Por trás da Cortina de Lata:   BRICS+ contra NATO/G7

– O ocidente está nostalgicamente preso a políticas de “contenção” ultrapassadas, desta vez contra a integração do Sul Global. Infelizmente para eles, o resto do mundo segue em frente, em conjunto.

Pepe Escobar [*]

Crédito da foto: 'The Cradle'.

Outrora existiu uma Cortina de Ferro, que dividiu o continente europeu. A expressão, cunhada pelo antigo primeiro-ministro britânico Winston Churchill, era uma referência aos esforços da então União Soviética para criar uma fronteira física e ideológica com o ocidente. Este último, por sua vez, perseguia uma política de contenção contra a difusão e influência do comunismo.

Salto rápido para a era contemporânea do tecno-feudalismo. Agora existe o que deveria ser chamado uma Cortina de Lata, fabricada pelo timorato e despistado ocidente coletivo, via G7 e NATO: desta vez, essencialmente, para conter a integração do Sul Global.

BRICS contra G7

O exemplo mais recente e significativo desta integração foi o surgimento do BRICS+ na cimeira online da semana passada abrigada por Pequim. Isto foi muito além do estabelecimento das características de um “novo G8”, para não mencionar uma alternativa ao G7.

Basta ver os interlocutores dos cinco BRICS históricos (Brasil, Rússia, Índia, China, África do Sul): descobrimos um microcosmo do Sul Global, abrangendo o Sudeste da Ásia, Ásia Central, Ásia Ocidental, África e América do Sul – colocando realmente o “Global” no Sul Global.

De modo revelador, as mensagens claras do presidente russo Vladimir Putin durante a cimeira de Pequim, em agudo contraste com a propaganda do G7, foram realmente dirigidas a todo o Sul Global:

Um sistema alternativo

Putin tambrém tratou diretamente de um dos temas chave que os BRICS têm discutido em profundidade desde a década de 2000 – a conceção e implementação de uma divisa de reserva internacional.

“O Russian Financial Messaging System está aberto para conexão com bancos dos países BRICS”.

“O sistema russo de pagamento MIR está a expandir a sua presença. Estamos a explorar a possibilidade de criar uma divisa de reserva internacional baseada no cabaz das divisas BRICS”, afirmou o líder russo.

Isto é inevitável após as histéricas sanções ocidentais pós Operação Z; a desdolarização total imposta sobre Moscovo; e o comércio crescente entre nações BRICS. Exemplo: em 2030, um quarto da procura de petróleo do planeta virá da China e da Índia, com a Rússia como o grande fornecedor.

O “RIC” na sigla BRICS simplesmente não pode arriscar-se a ser trancado do lado de fora de um sistema financeiro dominado pelo G7. Mesmo a Índia que andava numa corda esticada começa a apanhar a tendência.

Quem fala pela “comunidade internacional”?

Na etapa atual, os BRICS representam 40 por cento da população mundial, 25 por cento da economia global, 18 por cento do comércio mundial e contribuem com mais de 50 por cento do crescimento económico global. Todos os indicadores estão a subir.

Sergey Storchak, CEO banco russo VEG, enquadrou isto muito diplomaticamente: “Se as vozes de mercados emergentes não forem ouvidas nos próximos anos, precisamos pensar muito seriamente acerca da montagem de um sistema regional paralelo, ou talvez de um sistema global”.

Um “sistema regional paralelo” já está a ser discutido ativamente entre a Eurasia Economic Union (EAEU) e a China, coordenado pelo ministro da Integração e Macroeconomia Sergey Glazyev, o qual recentemente publicou um espantoso manifesto ampliando suas ideias acerca da soberania económica mundial.

Desenvolvendo o “mundo em desenvolvimento”

O que acontecer na frente financeira trans-eurasiana prosseguirá em paralelo com uma estratégia de desenvolvimento chinesa até agora pouco conhecida: a Global Development Initiative (GDI), anunciada no ano passado pelo presidente Xi Jinping na Assembleia-Geral da ONU.

O GDI pode ser encarado como um mecanismo de apoio à estratégia abrangente – que continua a ser a Belt and Road Initiative (BRI), consistente de corredores económicos interligando a Eurásia com a sua península ocidental, a Europa.

No Diálogo de Alto Nível sobre Desenvolvimento Global, parte da cimeira dos BRICS, o Sul Global soube um pouco mais acerca do GDI, uma organização estabelecida em 2015.

Em poucas palavras, o GDI destina-se a turbinar a cooperação internacional para o desenvolvimento pela suplementação financeira de uma plétora de organismos, como por exemplo o South-South Cooperation Fund, a International Development Association (IDA), o Asian Development Fund (ADF) e a Global Environment Facility (GEF).

As prioridades incluem “redução da pobreza, segurança alimentar, resposta ao COVID-19 e vacinas”, industrialização e infraestrutura digital. Posteriormente, no princípio de 2022, um grupo Friends of the GDI foi estabelecido e já atraiu mais de 50 países.

O BRI e o GDI deveriam estar a avançar em tandem, mesmo quando o próprio Xi deixou claro durante a cimeira dos BRICS que “alguns países estão politizando e marginalizando a agenda desenvolvimentista com o levantamento de muralhas e assestando sanções incapacitantes sobre outros”.

Assim, mais uma vez, desenvolvimento sustentável não é exatamente a xícara de chá do G7, muito menos a da NATO.

Sete contra o mundo

O principal objetivo confessado da cimeira G7 em Schloss Elmau nos Alpes Bávaros é “projetar unidade” – como nos defensores do ocidente coletivo (Japão incluído) unidos em “apoio” sustentável e indefinido ao irremediavelmente fracassado estado ucraniano.

Isso é parte da “luta contra o imperialismo de Putin”, mas nessa altura há também “o combate contra a fome e pobreza, crise de saúde e mudança climática”, como disse o chanceler alemão Scholz no Bundestag.

Na Bavária, Scholz pressionou por um Plano Marshall para a Ucrânia – um conceito ridículo considerando que Kiev e seus arredores podem muito bem serem reduzidos a um estado insignificante no fim de 2022. A noção de que o G7 possa trabalhar para “impedir uma fome catastrófica”, segundo Scholz, atinge um paroxismo de ridículo, pois o assomar da fome é uma consequência direta da histeria das sanções imposta pelo G7.

O facto de Berlim ter convidado a Índia, Indonésia, África do Sul e Senegal como acréscimos ao G7, serviu como uma nota cómica adicional.

A cortina de lata está erguida

Seria fútil esperar da espantosa coleção de mediocridades “unida” na Bavária, sob a liderança de facto da Fuehrer da Comissão Europeia (CE), Ursula von der Leyen, qualquer análise significativa acerca da ruptura das cadeias globais de oferta e da razões que forçaram Moscovo a reduzir fluxos de gás para a Europa. Ao invés disso, eles culpam Putin e Xi.

Bem vindo à Cortina de Lata – uma reinvenção no século XXI do Intermarium do Mar Báltico ao Mar Negro, organizado pelo Império das Mentiras, completado com a Ucrânia ocidental absorvida pela Polónia, pelos Três Anões Bálticos; pela Bulgária, Roménia, Chéquia e mesmo a Suécia e Finlândia aspirantes à NATO, todos os quais serão protegidos da “ameaça russa”.

Uma UE fora de controle

O papel da UE, dominando a Alemanha, França e Itália no interior do G7 é particularmente instrutivo, especialmente agora quando a Grã-Bretanha voltou ao status de estado-ilha inconsequente.

A cada ano são emitidas mais de 60 “diretivas” europeias. Elas devem ser imperativamente transpostas para o direito interno de cada estado-membro da UE. Na maior parte dos casos, não há debate de espécie nenhuma.

Além disso, há mais de 10 mil “decisões” (“rulings”), em que “peritos” na Comissão Europeia em Bruxelas emitem “recomendações” a todos os governos, diretamente do cânone neoliberal, respeitantes às suas despesas, seus rendimentos e a “reformas” (sobre cuidados de saúde, educação, pensões) que devem ser obedecidas.

Portanto, eleições em cada estado-membro da UE são absolutamente sem significado. Chefes de governos nacionais – Macron, Scholz, Draghi – são meros executantes. Nenhum debate democrático é permitido: a “democracia”, tal como os ditos “valores da UE”, não é mais do que uma cortina de fumo.

O governo real é exercido por um punhado de apparatchiks escolhido pelo compromisso entre poderes executivos, a atuarem de maneira extremamente opaca.

A CE está totalmente fora de qualquer espécie de controle. Só assim foi possível que uma espantosa mediocridade como Ursula von der Leyen – anteriormente a pior ministra da Defesa da Alemanha moderna – fosse catapultada para cima a fim de se tornar a atual Fuhrer da CE, ditando sua política externa, energética e até económica.

O que representam eles?

Do ponto de vista do ocidente, a Cortina de Lata, com todos os seus sinistros tons da Guerra Fria 2.0, é apenas um ponto de partida antes do prato principal: a confrontação hardcore na Ásia-Pacífico – renomeado "Indo-Pacífico" – uma cópia a papel químico da fraude ucraniana concebida para conter o BRI e o GDI da China.

Como contra-golpe, é esclarecedor observar como o Ministério dos Negócios Estrangeiros chinês agora destaca em pormenor o contraste entre os BRICS – e BRICS+ – e o conluio imperial AUKUS/Quad/IPEF.

Os BRICS defendem o multilateralismo de facto; o foco na cooperação de desenvolvimento global para a recuperação económica e a melhoria da governação global.

A fraude cozinhada pelos EUA, por outro lado, representa a mentalidade da Guerra Fria; a exploração de países em desenvolvimento; e uma política de América em primeiro lugar que consagra a “ordem internacional baseada em regras” monopolistas.

Seria enganoso esperar que aqueles luminares reunidos na Bavária entendessem, por exemplo, o absurdo de impor limites de preços às exportações russas de petróleo e gás. Se isso realmente acontecer, Moscovo não terá problemas em cortar completamente a oferta de energia para o G7. E se outras nações forem excluídas, o preço do petróleo e gás que importam aumentaria drasticamente.

Os BRICS abrem o caminho em frente

Assim, não é de admirar que o futuro seja sinistro. Numa entrevista impressionante à TV estatal da Bielorússia, o ministro dos Negócios Estrangeiros russo Sergei Lavrov resumiu como “o ocidente teme a competição honesta”.

Portanto, o ápice da cultura do cancelamento e da “supressão de tudo o que contradiga de alguma forma a visão neoliberal e a disposição do mundo”. Lavrov também resumiu o roteiro pela frente, em benefício de todo o Sul Global:

“Não precisamos de um novo G8. Já temos estruturas... primariamente na Eurásia. A EAEU está a promover ativamente processos de integração com a RPC, alinhando a Belt and Road Initiative da China com planos de integração eurasianos. Membros da Associação de Nações do Sudeste Asiático estão a prestar atenção a estes planos. Um certo número deles está a assinar acordos de zonas de comércio livre com a EAEU. A Organização de Cooperação de Shangai também faz parte destes processos... Há mais uma estrutura para além das fronteiras geográficas da Eurásia”.

“E há os BRICS. Está associação está a confiar cada vez menos no estilo ocidental de fazer negócios e nas regras ocidentais para divisas, finanças e instituições comerciais internacionais. Eles preferem métodos mais equitativos que não fazem quaisquer processos dependerem do papel dominante do dólar ou de alguma outra divisa. O G20 representa plenamente os BRICS e mais cinco países que partilham as posições do BRICS, ao passo que o G7 e os seus apoiantes estão do outro lado das barricadas”.

“Isto é um equilíbrio sério. O G20 pode deteriorar se o ocidente usá-lo para espalhar a confrontação. As estruturas que mencionei (SCO, BRICS, ASEAN, EAEU e CIS) repousam no consenso, respeito mútuo e num equilíbrio de interesses, ao invés de uma exigência de aceitação de realidades do mundo unipolar”.

Cortina de Lata? É antes Cortina Rasgada.

28/Junho/2022

[*] Analista político.

O original encontra-se em thecradle.co/Article/Columns/12393

Este artigo encontra-se em resistir.info

04/Jul/22