), Marx descreveu um fluxo circular no qual
patrões capitalistas pagam salários aos seus trabalhadores e
investem seus lucros na fábrica e em equipamentos com o excedente
não pago aos empregados.
O capitalismo financeiro corroeu este núcleo da circulação
entre trabalho e capital industrial. Grande parte do meio-oeste dos Estados
Unidos transformou-se num cinturão de ferrugem. Ao invés de o
sector financeiro evoluir para financiar investimento de capital na
manufactura, a indústria está a ser financiarizada. A feitura de
ganhos económicos financeiramente, primariamente pela alavancagem da
dívida, ultrapassa de longe a feitura de lucros pela
contratação de empregados para produzir bens e serviços.
A aliança do capitalismo dos bancos com a indústria para promover
reforma política democrática
O capitalismo nos dias de Marx ainda continha muitas sobrevivências do
feudalismo, mais notavelmente uma classe hereditária de senhores da
terra a viverem de rendas da terra, a maior parte das quais era gasta
improdutivamente com serviçais e luxos, não para obter lucro.
Estas rendas tiveram origem num imposto.
Estas rendas tinham tido origem num imposto. Vinte anos após a Conquista
Normanda, Guilherme o Conquistador havia ordenado a compilação do
[censo territorial] Domesday Book em 1086 para calcular o rendimento
(yield)
que podia ser extraído como imposto das terras inglesas que ele e os
seus companheiros haviam capturado. Como resultado das exigências fiscais
prepotentes do Rei João, a Revolta dos Barões (1215-17) e a sua
Carta Magna permitiram aos principais senhores da guerra obter grande parte
desta renda para si próprios. Marx explicou que o capitalismo industrial
era politicamente radical ao procurar libertar-se do fardo de ter de suportar
esta classe privilegiada de senhores da terra, a receber rendimentos sem
qualquer base no valor de custo ou do próprio empreendimento.
Os industriais procuravam ganhar mercados através de cortes de custos
abaixo daqueles dos seus competidores. Aquele objectivo exigia libertar toda a
economia das "faux frais" [falsas despesas] de
produção, encargos socialmente desnecessários embutidos no
custo de vida e de fazer negócio. A renda económica
clássica era definida como o excesso de preço acima do valor de
custo intrínseco, este último sendo em última
análise redutível aos custos do trabalho. O trabalho produtivo
era definido como aquele empregado para criar um lucro, em contraste com os
serviçais e criados (cocheiros, mordomos, cozinheiros, et al.) com os
quais os senhores da terra gastavam grande parte da sua renda.
A forma paradigmática de renda económica era a renda de terra
paga à aristocracia hereditária da Europa. Como explicou John
Stuart Mill, os senhores da terra colhiam rendas (e aumentos dos preços
da terra) "durante o sono". Ricardo havia apontado (no
capítulo 2 dos seus
Princípios de Economia Política e Tributação,
de 1817) uma forma parecida de renda diferencial em renda de recursos
naturais decorrente da capacidade de minas com teores de minério de alta
qualidade para venderem a sua produção mineral de baixo custo a
preços estabelecidos pelas minas de alto custo. Finalmente, havia uma
renda monopolista paga aos proprietários em pontos de estrangulamento na
economia onde podiam extrair rendas sem base em qualquer desembolso de custos.
Tais rendas logicamente incluíam juros financeiros, taxas e penalidades.
Marx via o ideal capitalista como libertar economias da classe dos senhores da
terra que controlavam a Casa dos Lordes na Grã-Bretanha, assim como
legislativos superiores em outros países. Aquele objectivo exigiu
reforma política do Parlamento na Grã-Bretanha, em última
análise para substituir a Casa dos Lordes pela Câmara dos Comuns
(Commons),
de modo a impedir os senhores da terra de protegerem seus interesses especiais
a expensas da economia industrial britânica. A primeira grande batalha
neste combate contra o interesse dos proprietários de terra foi vencida
em 1846 com a revogação das Leis do Milho. A luta para limitar o
poder dos proprietários de terra sobre o governo culminou com a crise
constitucional de 1909-10, quando os Lordes rejeitaram o imposto
fundiário imposto pelos Comuns. A crise foi resolvida por uma
decisão de que os Lordes nunca mais poderiam rejeitar uma lei de
arrecadação fiscal aprovada pela Câmara dos Comuns.
O lobbies da banca contra o sector imobiliário, 1815-1846
Pode parecer irónico hoje em dia que o sector da banca britânico
estivesse de todo o coração por trás do primeiro grande
combate para minimizar a renda da terra. Tal aliança verificou-se depois
de acabarem as Guerra Napoleónicas em 1815, o que terminou o bloqueio
francês contra o comércio marítimo britânico e
reabriu o mercado da Grã-Bretanha a importações de cereais
com preços mais baixos. Os senhores da terra britânicos exigiam
tarifas protectoras de acordo com as Leis do Milho para elevar o
preço da alimentação, de modo a aumentar a receita e
portanto o valor locativo dos seus haveres territoriais mas isso
resultava em economia de alto custo. Uma economia capitalista com êxito
teria de minimizar estes custos a fim de ganhar mercados estrangeiros e, na
verdade, defender o seu próprio mercado interno. A ideia clássica
de um mercado livre era um mercado livre de renda económica do
rendimento do rentista na forma de renda da terra.
Esta renda um quase-imposto pago aos herdeiros dos bandos de senhores da
guerra que haviam conquistado a Grã-Bretanha em 1066, e bandos vikings
semelhantes que haviam conquistado outros reinos europeus
ameaçava minimizar o comércio exterior. Isso era uma
ameaça para as classes banqueiras da Europa, cujo mercado era o
financiamento do comércio através de letras de câmbio. A
classe banqueira ascendeu quando a economia da Europa foi reanimada pelo vasto
saqueio do ouro monetário de Constantinopla pelos Cruzados. Aos
banqueiros foi permitida uma escapatória para evitar a
proscrição à cristandade de cobrar juros, pela tomada
deste retorno na forma de ágio, uma taxa pela transferência de
moeda de uma divisa para outra, incluindo de um país para outro.
Mesmo o crédito interno podia utilizar esta escapatória do
"câmbio fictício" ("
dry exchange
"), cobrando ágio em transacções interna camufladas
como
transferência de moeda estrangeira, da mesma forma que as
corporações modernas utilizam hoje "centros bancários
offshore" para fingir que ganham os seus rendimentos em países que
não cobram um imposto sobre o rendimento.
Se a Grã-Bretanha se tornasse a fábrica do mundo, isto se
demonstraria altamente benéfico para a classe dos banqueiros. (Ele era o
seu porta-voz parlamentar; hoje diríamos lobbyist.) A
Grã-Bretanha desfrutava de uma divisão internacional do trabalho
em que exportava manufacturas e importava alimentos e matérias-primas de
outros países especializando-os em commodities primárias e
dependentes dos produtos industriais britânicos. Mas para isto acontecer,
a Grã-Bretanha precisava de um trabalho a baixo preço. Isso
significava baixos custos alimentares, os quais naquele tempo eram as maiores
rubricas nos orçamentos familiares dos trabalhadores assalariados. E
isto por sua vez exigia acabar com o poder da classe dos senhores da terra de
proteger o seu "almoço gratuito" da renda da terra e o de
todos os receptores de tais "rendimentos não merecidos".
Hoje em dia é difícil imaginar industriais e banqueiros de
mãos dadas a promover uma reforma democrática contra a
aristocracia. Mas aquela aliança foi necessária no
princípio do século XIX. Naturalmente, a reforma
democrática naquela época só ia até o ponto de
remover a classe dos proprietários de terra, não de proteger os
interesses do trabalho.
A retórica democrática vazia da classe industrial e banqueira
tornou-se evidente nas revoluções da Europa de 1848, onde os
interesses instalados se uniram contra a extensão da democracia à
população em geral, uma vez que esta última havia ajudado
a acabar com a protecção das rendas dos proprietários de
terra.
Naturalmente, foram os socialistas que retomaram o combate político
depois de 1848. Marx mais tarde recordou a um correspondente que o primeiro
ponto do Manifesto Comunista era socializar a renda da terra, mas divertia-se
com os críticos da renda no "mercado livre" que se recusavam a
reconhecer que existia uma exploração semelhante ao do rentista
no emprego industrial da mão-de-obra assalariada. Tal como os
proprietários de terra obtinham uma renda da terra superior ao custo de
produzir as suas culturas (ou arrendamentos de habitação),
também os empregadores obtinham lucros através da venda dos
produtos do trabalho assalariado com uma margem de lucro. Para Marx, isso em
princípio tornava os industriais parte da classe dos rentistas, embora o
sistema económico geral do capitalismo industrial fosse muito diferente
do dos rentistas pós-feudais, senhores da terra e banqueiros.
A aliança da banca com o imobiliário e outros sectores em busca
de renda
Com estes antecedentes de como o capitalismo industrial estava a evoluir nos
dias de Marx, podemos ver quão excessivamente optimista ele estava a
encarar o impulso dos industriais para se desfazerem de todos os custos de
produção desnecessários todos os encargos que
aumentavam o preço sem aumentar o valor. Nesse sentido, ele estava
plenamente em sintonia com o conceito clássico de mercados livres, como
mercados livres da renda da terra e de outras formas de rendimento rentista.
A teoria económica convencional de hoje reverteu este conceito. Numa
distorção orwelliana de duplo pensamento, os direitos adquiridos
(vested interests)
definem um mercado livre como sendo "livre" para a
proliferação de várias formas de renda da terra, chegando
ao ponto de dar benefícios fiscais especiais ao investimento
imobiliário ausente, a indústrias de petróleo e
mineração (renda sobre recursos naturais) e acima de tudo
à alta finança (a ficção contabilística dos
"direitos adquiridos", uma expressão obscura para arbitragem
especulativa a curto prazo).
O mundo de hoje na verdade libertou as economias do fardo do arrendamento de
terras hereditárias. Quase dois terços das famílias
americanas são proprietárias das suas próprias casas
(embora a taxa de propriedade da casa própria tenha vindo a diminuir
constantemente desde os Grandes Despejos de Obama, que foram um subproduto da
crise das hipotecas lixo e dos salvamentos
(bailouts)
de bancos de Obama de
2009 a 2016, que baixaram as taxas de proprietários de casas
próprias de mais de 68% para 62%). Na Europa, as taxas de propriedade
imobiliária atingiram 80% na Escandinávia e taxas elevadas
caracterizam todo o continente. A propriedade da casa própria e
também a oportunidade de comprar bens imobiliários comerciais
tornou-se de facto democratizada.
Mas foi democratizada a crédito. Este é o único modo de
assalariados obterem habitação, porque do contrário teriam
de gastar a poupança de toda a vida para comprar uma casa. Após o
término da II Guerra Mundial, em 1945, os bancos forneceram o
crédito para a compra de casas (e para especuladores comprarem
propriedades comerciais), concedendo-lhes crédito hipotecário a
ser liquidado ao longo de 30 anos, a provável vida de trabalho do jovem
comprador de casa.
O imobiliário é de longe o maior sector do mercado
bancário. Os empréstimos hipotecários representam cerca de
80 por cento do crédito bancário estado-unidense e
britânico. Ele desempenhava apenas um papel menor remontando a 1815,
quando os bancos se concentravam no financiamento do comércio e nas
transacções internacionais. Hoje podemos falar da Finança,
Seguros e Imobiliário (FIRE) como o sector rentista dominante da
economia. Esta aliança de banca com imobiliário levou os bancos a
tornarem-se os principais lobistas da protecção dos
proprietários imobiliários, opondo-se ao imposto territorial que
parecia ser a onda do futuro em 1848
face à crescente advocacia no sentido de tributar todos os ganhos de
preços e de rendas da terra, para fazer da terra a base
tributária como instava Adam Smith, ao invés de tributar o
trabalho e os consumidores ou os lucros. De facto, quando o imposto sobre o
rendimento dos EUA começou a ser cobrado em 1914, ele incidia apenas
sobre os mais ricos Um Por Cento dos Americanos, cujo rendimento
tributável consistia quase inteiramente em propriedades e direitos
financeiros.
O século passado reverteu aquela filosofia fiscal. A nível
nacional, os bens imóveis pagaram quase zero de imposto sobre o
rendimento desde a Segunda Guerra Mundial, graças a duas dádivas.
A primeira é a "depreciação fictícia",
por vezes denominada de "super-depreciação" ("
over-depreciation
"
). Os donos podem fingir que os seus edifícios estão a perder
valor, alegando que estão a desgastar-se a taxas ficticiamente elevadas.
(É por isso que Donald Trump tem dito que adora a
depreciação.) Mas de longe a maior dádiva é que os
pagamentos de juros são dedutíveis nos impostos. Os bens
imóveis são tributados localmente, com certeza, mas tipicamente
apenas a 1% da sua valorização avaliada, o que é menos de
7 a 10% da renda real do terreno
[1]
.
A razão básica porque os bancos apoiam o favoritismo fiscal para
os proprietários é que tudo o que o arrecadador fiscal abrir
mão fica disponível para ser pago como juro. Banqueiros
hipotecários acabam assim por ficar com a vasta maior parte da renda da
terra nos Estados Unidos. Quando uma propriedade é posta a venda e
proprietários licitam uns contra os outros para comprá-la, o
ponto de equilíbrio é onde o vencedor está disposto a
pagar ao banqueiro o valor pleno da renda para conseguir uma hipoteca.
Investidores comerciais também estão desejosos de pagar todo o
rendimento como rendas para conseguirem uma hipoteca, porque eles são
após o ganho de "capital" ou seja, da ascensão
do preço da terra.
A posição política dos chamados socialistas ricardianos na
Grã-Bretanha e dos seus homólogos em França (Proudhon, et
al.) era a de que o Estado cobrasse a renda económica da terra como a
sua principal fonte de receitas. Mas os ganhos de "capital" de hoje
verificam-se principalmente no sector imobiliário e financeiro e
são virtualmente isentos de impostos para os proprietários de
terras. Os proprietários não pagam impostos sobre as mais-valias
à medida que os preços imobiliários sobem, ou mesmo sobre
a venda se utilizarem as suas mais-valias para comprar outra propriedade. E
quando os proprietários morrem, toda a responsabilidade fiscal é
extinta.
As indústrias petrolífera e mineira também estão
notoriamente isentas do imposto de rendimento sobre as suas rendas de recursos
naturais. Durante muito tempo, o subsídio de esgotamento
(depletion allowance)
permitiu-lhes um crédito fiscal para o petróleo que era vendido,
permitindo-lhes comprar novas propriedades produtoras de petróleo (ou o
que quisessem) com a sua suposta perda de activos, definida como o valor para
recuperar o que quer que tivessem esgotado. Não havia perda real,
é claro. O petróleo e os minérios são fornecidos
pela natureza.
Estes sectores também se tornam isentos de impostos sobre os seus lucros
e rendas no estrangeiro utilizando "pavilhões de
conveniência" registados em centros bancários offshore. Este
estratagema permite-lhes reivindicar a realização de todos os
seus lucros no Panamá, Libéria ou outros países que
não cobram um imposto sobre o rendimento ou têm mesmo uma
divisa própria, mas utilizam o dólar americano para poupar
às empresas americanas qualquer risco com câmbios estrangeiros.
No sector petrolífero e mineiro, tal como no sector imobiliário,
o sistema bancário tornou-se simbiótico com os
beneficiários do rendas, incluindo as empresas que extraem renda
monopolista. Já no final do século XIX, o sector bancário
e segurador era reconhecido como "a mãe dos trusts",
financiando a sua criação para extrair rendas monopolistas acima
das taxas de lucro normais.
Estas mudanças tornaram a extracção de renda muito mais
remuneradora do que a busca do lucro industrial exactamente o oposto do
que os economistas clássicos insistiam e esperavam que viesse a ser a
trajectória mais provável do capitalismo. Marx esperava que a
lógica do capitalismo industrial libertasse a sociedade do seu legado
rentista e criasse investimento público em infra-estruturas a fim de
reduzir o custo de produção em toda a economia. Ao minimizar as
despesas de mão-de-obra que os empregadores tinham de cobrir, este
investimento público colocaria em funcionamento a rede organizacional
que, a seu tempo (por vezes necessitando de uma revolução,
certamente) se tornaria uma economia socialista.
Embora a banca se tenha desenvolvido ostensivamente para servir o
comércio externo das nações industriais, ela tornou-se uma
força em si mesma minando o capitalismo industrial. Em termos marxistas,
ao invés de financiar a circulação M-C-M' (dinheiro
investido em capital para produzir lucro e, portanto, ainda mais dinheiro), a
alta finança abreviou o processo para M-M', ganhando dinheiro puramente
com dinheiro e crédito, sem investimento de capital tangível.
O esmagamento rentista nos orçamentos: Deflação da
dívida como um subproduto da inflação dos preços de
activos
Democratização da propriedade das casas significava que a
habitação já não era mais possuída
primariamente por proprietários ausentes a extraírem renda, mas
sim pelos seus próprios ocupantes. À medida que a propriedade das
casas se difundia, novos compradores vieram apoiar o impulso rentista para
bloquear a tributação da terra não percebendo que a
renda que não era tributada seria paga aos bancos como juros para
absorver a renda de arrendamento até então paga a senhorios
ausentes.
Os preços do imobiliário subiram em consequência da
alavancagem da dívida. O processo torna ricos os investidores,
especuladores e seus banqueiros, mas eleva o custo da habitação
(e da propriedade comercial) aos novos compradores, os quais são
obrigados a assumir mais dívida a fim de obter habitação
segura. Esse custo é também transferido para os
arrendatários. E os empregadores, em última análise,
são obrigados a pagar à sua força de trabalho o suficiente
para que esta cubra estes custos financiarizados de habitação.
A deflação da dívida tornou-se a característica
distintiva das economias actuais desde a América do Norte até a
Europa, impondo austeridade à medida que o serviço da
dívida absorve uma parte crescente do rendimento pessoal e empresarial,
deixando menos para gastar em bens e serviços. Os 90% da economia
endividada vêem-se obrigados a pagar cada vez mais juros e taxas
financeiras. O sector empresarial, e agora também o sector estatal e
local, são igualmente obrigados a pagar uma parte crescente das suas
receitas aos credores.
Os investidores estão dispostos a pagar a maior parte dos seus
rendimentos de rendas como juros ao sector bancário, porque esperam
vender a sua propriedade em algum momento por um ganho de "capital".
O capitalismo financeiro moderno centra-se nos "retornos totais",
definidos como rendimentos correntes mais ganhos nos preços de activos,
sobretudo para terrenos e bens imobiliários. Na medida em que uma casa
ou outra propriedade é valiosa por muito que os bancos emprestem contra
ela, a riqueza é criada principalmente através de meios
financeiros, pelos bancos que emprestam uma proporção crescente
do valor dos activos dados em garantia colateral.
O facto de que os ganhos em preços de activos são amplamente
financiados pela dívida explica porque o crescimento económico
está a arrefecer nos Estados Unidos e na Europa, mesmo quando o mercado
de acções e os preços imobiliários são
inflacionados com crédito. O resultado é uma economia alavancada
por dívida.
As alterações económicas no valor da terra de ano para ano
excedem de longe as alterações do PIB. A riqueza é obtida
primariamente através de ganhos em preços de activos
("capital") na valorização de terras e imóveis,
acções, obrigações e empréstimos de credores
("riqueza virtual"), não tanto pela poupança de
rendimentos (salários, lucros e rendas). A magnitude destes ganhos de
preços de activos tende a apequenar lucros, rendimentos de arrendamentos
e salários.
A tendência tem sido de imaginar que o aumento dos preços dos
imóveis, acções e títulos tem tornado os
proprietários mais ricos. Mas esta subida de preços é
alimentada pelo crédito bancário. Uma casa ou outra propriedade
é valiosa por mais que um banco empreste contra ela e os bancos
têm emprestado uma proporção cada vez maior do valor das
casas desde 1945. Para os bens imobiliários dos EUA como um todo, a
dívida tem excedido o capital próprio desde há mais de uma
década. A ascensão dos preços imobiliários tornou
os bancos e especuladores ricos, mas deixou os proprietários das casas e
a dívida imobiliária comercial afundados em dívidas.
A economia como um todo sofreu. Os custos de habitação
alimentados pela dívida nos Estados Unidos são tão
elevados que se todos os americanos recebessem gratuitamente os seus bens de
consumo físico a sua comida, vestuário, etc ainda
assim não poderiam competir com os trabalhadores na China ou na maior
parte dos outros países. Esta é uma das principais razões
pelas quais a economia dos EUA está a desindustrializar-se. Assim, esta
política de "criação de riqueza" através
da financeirização socava a lógica do capitalismo
industrial.
(continua)
[1] Apresento os gráficos em
The Bubble and Beyond
(Dresden: 2012), Capítulos 7 e 8, e
Killing the Host
(Dresden: 2015).
Este artigo é baseado no Capítulo 1 de
Cold War 2.0. The Geopolitical Economics of Finance Capitalism vs. Industrial
Capitalism
(Dresden, ISLET: em impressão; tradução chinesa em 2021).
©
O original encontra-se em
michael-hudson.com/...
Este artigo encontra-se em
https://resistir.info/
.
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