por Miguel Urbano Rodrigues
Voltei ao Brasil em Novembro. Tinha decidido que seria a minha última
visita.
Essa certeza contribuiu para que o reencontro fosse muito doloroso.
Estive em São Paulo e no Rio em 2012. Daí a surpresa.
No breve espaço de dois anos, a atmosfera, o comportamento de parcela
importante de estamentos sociais da burguesia e os
media
que formam a opinião da maioria da população mudaram
muito. Nesta despedida senti-me num país quase desconhecido.
A alegria do reencontro com um povo que amo profundamente foi neutralizada pela
consciência de que a sociedade brasileira adquiriu características
pantanosas.
A miséria absoluta diminuiu durante os governos de Lula e Dilma. Mas,
paradoxalmente, o abismo que separa a minoria privilegiada das grandes maiorias
aumentou. Os ricos enriqueceram prodigiosamente. Segundo o diário
O Estado de S.Paulo
o Brasil tem hoje 61 multimilionários cujas fortunas somam mais de 161
mil milhões de dólares.
A tensão social é transparente. Diferente da que conheci nos anos
da ditadura militar. É uma tensão que não anuncia no
imediato uma ascensão explosiva da luta de classes.
As condições objetivas são favoráveis a grandes
lutas sociais. As manifestações de protesto contra o governo no
Rio, em São Paulo e noutros estados, algumas convocadas pela direita,
tornaram-se quase diárias. Oposicionistas pediram inclusive o
impedimento de Dilma pelo Congresso e a demissão imediata do Governo. Em
São Paulo, exigiram nas redes sociais "a demissão de toda a
classe politica" e "o fim do financiamento dos partidos
politicos". Por si só transparece dessas
reivindicações um espontáreismo inofensivo.
Na atual conjuntura, a justa indignação dos trabalhadores
expressa apenas a recusa de um sistema apodrecido. A ausência de uma
organização revolucionaria com forte implantação
entre as massas favorece a classe dominante e assinala os limites da
contestação popular.
A tensão social crescente não desembocará numa
situação pré-revolucionária pela inexistência
de condições subjetivas.
FRAGILIDADE DE DILMA
Dilma foi eleita na segunda volta com 52 % dos votos emitidos apos uma campanha
duríssima, caracterizada por um baixo nível ideológico.
O atual Governo tem 39 ministros, número inimaginável em
Executivos europeus, e tudo indica que o próximo terá uma
dimensão semelhante. É intensa a especulação sobre
os nomes, mas Dilma já confirmou que o ministro da Fazenda será
Joaquim Levy, um banqueiro (foi vice presidente em Washington do Banco
Interamericano de Desenvolvimento) que integrou o governo de Fernando Henrique
Cardoso e defende medidas neoliberais exigidas pelo grande capital. As suas
declarações sobre a necessidade de uma politica de austeridade
são esclarecedoras das suas opções ideológicas.
Katia Abreu, a futura ministra da Agricultura, é uma adversaria da
Reforma Agraria e a indicação do seu nome foi festejada pela
"bancada rural" que representa na Camara dos deputados os interesses
do latifúndio e do agro-negócio.
Durante a campanha, intelectuais progressistas definiram Dilma como "o
mal menor", porque a eleição de Aecio, apoiado por
Washington e pela grande burguesia brasileira, implicaria uma submissão
total ao imperialismo norte-americano e ao grande capital transnacional. O
adversário de Dilma, um político com perfil de
playboy,
ao abordar o tema da política exterior, foi muito claro: defendeu uma
maior aproximação com os EUA e uma revisão das
relações com Cuba e os governos progressistas da Venezuela, da
Bolívia e do Equador.
UM MAR DE CORRUPÇÃO
A corrupção é um mal endémico na
Administração brasileira. Mas nos governos de Lula e Dilma
aumentou desmesuradamente. O escândalo do Mensalão, que levou
à prisão, entre muitos outros, José Dirceu, o ex chefe da
Casa Civil de Lula, cargo que no Brasil corresponde a primeiro-ministro, foi
agora largamente ultrapassado pelo lamaçal que envolve a Petrobras, a
maior empresa do país. O ex-diretor de Serviços, Renato Duque ,
dezenas de executivos do gigante petrolífero (atualmente um dos grandes
produtores do mundo) e dirigentes de algumas das maiores construtoras do Brasil
foram já presos por fraudes e crimes de corrupção
cometidos no exercício das suas funções. Muitos senadores
e deputados estão também comprometidos nessas sórdidas
negociatas.
Por ora não é possível avaliar o montante da roubalheira.
Mas admite-se que o total das luvas pagas a altos funcionários da
Petrobras por contratos ilegais e fraudes que favoreceram empreiteiras exceda
o equivalente a muitos milhares de milhões de euros.
O povo brasileiro reagiu com satisfação às prisões
já realizadas pela Policia Federal no âmbito da
Operação Lava Jato, mais conhecida como Juízo Final.
Dilma, informada dessas prisões em Brisbane, quando na Austrália
participava na Reunião do G-20, manifestou regozijo pela
ação da Justiça. "Elas demonstram declarou
que o Brasil está acabando com a impunidade (
) Acho que
isto pode de fato mudar o País para sempre".
A opinião não impressionou a oposição. Nos
órgãos de comunicação social mais influentes chovem
críticas à presidente a quem negam credibilidade.
É alias convicção generalizada que os principais
responsáveis pelos crimes que fizeram cair brutalmente as açoes
da Petrobras não serão punidos; as condenações
atingirão sobretudo funcionários subalternos.
A decisão de Marta Suplicy de se demitir de ministra da Cultura,
anunciada no auge do escândalo, foi interpretada como prólogo do
aprofundamento da crise do PT com o qual ela, uma oportunista ambiciosa,
estaria prestes a romper.
DEMOCRACIA DE FACHADA
Tal como em Portugal, os políticos do sistema abusam no Brasil da
palavra democracia para caracterizar o regime.
Mentem. Na realidade o país está submetido a uma ditadura da
burguesia de fachada democrática.
O funcionamento do sistema tem facetas caricaturais.
As eleições presidenciais, legislativas e as realizadas
para os governos estaduais foram disputadas por 28 partidos que elegeram
553 deputados federais
As coligações, regulamentadas por uma legislação
absurda, permitiram em alguns casos a eleição de candidatos de
partidos opostos ao do cidadão votante.
Poucos confiam na promessa de Dilma de "reorganizar a sociedade
brasileira, conferindo o papel de direção àqueles que
vivem do seu trabalho e da cultura".
No primeiro mandato ela esqueceu sistematicamente os compromissos assumidos.
Na prática o governo quase neoliberal da PT renunciou há muito ao
programa que levou Lula à Presidência. Na prática acredita
que administra melhor o capitalismo do que a direita tradicional. O populismo
de Dilma como o de Lula engana cada vez menos os trabalhadores, mas parcela
ponderável do povo brasileiro, modelada por uma
media
alienante, ainda não assimilou essa evidência.
CRISE MULTIPLA
O país caiu em recessão técnica.
Em Outubro a balança comercial apresentou um défice de 1200
milhões de dólares. A quebra do PIB reflete a
diminuição dos preços das matérias-primas, base das
exportações.
A taxa oficial de desemprego carece de credibilidade. Os despedimentos no setor
privado não esbarram com obstáculos legais. Um exemplo: o HSBC, o
gigante britânico o maior banco do mundo anunciou para
breve o despedimento de aproximadamente mil trabalhadores das suas
agências no país.
Na indústria automóvel, uma das mais importantes do mundo, a
produção de veículos caiu 16% em relação ao
ano passado.
A incapacidade das prefeituras (camaras municipais em Portugal) para responder
satisfatoriamente às exigências de moradia digna para as pessoas
em busca de emprego que afluem às grandes megalópolis
brasileiras contribui para a vaga de ocupações.
No centro de São Paulo a atmosfera é hoje muito diferente da que
conheci ali nos meus anos de exilio.
Prédios degradados construídos entre as duas guerras mundiais
foram ocupados por famílias ligadas ao Movimento dos Sem Teto.
Os proprietários e influentes políticos exigem que os ocupantes
sejam desalojados, mas o prefeito não lhes tem atendido os apelos,
temendo aumento da tensão social.
Mais grave é a concentração de drogados em alguns bairros
residenciais. No Jaguaré, a uma centena de metros de um grande
supermercado, dezenas de toxico-dependentes permanecem noite e dia nos
passeios, remexendo em montes de lixo. Vi alguns injetando-se.
O lugar é conhecido como a Cracolandia, nome derivado do crack que
consomem.
As favelas também não desapareceram de São Paulo (tres
milhões vivem em favelas e cortiços). Mas é no Rio de
Janeiro que a sua proliferação impressiona mais o forasteiro.
Semeadas pela cidade, implantadas inclusive em morros que envolvem bairros de
luxo da orla marítima, elas são o rosto de uma tragedia social e
configuram um desafio para o qual os governantes não encontraram ate
hoje uma solução eficaz.
Mais de 80% dos favelados são trabalhadores, cidadãos tranquilos,
abertos ao convívio, refletindo a cordialidade brasileira; mas é
a minoria dos marginais, dos criminosos e drogados que projeta a imagem da
favela.
A ocupação militar de algumas nos meses que precederam a Copa do
Mundo de Futebol não resolveu, como se temia, o problema social cuja
imagem degradante é identificável no polo de miséria que
são as favelas cariocas, onde o crime organizado se encontra solidamente
instalado, com a complexidade de polícias corruptos.
Que fazer? Aquela terrível realidade dói. Mas não me
atrevo sequer a abordar o tema do inventário dos debates gerados pela
chaga social das favelas.
Nas grandes cidades brasileiras como nas capitais da Colômbia, do
Peru, do México, de San Salvador, entre outras o problema da
violência angustia a população. Não tem
diminuído.
As estatísticas são alarmantes Em 2013 foram assassinadas no
país 53 mil pessoas. A cada 4 minutos uma mulher é estuprada.
Claude Levy Strauss escreveu nos
Tristes Trópicos
que o Brasil é o pais da decadência do inacabado. Utilizando essa
expressão transmitiu a impressão causada pelo facto de grandes
edifícios residenciais e obras monumentais apresentarem falhas de
construção, envelhecendo antes de concluidos.
Nestas semanas, ao revisitar em correria o Brasil, a contradição
ostensiva entre a modernidade e o arcaísmo fez-me recordar o
comentário de Levy Strauss
Em múltiplos ramos do setor avançado, o Brasil situa-se na
vanguarda mundial do progresso técnico e científico. Mas essa
transformação do país onde vivi quase duas décadas
antes da Revolução Portuguesa coexiste com o outro Brasil, mesmo
em áreas urbanas, nas favelas e cortiços, nomeadamente
onde tive a sensação do tempo parado.
Na imensidão do gigante sul-americano, à medida que nos afastamos
dos grandes centros do litoral somos projetados no espaço para
cenários de estagnação, para um passado remoto.
Em sertões do Nordeste e na espessura das matas amazónicas, a
vida mudou pouco em enormes regiões; ali os homens e as coisas empurram
a memória e a imaginação para arcaísmos africanos.
Um caboclo do alto rio Negro ou do Madeira está culturalmente mais
próximo do morador de um Kimbo do Kuando Kubango que de um
operário paulista ou carioca.
CONTRADIÇÕES
Conheço poucos países onde as contradições marquem
tão profundamente o fluir da vida.
Uma das que mais surpreende os estrangeiros é a que distancia nas
chamadas
elites
uma intelectualidade brilhante e criativa de uma colmeia de aventureiros
ambiciosos e medíocres (muitos corruptos) que exerce uma
influência decisiva no mundo apodrecido da política.
O Brasil onde surgiram intelectuais como Niemeyer e Florestan Fernandes gerou
figuras publicas sórdidas como Jânio Quadros, Adhemar de Barros e
Maluf, produz em serie deputados e senadores que tipificam admiravelmente
aquilo a que Marx chamou "o cretinismo parlamentar".
O contraste entre esses dois Brasis, coexistentes e antagónicos,
é identificável mais um exemplo numa simples visita
às grandes livrarias de São Paulo e do Rio.
Nas estantes encontra-se o que de melhor o homem criou desde a antiguidade nos
domínios do pensamento, da arte, da ciência. As principais
editoras lançam também no mercado, traduzidas, obras inovadoras,
recentes, sejam ensaios ou novelas publicadas na Europa, nos EUA, em diferentes
países definidos como emergentes.
Considero indispensável uma referencia especial à Editora
paulista Boitempo, de Ivana Jinkings, que lançou no Brasil, alem de
obras dos principais clássicos do Marxismo, autores contemporâneos
tão importantes como o húngaro Istvan Meszaros e o inglês
David Harvey.
Mas, num pais onde a contra cultura exportada pelos EUA pesa decisivamente na
mentalidade e nos gostos da pequena burguesia, os livros mais vendidos
são outros: o lixo impresso sobre temas do género como
enriquecer, como mudar de profissão ou personalidade, como conquistar
amigos, sobre ocultismo, questões astrais, religiões
exóticas e outras imbecilidades.
ESPERANÇA
Quatro dias em Minas Gerais, revisitando Ouro Preto, Mariana e Congonhas do
Campo, proporcionaram-me uma estranha viagem pela Historia e pela minha vida,
recordando alguém que viveu no meu corpo.
Foi há mais de 40 anos. Andei então pelas serranias e vales onde
o bandeirante Fernão Dias Pais descobriu o ouro que, passando por
Portugal, contribuiu para financiar a revolução industrial
inglesa.
Acompanhei nessa visita dois historiadores amigos: o francês Albert
Soboul e o português Barradas de Carvalho.
Muitos dos casarões setecentistas de Ouro Preto ameaçavam na
época desmoronar-se. Foram recuperados e a cidade é hoje um polo
turístico onde aflui gente de todo o mundo.
O Aleijadinho, o arquiteto e escultor que conferiu dimensão
internacional ao barroco mineiro, não teve em vida reconhecido o seu
génio. Morreu pobre e quase ignorado pelos seus contemporâneos.
Meditando sobre o tempo morto nas suas igrejas, ou acariciando a pedra escura
dos Profetas de Congonhas, percorrendo as salas do Museu da Inconfidência
em Ouro Preto atravessei neste inverno da vida a ponte invisível que
liga o Brasil que caminhava para a Independência para o Brasil gigante
de hoje, um pais e um povo então inimagináveis.
Para onde vai esta terra irrepetível, que ainda não se construiu
como nação?
Não ouso responder à pergunta.
No Brasil persistem desigualdades ofensivas da condição humana.
Uma classe dominante repulsiva enfeixa nas mãos o poder político,
compartilhando o económico com o imperialismo.
Sendo sombrio o presente e nevoento o futuro imediato, admito que o Brasil
está vocacionado para desempenhar um papel significante no amanhã
da humanidade.
Amo profundamente repito a gente brasileira. A violência,
que hoje alastra como flagelo nas grandes cidades, vai acabar quando as causas
sociais que a geram forem eliminadas numa distante sociedade socialista. A
cordialidade, a ternura, a alegria brasileiras essas vão
permanecer.
Não identifico no caótico sincretismo brasileiro um
prólogo de futuras desgraças. Pelo contrário.
Imaginando um futuro distante, o povo do Brasil aparece-me como uma
antecipação da humanidade mestiça que nascerá
lentamente da atual.
São Paulo, 29 de Novembro de 2014.
O original encontra-se em
www.odiario.info/?p=3481
Este artigo encontra-se em
http://resistir.info/
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