Estagflação: uma narrativa pelo lado da procura ou da oferta?

Michael Roberts [*]

As reuniões semestrais do FMI e do Banco Mundial começam hoje. Nelas, ministros das finanças e banqueiros centrais encontrar-se-ão em reuniões restritas mas presenciais em Washington. É provável que esta reunião seja ofuscada pelo escândalo que envolve a chefe do FMI Kristalina Georgieva, a qual pode ter sido forçada a demitir-se no momento em que escrevo após um relatório devastador sobre as maquinações de altos funcionários do Banco Mundial há vários anos atrás. Georgieva foi acusada de manipular dados sobre "Fazer negócios" (“Doing Business”) a fim de favorecer a China, a Arábia Saudita e outros Estados enquanto esteva no Banco Mundial vários anos atrás. O escândalo dividiu os membros do FMI, com os EUA a pressionarem para que ela se fosse embora e as potências europeias a quererem a sua permanência.

Mas mais importante do que saber se podemos mesmo confiar na honestidade científica do Banco Mundial e do FMI é o que está a acontecer à economia do planeta quando estas agências internacionais se reúnem para analisar os progressos na recuperação da recessão pandémica em 2020.

No início do ano, a maioria das previsões de crescimento, emprego, investimento e inflação eram optimistas, com esperanças de uma recuperação em forma de V com base no lançamento da vacinação COVID, na diminuição dos casos de vírus e no impulso dado a muitas economias pelas despesas orçamentais dos governos e injecções de crédito pelos bancos centrais. Mas, nos últimos meses, esse optimismo despudorado começou a desvanecer-se. Pouco antes da reunião FMI-Banco Mundial, Georgieva relatou que "Enfrentamos uma recuperação global que continua "manietada" pela pandemia e pelo seu impacto. Somos incapazes de avançar devidamente – é como andar com pedras noa sapatos!"

Ela delineou as três pedras nos seus sapatos. A primeira era o crescimento. Na reunião, o FMI deverá baixar as suas previsões de crescimento global em 2021 e espera que a divergência entre o Norte Global mais rico e o Sul Global mais pobre se amplie. A segunda era a inflação: "Uma preocupação particular com a inflação é o aumento dos preços globais dos alimentos em mais de 30 por cento ao longo do ano passado". E a terceira era a dívida: "estimamos que a dívida pública global aumentou para quase 100 por cento do PIB". (Sem mencionar a dívida do sector privado, que é muito mais importante e está em máximos históricos).

Georgieva apresentava o risco do que se chama "estagflação", ou seja, crescimento baixo ou nulo juntamente com uma inflação alta ou crescente. Este é o derradeiro pesadelo para as grandes economias capitalistas – e, claro, o pior cenário possível para os trabalhadores que suportariam o peso do aumento dos preços para as famílias enquanto o crescimento dos rendimentos permanece fraco; levando a uma queda dos rendimentos reais.

Esta foi a história da década de 1970. Assim, será que a estagflação estará de volta em 2022? Vejamos primeiro o lado do crescimento do PIB. Estão a acumular-se evidências de que a recuperação da " corrida ao açúcar " nas principais economias após o fim da pandemia e após o impacto das despesas orçamentais e do dinheiro fácil está a diminuir. Por exemplo, no terceiro trimestre de 2021, a previsão GDP Now! do Atlanta Fed para a economia dos EUA sugere uma forte desaceleração (em comparação com os apelos ao consenso) para apenas 1,3% de taxa anual. E é provável que o quarto trimestre seja pior. Após a "corrida ao açúcar" vem a fadiga.

Estimativa

Os inquéritos de actividade empresarial de "alta frequência" chamados Índices de Gestores de Compras (Purchasing Manager's Indexes, PMIs) também estão a mostrar um abrandamento nítido na maior parte das regiões em relação aos picos do Verão.

Índices de gestores compras.

E nos EUA, os últimos dados oficiais mostraram que a recuperação dos empregos em Setembro estagnou pelo segundo mês consecutivo. A par de uma menor confiança das empresas e dos consumidores, isto sugere que a "corrida do açúcar" também terminou. Na China, o governo está a lutar com surtos esporádicos da variante do coronavírus do Delta e o risco de uma implosão de dívida imobiliária, juntamente com uma escassez de energia. O forte crescimento durante o Verão parece ter abrandado drasticamente na zona euro e no Reino Unido.

Também há o Índice de Acompanhamento Brookings-FT para a Recuperação Económica Global (Tiger) que compara indicadores de actividade real, mercados financeiros e confiança com as suas médias históricas, tanto para a economia global como para países individuais, captando a medida em que os dados no período actual são normais. A última actualização semestral mostra um forte retrocesso no crescimento desde Março nas economias avançadas e emergentes.

Crescimento global encalhado após uma forte retomada da recessão Covid
Crescimento global empacado após uma forte retomada da recessão Covid.

Do outro lado do cenário de estagflação, as taxas de inflação estão a aumentar por toda a parte. Em Dezembro do ano passado, a previsão mediana do Fed dos EUA para a inflação em 2021 era de 1,8%. Em Março, a inflação foi empurrada para 2,4% e depois, em Junho, para 3,4%. É agora de 4,2%. Durante o mesmo período, a sua previsão mediana para 2022 subiu de 1,9% para 2,2%. Os números do Banco de Inglaterra e do BCE têm seguido um caminho semelhante.

As facturas globais de mercearia estão a disparar.

As contas de mercearia:
Os alimentos estão mais caros do que em qualquer momento nos últimos 60 anos

As contas de mercearia.

E os preços da energia decolaram.

Disparada dos preços da energia
Disparada dos preços da energia.

O que está a causar este aumento da inflação em geral e dos alimentos e energia, em particular? O ponto de vista macroeconómico padrão é que existe "excesso de procura". Durante a COVID, os consumidores acumularam enormes poupanças que não puderam gastar. Mas agora que as economias se abrem novamente, as famílias estão a gastar muito num momento em que as cadeias de abastecimento globais foram perturbadas pela pandemia da COVID.

Esta é a opinião de Jefferies, analista financeiro: "os US$2,5 milhões de milhões de cash em excesso das famílias é um amortecedor importante contra a estagflação e mostramos que os excessos de poupanças são repartidos por toda a distribuição do rendimento. Até à data, tem havido muito pouca evidência de destruição da procura. A despesa real ainda está próxima dos ciclos altos para a maior parte das categorias de despesa discricionária, apesar dos aumentos significativos dos preços... Uma análise mais rigorosa das alterações de preços e volume pelo Fed de São Francisco mostra que os efeitos da procura são o motor condutor da inflação neste momento, contribuindo com 1,1% anual do núcleo das despesas pessoais de consumo a partir de Agosto. Em contraste, os efeitos do lado da oferta contribuíram apenas com 0,2%. Isto contraria a narrativa dominante que atribui a maior parte dos aumentos de preços a perturbações da cadeia de abastecimento. Sim, a escassez de produtos e os estrangulamentos na oferta são reais, mas são em grande medida uma função do excesso de procura, ao invés de interrupções na oferta".

Assim, a opinião de Jefferies é que esta situação é apenas temporária ou 'transitória', para usar a expressão de Powell, presidente do Fed. Uma vez que a produção, o emprego e o investimento se recuperem e os bloqueios da cadeia de abastecimento internacional diminuírem, a pressão inflacionista também diminuirá e as coisas voltarão ao 'normal'.

Existem sérias dúvidas sobre este cenário cor-de-rosa. Primeiro, do lado da procura, é realmente verdade que a libertação de uma procura reprimida é a causa do aumento dos preços? A ideia de que o "excesso de dinheiro" irá simplesmente "aumentar" os custos adicionais dos preços do gás e dos alimentos parece improvável. Afinal, nas principais economias, este 'excesso de cash' está sobretudo nos bolsos dos ricos, os quais tendem mais a poupar do que a gastar. Os preços mais elevados são mais susceptíveis de levar a reduções nos gastos dos chamados "itens discricionários", pois as famílias da classe trabalhadora tentam fazer face ao aumento dos custos dos alimentos e da energia.

Além disso, é mais provável que a aceleração da inflação em bens e serviços essenciais seja o resultado de um choque do "lado da oferta" do que de um excesso de procura. "Não estamos a lidar com a inflação do lado da procura. O que estamos realmente a atravessar neste momento é um enorme choque de oferta", disse Jean Boivin, um antigo vice-governador do Banco do Canadá agora no Instituto de Investimento BlackRock. "A forma de lidar com isto não é tão directa como lidar apenas com inflação".

Do lado da oferta, há quem argumente que a década de 2020 não é como a de 1970 com a sua estagflação, mas mais como a de 1950, quando a inflação incorrida devido às perturbações e despesas durante a guerra da Coreia abriu caminho ao aumento do investimento e da rentabilidade, de modo que a produção industrial e as taxas de crescimento do PIB real aumentaram e a inflação diminuiu. "Com a escassez de oferta prevista para os próximos 6 a 12 meses, o actual período de "leve estagflação" irá persistir por mais algum tempo. Mas é provável que se mantenha uma imitação pálida do episódio de estagflação dos anos 70. Entretanto, não partilhamos o pessimismo daqueles que pensam que a actual escassez da oferta é apenas um de uma série de choques de estagflação susceptíveis de atingir a economia nos próximos anos".

Mas será que a década de 2020 vai ser uma nova "era de ouro" para o capitalismo, como a década de 1950, com elevadas taxas de lucro e investimento, aumentos dos salários reais, pleno emprego e baixa inflação? Duvido; primeiro porque o actual "choque" do lado da oferta é realmente uma continuação do abrandamento da produção industrial, do comércio internacional, do investimento empresarial e do crescimento real do PIB que se estava a estabelecer em 2019, antes de a pandemia se ter declarado. Isto estava a acontecer porque a rentabilidade do investimento capitalista nas principais economias havia caído para níveis quase mínimos históricos e, como sabem os leitores deste blogue, é a rentabilidade que, em última análise, impulsiona o investimento e o crescimento nas economias capitalistas.

Em mensagens anteriores, apresentei as provas do declínio da rentabilidade nos EUA e alhures. Brian Green tem uma nova análise da rentabilidade empresarial britânica que obtém um resultado semelhante "antes de o Reino Unido entrar na pandemia, a taxa de lucro havia caído drasticamente para se situar 20% abaixo do último mini pico em 2015".

Taxa de lucro (indexada)
Taxa de lucro.

Mais uma vez, pode-se mesmo argumentar que o choque do lado da oferta continuará não só devido à baixa rentabilidade e do investimento, mas também devido ao enorme aumento dos custos de lidar com as alterações climáticas [1]. Isto levou a cortes acentuados no investimento na exploração e produção de energia de combustíveis fósseis, colocando muitas economias em risco de uma crise de aprovisionamento energético. Esta é a ironia das soluções de mercado para o problema do aquecimento global [1]: o aumento dos preços das emissões de carbono e dos impostos simplesmente provoca uma redução severa na produção de energia pois o planeamento da substituição da produção de combustíveis fósseis por alternativas é inexistente.

Se a inflação crescente está a ser impulsionada pelo fraco lado da oferta ao invés de um lado da procura excessivamente forte, a política monetária não funcionará. A política monetária funciona tentando aumentar ou reduzir a procura. Se as despesas estão a crescer demasiado depressa e a gerar inflação, taxas de juro mais elevadas supostamente diminuem a vontade das empresas e das famílias de consumir ou investir ao aumentar o custo da contracção de empréstimos. Mas mesmo que esta teoria estivesse correcta, ela não se aplica quando os preços estão a aumentar porque as cadeias de abastecimento foram rompidas, os preços da energia estão em crescendo ou há escassez de mão-de-obra. Como disse Andrew Bailey, governador do Banco de Inglaterra: "A política monetária não irá aumentar a oferta de chips semicondutores, não aumentará a quantidade de vento (não, realmente) e nem produzirá mais condutores de veículos pesados".

Na verdade, como tenho argumentado ad nauseum neste blogue, bombear dinheiro ou crédito para dentro do sistema financeiro com 'facilidades quantitativas' não funciona para impulsionar a economia se o 'lado da oferta' não estiver a crescer por falta de rentabilidade. Pode-se levar um cavalo à água, mas não se pode obrigá-lo a beber. Essa desconexão aplica-se igualmente quando os bancos centrais endurecem a política (ou seja, retiram o crédito e elevam a política de taxas de juro). A redução da procura pouco fará se a oferta estiver estagnada por outras razões.

No entanto, os bancos centrais estão a começar a endurecer. As taxas de juro já subiram na Noruega e em muitas economias emergentes, ao passo que a Reserva Federal dos EUA e o Banco de Inglaterra tomaram medidas para tornar a política monetária mais restritiva. Isto não baixará as taxas de inflação, mas simplesmente aumentará o risco de uma recessão na medida em que os custos do serviço da dívida aumentam para empresas já com baixos lucros. Este é o dilema para os bancos centrais e governos quando debaterem esta semana em Washington a questão da estagflação.

Mas deixem-me terminar este longo post lembrando aos leitores que a economia dominante não tem uma teoria coerente da inflação. Como observou Charles Goodhart, professor na London School of Economics e antigo membro do comité de política monetária do Banco de Inglaterra: "o mundo neste momento está num estado realmente extraordinário porque não temos uma teoria geral da inflação". As duas principais teorias oferecidas: a teoria monetarista de que a oferta de moeda impulsiona a inflação; e a teoria keynesiana de que a inflação é causada por mercados de trabalho rígidos que aumentam os custos salariais, foram desmascaradas pelos factos.

Assim, a corrente dominante caiu de novo sob uma teoria da inflação baseada em "expectativas". Como observa Goodhart, isto é "uma teoria da inflação improvisada” (bootstrap). Ela diz que enquanto as expectativas de inflação permanecerem ancoradas, a própria inflação permanecerá ancorada. Mas as expectativas dependem de onde a inflação já está e, por isso, não fornecem qualquer poder de previsão. Na verdade, um novo documento de Jeremy Rudd da Reserva Federal conclui: "Economistas e decisores de política económica acreditam que as expectativas das famílias e empresas em relação à inflação futura são um determinante chave da inflação real. Uma revisão da literatura teórica e empírica relevante sugere que esta crença assenta em bases extremamente instáveis, e é defendido que aderir a ela acriticamente poderia facilmente conduzir a erros políticos graves".

Como os leitores regulares deste blogue devem saber, Guglielmo Carchedi e eu temos estado a desenvolver uma teoria Marxista alternativa da inflação. A essência da nossa teoria é que a inflação nas economias capitalistas modernas tem uma tendência a longo prazo para baixar porque os salários diminuem como parte do valor acrescentado total; e os lucros são esmagados por uma composição orgânica crescente do capital (ou seja, mais investimento em maquinaria e tecnologia em relação aos empregados). Mas esta tendência pode ser contrariada pelas autoridades monetárias que promovem a oferta de moeda de modo a que o preço monetário dos bens e serviços aumente, apesar de haver uma tendência para o crescimento do valor dos bens e serviços diminuir.

Testámos esta teoria para a inflação americana durante a queda da pandemia da COVID. Durante o ano da COVID, a rentabilidade e os lucros das empresas caíram acentuadamente. As contas salariais também caíram. Tal como previu a nossa teoria, os resultados foram deflacionários. Mas o Fed injectou mais dinheiro. A oferta monetária M2 [2] nos EUA aumentou 40% em 2020. Assim, a inflação americana, depois de ter caído quase para zero no primeiro semestre de 2020, voltou a subir para 1,5% no final do ano.

Nas quedas (slumps), a velocidade do dinheiro, que é o ritmo de rotação da oferta monetária existente numa economia, cai. As pessoas e as empresas fazem menos transacções e, em vez disso, tendem a "entesourar" moeda. Este foi certamente o caso em 2020, onde a velocidade caiu para um mínimo de 60 anos. Tal queda é extremamente deflacionária. Mas em 2021, a velocidade do dinheiro deixou de cair.

Queda na velocidade de circulação do dinheiro
Queda na velocidade de circulação do dinheiro.

Em 2021, começaram a inverter-se todos os factores que em meados de 2020 levaram a uma taxa de inflação de quase zero nos EUA. Naquela altura no ano passado, fizemos uma previsão de que se os lucros e os salários começassem a aumentar (os salários, digamos em 5-10%; a oferta monetária em cerca de 10%, então o nosso modelo sugeria que a inflação americana de bens e serviços aumentaria, talvez para cerca de 3,0-3,5% no final de 2021. Na verdade, a oferta monetária continuou a aumentar mais rapidamente do que o previsto. E assim, a inflação americana é agora superior a 4%, e não 3,0-3,5% como prevíamos.

Aumento da oferta monetária
Aumento da oferta monetária.

O que a nossa teoria da inflação sugere é que a economia dos EUA nos próximos anos é mais susceptível de sofrer de estagflação, ou seja, mais de 3% de inflação com um crescimento inferior a 2%, do que de deflação ou "sobreaquecimento" inflacionista (mais de 4%).

11/Outubro/2021

NT
[1] Ver https://resistir.info/climatologia/impostura_global.html
[2] A oferta monetária "M0" é o total de notas físicas, mais o dinheiro nos cofres dos bancos comerciais e todos os depósitos que aqueles bancos têm em bancos de reserva.
A oferta monetária "M1" inclui toda a oferta monetária "M0" bem como todo o dinheiro possuído em contas à ordem nos bancos, além de todo o dinheiro contido em travelers' checks.
A oferta monetária "M2" inclui toda a oferta monetária "M1" mais a maior parte de outras contas de poupança, contas do mercado monetário, mercado monetário a retalho dos fundos mútuos e depósitos a prazo de pequenos valores (certificados de depósitos inferiores a US$100 mil).
A oferta monetária "M3" inclui toda a oferta monetária "M2" mais todos os outros Certificados de Depósito (depósitos a longo prazo e saldos dos fundos mútuos do mercado monetário institucional), depósitos de eurodólares e acordos de recompra. O Federal Reserve cessou de publicar os dados da oferta de moeda M3 do dólar americano em 23/Março/2006. Ver  www.federalreserve.gov/releases/h6/discm3.htm

[*] Economista.

O original encontra-se em https://thenextrecession.wordpress.com/2021/10/11/stagflation-a-demand-or-supply-side-story/. Tradução de JF.

Este artigo encontra-se em resistir.info

14/Out/21