por Miguel Urbano Rodrigues
A editora Elsinor promove o livro
"Rapazes de Zinco, A geração Soviética Caída
na Guerra do Afeganistão"
afirmando que é um livro que "oferece uma
visão única e poderosa da realidade da Guerra do
Afeganistão". Mas o que efectivamente oferece é
deturpação histórica e reaccionarismo
anti-soviético.
Os livros que conheço de Svetlana Alexievich são todos marcados
por um anti-sovietismo inocultável.
O último
Rapazes de zinco, A geração soviética caída na
guerra do Afeganistão
[1]
é de longe o mais reacionário.
A editora Elsinor colaborou, convidando José Milhazes, um profissional
do anticomunismo, para escrever o prefácio da tradução
portuguesa.
DETURPAÇÃO DA HISTÓRIA
A extensa narrativa da laureada escritora, Premio Nobel de Literatura,
configura uma agressão transparente à Historia, montada
através de um conjunto de documentos por ela selecionados. Um trabalho
minucioso que lhe exigiu centenas de horas de trabalho e um esforço
enorme.
A autora informa que os depoimentos que publicou são de homens e
mulheres da URSS que participaram na guerra do Afeganistão ou de
familiares de militares que ali morreram.
Uma peculiaridade: nesses depoimentos não consta o nome dos
entrevistados, mas o posto e tarefa militar ou a relação familiar
com mães ou esposas daqueles que morreram na guerra.
Svetlana esclarece que omitiu a identificação de oficiais,
soldados e parentela.
"No livro revela não guardei nomes verdadeiros. Uns
pediram o segredo da confissão, outros querem esquecer tudo. Pode ser
que um dia os meus heróis queiram ser conhecidos".
A explicação não é de molde a convencer os
leitores; o carater anonimo dos depoimentos retira-lhes credibilidade.
ESTÓRIAS MEDONHAS
A grande maioria dos depoimentos que Svetlana afirma ter escutado e gravado nas
suas entrevistas é medonha, assustadora. A serem autênticos, os
oficiais e soldados que falaram com a escritora seriam responsáveis por
crimes monstruosos e as forças do Exercito Soviético que
participaram na guerra do Afeganistão uma horda de assassinos, drogados,
sádicos, violadores, ladrões, comparável às SS de
Hitler.
Para que os leitores possam ter uma ideia das declarações
supostamente gravadas por Svetlana transcrevo breves excertos do livro:
- "Ouvi vários homens dizerem: matar pode dar gosto; matar é
um prazer (
) Eram alimentados a carne com vermes, peixe que sabia a
ferrugem. Tenhamos todos escorbuto."
- Enfermeira
- "Trouxeram do "verde malaquita" um tenente sem braços
nem pernas. E sem nada masculino."
- Conselheiro militar
- "As seringas deixavam de ser esterilizadas. Metade delas não
aspirava a solução, tinham defeito."
- Sargento-ajudante sanitário
- "
vi como se compram aos médicos com cheques dois copos de
urina de um doente com icterícia. Para a beber. Para adoecer."
- praça, operador de comunicações
- "Depois do combate pende de uma árvore uma orelha humana
um
olho humano vai deslizando por um rosto humano."
- Comandante de pelotão de infantaria.
- "Trouxeram dois prisioneiros. Era necessário matar um deles
porque no helicóptero não havia lugar para dois, mas
precisávamos de um deles para conseguir informações."
- praça, atirador de lança granadas
- "Por que é que os jovens de dezoito ou dezanove anos matam com
mais facilidade do que, digamos, os de trinta."
- major de um regimento de artilharia
- "Eu não era capaz de entrar na morgue. Levavam para lá
carne humana misturada com terra. E debaixo da cama das raparigas também
havia carne"
- médica bacteriologista
- "Quem lhe vai mostrar um fio com orelhas humanas secas?
Troféus de guerra."
- Primeiro-tenente de artilharia.
- "Traziam feridos para a União e descarregavam-nos nas traseiras
do aeroporto para que povo não visse, não soubesse."
- Major comandante de fuzileiros de montanha
- "Não contei o entusiasmo dos tripulantes de helicóptero
quando lançam bombas. Vangloriavam-se: como é belo o
espetáculo do kichtak (aldeia afegã) em chamas."
- Sargento batedor
- "Tinha comigo um canivete que servia para abrir latas de conserva. Um
canivete vulgar. Ele já estava no chão
Puxei-lhe a barba e
cortei-lhe a garganta."
- Praça, batedor
Eis uma amostra do género de depoimentos reunidos por Svetlana
Alexievich em mais de duzentas páginas do seu livro.
O OUTRO AFEGANISTÃO
A vida permitiu-me como jornalista visitar repetidamente o Afeganistão,
de 1980 a 1989, durante a guerra.
Além de Kabul, estive no norte em Mazar-i-Charif e Balkh, em Jalalabad
no Sul, percorri a planície que finda nas montanhas em que se abre o
famoso desfiladeiro de Kyber, atravessei numa coluna militar o túnel de
Salang na chamada estrada da vida que liga a capital à fronteira do
Uzbequistão. Corri pelo país de avião, de carro e em
veículos militares soviéticos e afegãos.
Falei com centenas de afegãos, militares, intelectuais,
operários. No exército havia muitas mulheres combatentes, na
universidade as mulheres não escondiam o rosto.
Desse Afeganistão revolucionário não fala Svetlana. Mas
ele existiu, foi real e durante uma década o seu exército
resistiu vitoriosamente aos bandos armados das Sete Organizações
de Peshawar, armadas e financiadas pelos Estados Unidos e treinadas pela CIA.
Os mujahedines, qualificados de "combatentes da liberdade",
não tomaram uma só capital de província nesse
período. A Revolução não foi vencida pelas armas.
Acabou quando Gorbatchov, de acordo com Washington, pôs fim à
entrega de trigo e petróleo ao governo de Kabul. Sem pão e
combustível, a luta tornou-se impossível.
Visitei quarteis soviéticos nas montanhas. Conversei com oficiais e
soldados nos fortins da estrada de Salang. Nessas instalações
militares não identifiquei indícios de indisciplina,
violência, sujeira. Escrevi muito sobre esse Afeganistão, o real,
um pais e uma sociedade nas antípodas do Afeganistão
imaginário de Svetlana Alexievich.
Pelo Afeganistão passaram, aproximadamente 500 mil militares
soviéticos. O total de mortos rondou os 15 mil. A URSS tinha na
época 290 milhões de habitantes. A percentagem de mortos (0,005%)
foi portanto muitíssimo inferior à dos portugueses (0,08%) que
morreram nas três guerras coloniais (8300). Registo isso porque ajuda a
compreender o panorama esboçado por Svetlana numa obra de
falsificação da História.
As últimas 70 páginas dos Rapazes de Zinco
referência aos caixões metálicos em que chegavam os mortos
na guerra afegã são ocupadas por
documentação relacionada com as acções judiciais
por calúnia e difamação instauradas contra Svetlana
Alexievich por militares russos e familiares dos mortos soviéticos no
Afeganistão.
Ignoro se esses textos foram introduzidos a pedido da escritora ou por
iniciativa da editora.
Incluem parte do acórdão do Tribunal de Minsk, o extenso discurso
que Svetlana ali pronunciou, depoimentos na audiência que acusam a
escritora ou a defendem e cartas de personalidades e
organizações, a maioria semeadas de elogios à autora de
Os Rapazes de Zinco.
A sentença absolve Svetlana num dos processos, condena-a parcialmente
noutro. Não há referências a mais duas acções
judiciais também instauradas contra Svetlana.
21/Abril/2017
[1] Svetlana Alexievich, Rapazes de Zinco - A geração
soviética caída na guerra do Afeganistão, Editora
Elsinore, 343 p., Amadora, Março de 2017
Este artigo encontra-se em
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