Há cerca de um ano, a Comissão da União Europeia pediu a Mario Draghi que redigisse um relatório histórico sobre o futuro da economia europeia. Draghi é um antigo banqueiro da Goldman Sachs, antigo diretor do banco central italiano e depois presidente do Banco Central Europeu, antes de se tornar, por um breve período, primeiro-ministro de Itália. Por isso, aos olhos da Comissão, era claramente adequado para procurar formas de evitar que o capital europeu ficasse atrás do resto do mundo.
Esta semana, foi publicado o relatório de Draghi. Isto acontece numa altura em que as principais economias europeias estão em recessão (Alemanha, Suécia, Áustria) ou em estagnação (França, Itália). Quase nenhuma economia da UE está a crescer mais de 1% ao ano e a média da zona UE/Zona Euro é de apenas +0,2%.
O relatório, intitulado “O futuro da competitividade europeia” ( The future of European competitiveness), tem 600 páginas [mas só 69 pgs. foram divulgadas]. Traça um quadro miserável, mas exato, do declínio relativo das economias da UE em termos de crescimento da produção e da produtividade, do nível de vida e do progresso técnico, em comparação com os EUA e a Ásia.
A Europa saiu de uma guerra terrível em 1945 que dizimou a sua população e a sua economia. Mas, nos 50 anos seguintes do séculoXX, registou uma rápida recuperação económica (pelo menos nos países centrais da Europa), acabando por rivalizar com a produção e os níveis de vida da América do Norte e do Japão. Criou novas instituições destinadas a integrar as economias nacionais da região e a evitar novas guerras internas.
Segundo o relatório, “o modelo europeu combina uma economia aberta, um elevado grau de concorrência no mercado e um quadro jurídico sólido”. Construiu um “mercado único” de 440 milhões de consumidores e 23 milhões de empresas, que representa cerca de 17% do PIB mundial, ao mesmo tempo que atingiu taxas de desigualdade de rendimentos que são cerca de 10 pontos percentuais inferiores às registadas nos EUA e na China.
Simultaneamente, a UE obteve resultados de primeiro plano em termos de governação, saúde, educação e proteção do ambiente. Dos dez países com melhores resultados a nível mundial no que respeita à aplicação do “Estado de direito”, oito são Estados-Membros da UE. A Europa está à frente dos EUA e da China em termos de esperança de vida à nascença e de baixa mortalidade infantil. Os sistemas de educação e formação da Europa proporcionam um elevado nível de escolaridade, com um terço dos adultos a concluir o ensino superior.
A UE é também o líder mundial em matéria de sustentabilidade e normas ambientais, apoiada pelos objectivos mundiais mais ambiciosos em matéria de descarbonização [NR], e pode beneficiar da maior zona económica exclusiva do mundo, que cobre 17 milhões de quilómetros quadrados, quatro vezes a superfície terrestre da UE.
Mas agora está em grave crise – de facto, Draghi chama à situação “um desafio existencial”. E no relatório Draghi faz um balanço da triste história do desempenho económico relativo da Europa no séculoXXI – na verdade, desde que foi lançada a moeda única euro.
O crescimento económico da UE tem sido persistentemente mais lento do que o dos EUA nas últimas duas décadas, enquanto a China tem recuperado rapidamente o seu atraso. A diferença entre a UE e os EUA em termos de PIB em 2015 aumentou gradualmente, passando de pouco mais de 15% em 2002 para 30% em 2023. O fosso aumentou menos numa base per capita, uma vez que os EUA registaram um crescimento populacional mais rápido, mas continua a ser significativo, situando-se atualmente nos 34%. O principal fator desta evolução divergente tem sido a produtividade. Cerca de 70% da diferença do PIB per capita em relação aos EUA explica-se pela menor produtividade na UE.
Muitas economias da UE prosperaram e dependem da expansão do comércio mundial. Mas a era do rápido crescimento do comércio mundial já passou: o FMI prevê que o comércio mundial cresça apenas 3,2% por ano a médio prazo, um ritmo muito inferior à média anual de 4,9% registada entre 2000 e 2019. Com efeito, a parte da UE no comércio mundial está a diminuir, com uma queda notável desde o início da pandemia.
No passado, a Europa conseguiu satisfazer a sua procura de energia importada através da instalação de um grande gasoduto da Rússia, que em 2021 representou cerca de 45% das importações de gás natural da UE. Mas, na sequência do conflito na Ucrânia, esta energia barata desapareceu, com enormes custos para a Europa. A UE perdeu mais de um ano de crescimento do PIB, ao mesmo tempo que teve de redirecionar enormes recursos orçamentais para subsídios à energia e para a construção de novas infraestruturas de importação de gás natural liquefeito. Embora os preços da energia tenham baixado consideravelmente desde os seus picos, as empresas da UE continuam a ter de suportar preços da eletricidade que são 2 a 3 vezes superiores aos dos EUA e os preços do gás natural são 4 a 5 vezes mais elevados.
O mais importante para Draghi é o facto de a posição da Europa nas tecnologias avançadas que podem impulsionar o crescimento futuro estar a diminuir. Apenas quatro das 50 maiores empresas tecnológicas do mundo são europeias e a posição global da UE no domínio da tecnologia está a deteriorar-se: de 2013 a 2023, a sua quota-parte nas receitas tecnológicas globais caiu de 22% para 18%, enquanto a quota-parte dos EUA subiu de 30% para 38%.
O atraso no crescimento da produtividade é mais prejudicial para o futuro do capital europeu. A UE está a entrar no primeiro período da sua história em que o crescimento não será apoiado pelo aumento da população. Até 2040, prevê-se que a população ativa diminua em cerca de 2 milhões de trabalhadores por ano. O relatório não menciona este aspeto, mas um novo estudo recente concluiu que o envelhecimento da população europeia “causará enormes ventos contrários ao crescimento económico”. Embora a evolução demográfica tenha contribuído positivamente para o crescimento económico per capita, nas próximas décadas, reduzirá a taxa de crescimento das economias europeias do G4 em 0,3 a 1 ponto percentual por ano.
Draghi conclui: "Teremos de nos apoiar mais na produtividade para impulsionar o crescimento. Mas se a UE mantivesse a sua taxa média de crescimento da produtividade desde 2015, isso só seria suficiente para manter o PIB constante até 2050 – momento em que a UE enfrentará uma série de novas necessidades de investimento que terão de ser financiadas através de um crescimento mais elevado”.
O problema é que o baixo crescimento da produtividade é causado pelo baixo investimento nos sectores produtivos, em especial nas novas tecnologias. A diferença entre o investimento produtivo e o PIB nos EUA e na Europa é de cerca de 1,5% p.p. do PIB todos os anos.
O relatório apenas menciona, numa nota, um estudo do Banco Europeu de Investimento (BEI) sobre a origem desta diferença no investimento produtivo. Esse estudo mostra que a taxa global de investimento em relação ao PIB na UE é, de facto, em média, mais elevada do que nos EUA. Em parte, isso deve-se ao facto de, nos anos da Longa Depressão de 2010-19, o PIB dos EUA ter aumentado mais rapidamente do que o da UE. Assim, embora o investimento nos EUA tenha aumentado mais rapidamente do que na UE, o rácio do investimento em relação ao PIB dos EUA permaneceu inferior ao da Europa.
Além disso, quando se comparam corretamente os deflatores de preços para o investimento real nas duas regiões e se exclui o investimento imobiliário e na construção (50% do investimento na UE contra 40% nos EUA), a diferença nas taxas de “investimento produtivo” inverte-se. Em média, durante o período 2012-2020, a diferença média em termos reais foi de 2,6 pp do PIB. Quinze países registaram um défice de investimento em relação aos EUA superior à média da UE, incluindo algumas das maiores economias, como os Países Baixos (2,7 p.p.), a Alemanha (2,8 p.p.), a Itália (4,0 p.p.), a França (2,5 p.p.) e a Espanha (4,3 p.p.) – por outras palavras, o núcleo da Europa.
O BEI constatou que o défice de investimento da UE se situava, em grande medida, nos “activos incorpóreos”, ou seja, patentes, propriedade intelectual e software, etc. Nestes domínios, os EUA estão muito à frente. As empresas da UE especializam-se em “tecnologias maduras em que o potencial de descoberta é limitado, gastam menos em investigação e inovação (I&I) – 270 mil milhões de euros menos do que as suas congéneres americanas em 2021. Os três maiores investidores em I&I na Europa têm sido dominados por empresas do sector automóvel nos últimos vinte anos. O mesmo aconteceu nos EUA no início da década de 2000, com os sectores automóvel e farmacêutico a liderarem, mas agora os três primeiros estão todos no sector tecnológico”.
Quais são as explicações de Draghi para os baixos níveis de investimento produtivo na Europa, nomeadamente em tecnologia? Sendo um bom banqueiro, Draghi atribui a culpa à “falta de financiamento” e à incapacidade de fundir as empresas em multinacionais de grande dimensão que possam competir com os EUA. "A Europa está presa a uma estrutura industrial estática, com poucas empresas novas a surgirem para perturbar os sectores existentes ou desenvolver novos motores de crescimento. De facto, não há nenhuma empresa da UE com uma capitalização bolsista superior a 100 mil milhões de euros que tenha sido criada de raiz nos últimos cinquenta anos, ao passo que as seis empresas americanas com uma avaliação superior a 1000 milhões de euros foram criadas neste período".
Draghi afirma que uma das principais razões para uma “intermediação financeira” menos eficiente na Europa é o facto de os mercados de capitais permanecerem fragmentados e os fluxos de poupança para os mercados de capitais serem menores. É necessário que exista um mercado de capitais à escala da UE e um capital de risco baseado na UE que não dependa dos EUA. Como se vê: "muitos empresários europeus preferem procurar financiamento junto de investidores de capital de risco americanos e expandir-se no mercado americano. Entre 2008 e 2021, cerca de 30% dos “unicórnios” fundados na Europa – empresas em fase de arranque avaliadas em mais de mil milhões de dólares – transferiram a sua sede para o estrangeiro, tendo a grande maioria ido para os EUA”.
Há demasiada regulamentação burocrática e mercados de crédito ineficientes para “desbloquear o capital privado”. De acordo com Draghi, "as famílias da UE proporcionam amplas poupanças para financiar um maior investimento, mas, atualmente, estas poupanças não estão a ser canalizadas de forma eficiente para investimentos produtivos. Em 2022, a poupança das famílias da UE era de 1 390 mil milhões de euros, em comparação com 840 mil milhões de euros nos EUA”.
Mas será que a ineficiência dos mercados de capitais da UE é a causa do menor investimento produtivo na Europa? O relatório sugere a verdadeira causa quando afirma que os custos de financiamento privado são demasiado elevados em comparação com os retornos que o sector capitalista da UE exige para aumentar o investimento produtivo, em oposição ao investimento em activos imobiliários ou financeiros. A verdadeira causa reside na menor taxa de lucratividade do capital europeu em relação ao americano. É o caso, nomeadamente, desde 2017 (no exemplo abaixo, da rendibilidade dos EUA e da Alemanha).
Não consta do relatório, mas talvez seja relevante, o facto de na UE existirem muito mais empresas de menor dimensão com uma baixa rentabilidade, enquanto nos EUA uma maior concentração de capital aumentou os lucros das poucas megatecnologias no topo. Desde 2000, as taxas de lucro bruto nos Estados Unidos aumentaram e a concentração do sector disparou, mas estas tendências não se verificam na União Europeia.
Draghi conclui que "o ciclo resultante de baixo dinamismo industrial, baixa inovação, baixo investimento e baixo crescimento da produtividade na Europa poderia ser caracterizado como ‘a armadilha da tecnologia média’. Mas, na minha opinião, este é um produto do “défice de lucratividade”.
O que é que se pode fazer em relação aos desvios de produtividade e de investimento? Draghi afirma que "é necessário um investimento adicional anual mínimo de 750 a 800 mil milhões de euros, correspondente a 4,4-4,7% do PIB da UE em 2023. A título de comparação, o investimento no âmbito do Plano Marshall entre 1948-51 foi equivalente a apenas 1-2% do PIB da UE. Para conseguir este aumento, seria necessário que a parte do investimento da UE passasse dos actuais 22% do PIB para cerca de 27%, invertendo um declínio de várias décadas na maioria das grandes economias da UE. “Trata-se de um aumento dos níveis de investimento em relação ao PIB que não se registava desde a Idade de Ouro dos anos 50 e 60, quando a Europa se expandiu rapidamente após a guerra.
Será viável esperar que o capital europeu seja capaz ou esteja disposto a restaurar essas décadas douradas de investimento 50 anos mais tarde? Como reconhece o relatório. “Historicamente, na Europa, cerca de quatro quintos do investimento produtivo foi realizado pelo sector privado e o restante um quinto pelo sector público. Assim, numa Europa capitalista, cabe aos capitalistas investir mais para obter a necessária maior produtividade nas áreas-chave. O sector público não pode fazer isso e a Comissão Europeia e Draghi não querem certamente que o investimento público substitua o sector capitalista através da propriedade pública e do planeamento dos “pontos de comando” das economias europeias.
Por isso, a resposta de Draghi é a habitual solução pró-empresarial. Os governos devem criar incentivos monetários e fiscais para “encorajar” os capitalistas a investir. Em primeiro lugar, é preciso baixar os custos de financiamento, mas “para conseguir um investimento privado de cerca de 4% do PIB apenas através do financiamento do mercado, seria necessária uma redução do custo privado do capital em cerca de 250 pontos de base, segundo o modelo da Comissão Europeia”. Dificilmente possível na atual conjuntura inflacionista. E, de qualquer forma, “embora se espere que uma maior eficiência do mercado de capitais (por exemplo, através da conclusão da União dos Mercados de Capitais) reduza os custos de financiamento privado, a redução será provavelmente substancialmente menor. Por conseguinte, parecem ser necessários incentivos fiscais para desbloquear o investimento privado para financiar o plano de investimento, para além do investimento direto do governo”.
Assim, os governos de toda a UE têm de disponibilizar mais fundos públicos. Mas isto leva a outro problema. Os governos da UE, sobretudo na Europa Central, são movidos pela necessidade de “equilibrar o orçamento” e de não aumentar a dívida pública ou os impostos em demasia. Há as regras orçamentais da UE que não podem ser quebradas!
Draghi quer mais “empréstimos conjuntos”, ou seja, a UE emite mais dívida garantida pela UE para financiar projectos. Mas este é um grande tabu na UE. A Alemanha e os Países Baixos têm níveis baixos de dívida pública e não gostam de apoiar os seus vizinhos mais endividados. Menos de três horas depois de Draghi ter terminado a sua apresentação, o ministro das Finanças alemão, Christian Lindner, disse que “a Alemanha não vai concordar” com o “empréstimo conjunto”, uma vez que o empréstimo conjunto “pode ser resumido de forma breve: A Alemanha deve pagar pelos outros. Mas isso não pode ser um plano diretor".
Draghi sugere mais impostos à escala da UE para aumentar a dimensão da Comissão Europeia, que é demasiado pequena e concentra as despesas na “coesão social”, nos subsídios regionais e na agricultura, em vez de as concentrar no “investimento produtivo”.
Draghi quer reduzir a despesa pública da UE nos domínios existentes e transferi-la para a tecnologia. “Se as despesas públicas relacionadas com o investimento não forem compensadas por poupanças orçamentais noutras áreas, os saldos orçamentais primários podem deteriorar-se temporariamente antes de o plano de investimento exercer plenamente o seu impacto positivo na produção”. Uma tal mudança não seria bem aceite pelos agricultores e pela Europa de Leste.
Em resumo, o relatório Draghi sublinha o grave declínio do desempenho competitivo do capital europeu no século XXI, em comparação com os EUA e a Ásia. Trata-se de um “desafio existencial” que só pode ser ultrapassado através de um aumento maciço do investimento, principalmente em novas tecnologias. Isto só pode ser conseguido se o sector capitalista investir mais. O investimento público é demasiado pequeno e, de qualquer modo, os governos pró-empresariais da UE não querem assumir o controlo das grandes empresas privadas e planearam, em vez disso, o investimento público. Isso seria o fim da Europa capitalista. Por isso, Draghi diz que o que é preciso fazer é encorajar as grandes empresas europeias a investir mais com crédito mais barato, mercados desregulamentados e mais incentivos fiscais governamentais para “desbloquear o investimento privado”. No entanto, as hipóteses de os governos dos Estados-membros da UE concordarem em gastar mais para ajudar suficientemente as empresas da UE são escassas.
A única forma de conseguir o enorme aumento necessário do investimento produtivo será a lucratividade do capital europeu dar um salto. Mas isso não se conseguirá tornando os custos do crédito mais baratos, mas apenas através de um forte aumento da exploração do trabalho na Europa e da “destruição criativa” da “tecnologia intermédia” para reduzir os custos. Se tal não acontecer, o declínio relativo da UE a nível mundial manter-se-á e até será acelerado.