Líbano: Balanço da última agressão
O Líbano foi recentemente alvo de uma nova agressão por parte de
Israel.
Como de costume, depois de mais de meio século, o carrasco faz-se passar
por vítima. O pretexto, desta vez, foi a captura de dois soldados
israelenses, em território libanês, aproveitando um
comprometimento militar. Com o intuito de criminalizar o acto, o termo
raptados
foi imediatamente substituído pelo de
prisioneiros,
o único adequado. Sem remontar a Ben Gurion e ao fantasma de
transformar cristãos libaneses em aliados protegidos de Israel,
convém lembrar que o plano de subjugar o Líbano é antigo e
que Ariel Sharon se reviu nele, por ocasião da marcha sobre de Beirute,
concluída pelos massacres em Sabra e Chatila (1982). Actualmente, a
estratégia israelense inscreve-se claramente nos planos dos
neoconservadores da administração Bush, que consistem em criar as
bases para um "Grande Médio Oriente", subordinadas à
lógica do imperialismo: é a sua tarefa de "rottweiler da
América" (Uri Avnery). Trata-se de assegurar, pelo menos, o
domínio que já conseguiram até ao rio Litani, e a partir
daí, aniquilar o Hezbollah o que serviria, também, de
compensação pelo humilhante abandono do Sul do Líbano pelo
Tsahal, em Maio de 2001.
Além disso, deve-se salientar o facto de o ataque ter sido desencadeado
na véspera da assinatura pelo Fatah e pelo Hamas de um acordo de
governo, elaborado a partir do documento redigido pelos prisioneiros
palestinianos, pertencentes aos dois movimentos.
Em pouco mais de um mês, e à imagem do que se passa no
Afeganistão e no Iraque, onde a exportação da democracia
tem os resultados que se sabem, eis o balanço total do massacre
deliberado de um país: mais de 1100 mortos, cerca de 4000 feridos, na
sua maioria civis, entre os quais numerosas crianças; um milhão
de refugiados, o que corresponderá a cerca de um terço da
população; cidades e aldeias arrasadas; infra-estruturas
destruídas: as principais estradas da rede rodoviária e 45 pontes
que teriam permitido a passagem de unidades de socorro , 5
centrais eléctricas, uma delas bombardeada, o que causou uma nuvem negra
sem precedentes no Mediterrâneo; 6500 empresas, escolas, centros de
saúde
Será que crime de guerra é uma
qualificação inconveniente? Durante esse tempo, Olmert e o seu
bando de ex-pombas da paz, tiveram as mãos livres para actuar sobre a
Palestina, continuar a rotina da repressão (200 mortos e 800 feridos
desde Junho) concluída pela prisão (não se diz rapto) do
presidente do Parlamento, de ministros e de numerosos membros eleitos, que se
juntavam assim aos milhares de encarcerados palestinianos e libaneses. "
Sionazismo
": denunciou um periodista italiano.
Teríamos gostado de saudar aqueles, que no seio do Estado de Israel,
seriam capazes de levantar a voz contra uma tal barbárie. Extenuado, o
tempo da esquerda acabou. A esquerda desapareceu. Exceptuando o último
reduto de justos, a opinião pública (cerca de 80%) acorda o seu
apoio ao governo, e, quando ela desce para os 30-35%, é simplesmente
porque a "vitória-relâmpago-zero-mortos" anunciada
não se produz.
Não é de estranhar, então, que no exterior reine a
cobardia, a cumplicidade e a submissão, até um pouco mais do que
de costume. Os chefes árabes, reunidos em Beirute, exprimem a sua
solidariedade (moral), ou não estivesse já quase tudo cozinhado.
A França, tão amada no Próximo Oriente, ama
reciprocamente, até porque possui cerca de 4000 empresas na sua antiga
colónia, e confia as suas manobras ao perito Douste-Blazy: ao
reforçar o conluio, juntamente com os Estados Unidos, aquando do
assassinato de Rafic Hariri (sobre o qual continuamos à espera de
esclarecimentos), a França mobiliza o Conselho Nacional de
Segurança a adoptar a resolução 1701, a qual, sob coberta
de cessar-fogo e de retorno à paz, retoma, na verdade, a
resolução 1559, que permitiu aos dois comparsas "trabalharem
activamente para fazerem emergir no Líbano um poder local
favorável às teses americanas" (G. Corm), que seria
reforçado através da liquidação do movimento
"terrorista" do Hezbollah.
A comunidade internacional, tendo permanecido impávida perante o
massacre, acerta o compasso. Na conferência de Roma, o seu alto
representante, Kofi Anan, que, no dia anterior, tinha acusado Israel de ataque
deliberado contra a ONU, em Caná, cede às injunções
de Condoleeza Rice, e aceita as desculpas cínicas de Tel Aviv.
Os nossos fazedores de opinião, da imprensa escrita e audiovisual,
não estão impunes. Ao aderirem, sem o reconhecerem, à tese
bushista do "islamo-fascismo", eles asseguram, com uma bela
convicção, o serviço de propaganda sionista: Israel foi
atacado, tem de se defender, embora a sua resposta seja
"desproporcionada"; deplorando os mortos e a destruição
"dos dois lados", escolhem qual deles deve ser lamentado; os
combatentes do Hezbollah são cobardolas que "se escondem"
entre a população (uma curiosa definição para
"movimento popular"), daí a morte de civis; no entanto,
solicitou-se generosamente aos ditos civis, por diversas ocasiões, que
evacuassem as suas casas antes da chuva de mísseis (N.B.: bombas com
fósforo); uma oficina informativa,
Intelligence Online
(do grupo francês
Le Monde
) não tem receio de afirmar (28-08-06) que Hassan Nasrallah, o
secretário-geral do Hezbollah, seguiu durante meses uma
formação, paga pelo Irão, em Pyongyang
Com efeito, o Hezbollah foi objecto de todas as ignomínias
terrorista, agente ao serviço do estrangeiro, fascista , por parte
de boas almas de "esquerda" (e de extrema esquerda). A estas, as
mesmas que durante a "crise dos subúrbios" de Novembro
último, prodigalizavam conselhos e precauções contra os
"selvagens", deve-se perguntar com que direito é que elas se
fazem procuradoras de uma resistência, da qual, na realidade, elas nada
querem ouvir? "Partido de Deus", islamistas, logo
não-progressistas, a equação é simples. Lembremos,
apesar de ser impossível retomar aqui o fio da história, que
nós temos a nossa parte de responsabilidade face a este fenómeno
que se estende bem para além do Líbano. "Nós"
os comunistas, os socialistas, os progressistas, os democratas, os
nacionalistas, os laicos e mesmo os republicanos, sob o efeito
pós-Bandung, ou seja, da conjugação dos nossos erros e das
nossas derrotas, das contra-ofensivas imperialistas e da
constituição de regimes reaccionários apressados em
eliminar toda a força opositora nos seus países nós
fomos vencidos. Ora, a política, tal como a natureza, tem horror do
vazio. E os povos sabem, chegado o momento, ir buscar às suas reservas
profundas a energia que lhes permitirá manterem-se de pé. Os
exemplos dessa atitude são incontáveis. No Próximo
Oriente, a época da OLP democrática, laica, igualitária
entre homens e mulheres, enevoou-se. Estamos perante um verdadeiro projecto de
expulsão e de exterminação, na Palestina e no
Líbano indissociavelmente (ao contrário do que se afirmava no
Quai d'Orsay, desde o início do conflito), que pode estender-se para
outros lugares, na direcção da Síria e do Irão,
perspectivando distâncias cada vez mais longas. Este projecto originou
uma força de oposição que não só conseguiu
enfrentá-lo, como também criar-lhe grandes dificuldades, isso
está à vista de todos. O Hezbollah, convém repetir, nasceu
num dos períodos mais duros da história contemporânea do
Líbano, precisamente para acabar com a ocupação
israelense. Tal como a comunidade xiita, de longe aquela menos bem
distribuída, o Hezbollah é maioritário dentro do
país, tendo-se tornado um partido nacional, com ministros e deputados,
e, substituindo-se a um Estado debilitado, ele tem animado múltiplas
redes de interajuda, gerado escolas e hospitais. Face à agressão
deste Verão, o Hezbollah reuniu os cristãos em torno do general
Aoun, do Partido Comunista (que ele havia perseguido, dez anos antes) e de
outras forças nacionalistas; fez prova da coragem dos seus militantes e,
tal como os vietnamitas outrora, do seu domínio das tácticas de
guerrilha; conseguiu, num afrontamento, pudicamente apelidado de
"assimétrico" pelos polemólogos [estudiosos do
fenómeno da guerra], infligir ao "quarto exército do
mundo" os golpes mais inesperados: algumas dezenas de tanques de guerra
indestrutíveis destruídos, um avião inacessível
abatido, um navio inaufragável naufragado, sem contar com o fogo de
artifício permanente dos katiuchas inlocalizáveis. O Hezbollah
conseguiu também impedir, dentro de uma nação com
identidades comunitárias fortes, o rebentamento de uma guerra civil que
se tenta provocar noutros lugares. O que lhe valeu a solidariedade,
frequentemente activa, de uma grande parte da população, e que
suscitou uma vaga de entusiasmo entre todos os povos do mundo muçulmano,
particularmente entre os seus vizinhos mais próximos, pelo feito
há muito adiado: combater o inimigo comum com sucesso. Evidentemente,
isso não é nada. E as coisas não estão paradas. Num
dos seus discursos, Nasrallah felicitava-se pelo facto de multidões de
jovens, enquanto se manifestavam em seu favor, exibirem retratos de Che e de
Chávez (note-se, o único chefe de Estado a ter exigido a retirada
do seu embaixador de Israel). As discussões estão em curso para a
mudança do nome do partido e da sua linha política futura. No
caso de enveredarem pela islamização, terão de ser os
libaneses a pronunciarem-se. Perante os nossos procuradores de luvas brancas,
certamente que não. Este argumento tem sido tão utilizado pela
propaganda mediática, que os apoios financeiros e bélicos por
parte da Síria e do Irão, se é que eles existem,
não teriam nada de chocante. Já para não falar, ainda que
os nossos tablóides o esqueçam conscientemente, dos montantes
obscenos de guita (um milhão de dólares oferecidos, há
dias, pela Fundação Spielberg) e de engenhos de guerra ultra
sofisticados que Israel recebe dos EUA, desde sempre, e que lhe confere a sua
superioridade. Gostaria ainda de lembrar que o Vietname costumava beneficiar da
ajuda soviética e os guerrilheiros franceses do que os britânicos
lhes lançavam em pára-quedas.
E a FINUL? Duas palavras. A sua constituição, o seu
número, a sua presença e o seu papel foram louvados com um grande
alívio. A comunidade internacional quis recuperar aí a sua boa
consciência mal dirigida. A França, eleita por Tel Aviv para
assumir o comando, está doravante oficialmente e completamente
reconciliada com a Casa Branca, e, melhor ainda, nas vésperas das
eleições presidenciais, Chirac consegue habilmente obter o
consenso tanto da direita como da esquerda, e inclusive do Partido Comunista.
Mas atenção, a resolução 1701/1559, a única,
até aqui, a receber o pleno acordo de Israel, vai ser aplicada. O
desarmamento do Hezbollah permanece na ordem do dia. Para o levar a cabo, os
Capacetes Azuis, verdadeira força de ocupação
imperialista, deverão vestir o uniforme supletivo, encarregado de
"acabar o trabalho" de um Tsahal abatido, que poderá
começar a preparar tranquilamente um "second round",
tão desejado pelos seus paranóicos. Não sendo obrigado a
regressar às suas fronteiras, Israel conservará os
territórios que anexou as quintas de Shebaa no Líbano e
esse pedaço da Síria, de que ninguém fala, o Golã.
Tudo recomeçará e os palestinianos, ignorados e postos de lado,
continuarão a sofrer as afrontas sem poder de reacção.
Acrescentemos que, como de costume, nós, os europeus, incluindo portanto
os prestáveis franceses, encarregar-nos-emos, para além de
suportar os custos ocasionados pela presença militar, de limpar a casa:
começando, por exemplo, por retirar a poluição
petrolífera das praias, por financiar a reconstrução civil
e a assistência humanitária, não sendo nunca aplicado o
princípio do destruidor-pagador.
A Palestina, o Iraque, o Líbano são os postos avançados de
uma resistência em vias de ganhar forma um pouco por todo o mundo contra
os criminosos da "guerra sem fim". Apoiá-los é um dos
deveres básicos dos progressistas de todas as filiações.
[*]
Professor da Universidade de Paris, autor de
Dictionnaire critique du marxisme
.
Esta tomada de posição será publicada no próximo
número da revista
Utopie Critique
. Tradução de Rita Maia.
Este artigo encontra-se em
http://resistir.info/
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