por Miguel Urbano Rodrigues
A trajectória pessoal e política de Ortega, agora reeleito
presidente da Nicarágua, é um caso de estudo. De dirigente da
luta armada anti-somozista a possuidor de uma fortuna pessoal que supera a que
o próprio Somoza extorquiu ao seu povo, de lutador pelo socialismo a
patriarca de uma família de oligarcas, o sucesso de Ortega é o
insucesso da libertação do seu povo.
Daniel Ortega foi reeleito presidente da Nicarágua. É o terceiro
mandato consecutivo.
O principal partido da oposição apelou ao boicote, mas a
abstenção foi inferior à prevista pelas sondagens.
A vitória do candidato sandinista foi bem recebida pelo governo de
Obama. As relações económicas dos EUA com a
Nicarágua são aliás consideradas corretas pelo
Departamento de Estado.
Paradoxalmente, Ortega não abdicou do discurso de esquerda, cultivando
uma imagem anti-imperialista que lhe permitiu nos últimos anos manter
relações privilegiadas com Cuba, Venezuela, Bolívia,
Equador e alguns partidos comunistas.
Mas a fachada progressista do regime é hoje incompatível com a
realidade politica, social e económica do país.
Desde que perdeu as eleições presidenciais em 1990 Daniel Ortega
imprimiu à FSLN uma orientação que deslocou gradualmente
para a direita o partido revolucionário fundado por Carlos Fonseca
Amador, que destruiu a ditadura de Somoza numa luta épica de anos.
Fonseca, que foi o ideólogo da guerrilha, era um marxista criativo e
talentoso. Conseguiu o que parecia impossível: unificou as três
tendências da organização revolucionária, obtendo no
combate ao somozismo o apoio da Igreja, dos sindicatos, dos trabalhadores e de
intelectuais liberais.
A vitória da FSLN, dirigida por Daniel Ortega e um punhado de
comandantes com prestígio internacional, gerou uma grande
esperança na América Latina. Transcorrida mais de uma
década da morte do Che na Bolívia, os Sandinistas demonstraram
que em circunstâncias excecionais a luta armada podia enfrentar e
derrotar regimes apoiados pelo imperialismo.
Tive a oportunidade em 1983 de visitar a Nicarágua revolucionária
e conhecer alguns dos comandantes sandinistas nesses dias em que a FSLN
mobilizava a solidariedade das forças progressistas da América
Latina e da Europa.
No exercício do poder, o governo da FSLN não demonstrou porem a
mesma lucidez e firmeza da organização guerrilheira.
Alvo de uma ofensiva permanente do imperialismo americano, que financiou e
armou os mercenários contra-revolucionários, a Frente Sandinista
fracassou na tarefa de reconstruir a economia e perdeu gradualmente o apoio de
amplos setores da população.
Cedendo a pressões de Washington, Ortega contra a opinião
de Fidel Castro convocou eleições para a Presidência
en 1990. A campanha eleitoral da oposição foi generosamente
financiada pelos EUA. O desfecho foi a eleição da liberal Violeta
Chamorro e ficou a assinalar o fim inesperado da Revolução
Sandinista.
A CRISE DA FSLN
A Frente Sandinista mergulhou numa crise profunda logo após o seu
afastamento do governo.
Daniel Ortega candidatou-se à Presidência nas
eleições seguintes, tendo perdido novamente. Mas não foi
uma surpresa a sua eleição em 2006. O desfecho era esperado.
Alguns dos comandantes mais destacados que haviam participado da guerra contra
Somoza tinham rompido com Ortega por discordarem da guinada à direita
que o ex-presidente imprimira ao partido. Entre outros, Ernesto Cardenal, Tomas
Borge, Luis Carrion e Victor Tirado.
Ortega tinha optado por uma politica de alianças incompatível com
os princípios e a ideologia do sandinismo. Firmou nomeadamente um acordo
com o ex-presidente Arnoldo Aleman, condenado a 20 anos de prisão por
corrupção e branqueamento de capitais. Aleman fora, sublinhe-se,
um somozista esforçado.
ROSARIO MURILLO, "A BRUXA"
Foi sobretudo a mulher, Rosario Murillo, que teve um papel decisivo na
metamorfose do dirigente máximo da FSLN.
Professora, escritora, poeta, Rosario, que foi também guerrilheira,
é uma católica fervorosa.
Amiga pessoal desde a juventude do arcebispo de Manágua, defendeu sempre
a necessidade de boas relações com a Igreja. Teve o descaramento
de propor o seu nome para o Premio Nobel da Paz.
Fez o marido esquecer que Don Miguel Obando y Bravo fora admirador de Anastasio
Somoza e apoiara a contra-revolução.
Elevado a Cardeal, Obando cimentou uma íntima aliança com Daniel
Ortega quando este voltou à Presidência em 2007.
Rosario, reeleita vice-presidente, concentra hoje nas suas mãos um
enorme poder e acumulou em negócios ilícitos, uma fortuna
colossal.
Ocorreu o inimaginável. A família Ortega-Murillo concentra hoje
mais riqueza do que Somoza no auge da sua ditadura.
Quatro dos filhos de Daniel são multimilionários. Laureano
negociou com a China o projeto de construção do Canal que
ligará através da Nicarágua o Atlântico ao Pacifico,
obra faraónica que ameaça arruinar o Canal do Panamá. Juan
controla o audiovisual. Outros irmãos enriqueceram com a
distribuição de petróleo barato recebido da Venezuela
bolivariana. Um regabofe!
Rosario, conhecida pela alcunha de Bruxa, é a personalidade
que domina a família e o governo.
DE HERÓIS A GRANDES EMPRESÁRIOS
A crise da FSLN principiou com a deserção de Sergio Ramirez, que
foi vice-presidente da República no primeiro governo de Ortega.
Sergio, que estudou na Alemanha, era um social-democrata mascarado de
revolucionário. Escritor de talento, passou em tempo mínimo de
sandinista a inimigo da Revolução.
Seguiram-se outras ruturas com o passado, mais graves.
Humberto Ortega, irmão de Daniel, foi durante a luta armada o principal
estratego da guerrilha. Ministro da Defesa após a vitória,
reformou o exército e aderiu à esdruxula doutrina do
"centrismo". Recebeu inclusive a medalha do mérito militar dos
EUA. A sua adesão ao capitalismo não surpreendeu. Enriqueceu no
negócio das madeiras.
O ministro da Agricultura de Daniel, Jaime Weelock, é hoje um
próspero empresário. Bayardo Arce, outro dos comandantes da
insurreição, também enriqueceu rapidamente.
Daniel Ortega repete com frequência que a situação
económica do país melhorou acentuadamente. Mas não diz que
a Nicarágua recebeu durante os seus governos 4 800 milhões de
dólares de organizações financeiras internacionais
tuteladas pelos EUA.
Do FMI tem recebido elogios.
Daniel Ortega insiste em afirmar que pratica uma política de esquerda.
Não se abstém de criticar o imperialismo nos seus discursos
enquanto elogia Cuba e a Venezuela bolivariana. Mas Washington considera
inofensiva essa oratória.
Poder-se-ia inferir deste artigo que encaro com pessimismo o futuro do povo
Nicaraguense. Seria uma conclusão errada. A memória de Sandino,
de Carlos Fonseca e da gesta heroica da insurreição guerrilheira
que destruiu a ditadura de Somoza permanece viva no povo da Nicarágua.
Um dia ele retomará a luta rumo ao socialismo interrompida pela
traição de Daniel Ortega.
Estou consciente de que um governo do partido de extrema-direita seria pior do
que o de Ortega-Murillo. Mas indigna-me a hipocrisia dos media e dirigentes de
esquerda que insistem em caracterizar o governo de Ortega como
revolucionário.
Vila Nova de Gaia, Novembro de 2016
O original encontra-se em
www.odiario.info/daniel-ortega-traiu-a-revolucao-sandinista/
Este artigo encontra-se em
http://resistir.info/
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