Uma visão a partir de dentro:
A tragédia do Estado Profundo dos EUA
Henry Kissinger, 97 anos, Henry o K., tanto pode ser um pensador
estratégico ao estilo do oráculo de Delfos para aqueles que lhe
são próximos como um criminoso de guerra certificado para aqueles
que não lhe são próximos.
Ele parece agora ter dado um descanso à sua especialidade habitual do
Divide e Impera
(Divide and Rule)
ao aconselhar o pequeno grupo por trás do Presidente dos EUA,
também conhecido como
Crash Test Dummy
[1]
a fim de emitir algumas pérolas de sapiência quanto
à realpolitik.
Num recente
fórum no Arizona
, referindo-se ao inflamado conflito sino-americano, Henry o K. disse:
"É o maior problema da América; é o maior problema do
mundo. Porque se não pudermos resolver isso, então o risco
é que por todo o mundo se desenvolva uma espécie de Guerra Fria
entre a China e os Estados Unidos".
Em termos de realpolitik, esta "espécie de Guerra Fria"
já está em curso; por toda a Beltway
[2]
a China é unanimemente encarada como a primeira ameaça à
segurança nacional dos EUA.
Kissinger acrescentou que a política dos EUA em relação
à China deve ser uma mistura de "princípios" americanos
que exijam o respeito e o diálogo da China para encontrar áreas
de cooperação: "Não estou a dizer que a diplomacia
conduzirá sempre a resultados benéficos... Esta é a tarefa
complexa que temos... Ninguém o conseguiu fazer completamente".
Henry o K. deve realmente ter perdido o rumo diplomático.
Aquilo em que o ministro dos Negócios Estrangeiros chinês Wang Yi
e o ministro dos Negócios Estrangeiros russo Sergey Lavrov estão
agora envolvidos, a tempo inteiro, é em demonstrar sobretudo ao
Sul Global como a "ordem internacional baseada em regras"
imposta pelos EUA não tem absolutamente nada a ver com o direito
internacional e o respeito pela soberania nacional.
A princípio arquivei fora da vista estas platitudes de Henry o K. fora
de vista. Mas depois alguém que costumava manter uma
posição estelar no topo do Estado Profundo dos EUA mostrou que
tinha estado a prestar muita atenção.
Esta personalidade vamos chamá-la de Sr. S. tem sido uma
das minhas fontes inestimáveis e de confiança desde o
início dos anos 2000. A confiança mútua foi sempre
fundamental. Perguntei-lhe se podia publicar passagens seleccionadas da sua
análise, sem dizer nomes. Foi-me dado consentimento com pesar.
Por isso, apertem os cintos de segurança.
A dançar com o Sr. S.
O Sr. S., de uma forma bastante intrigante, parece exprimir a opinião
colectiva de um certo número de pessoas extremamente qualificadas. Desde
o início, ele aponta como as observações de Henry o K.
explicam o triângulo de hoje Rússia-China-Irão.
A primeira observação que fazemos é que não foi
Kissinger quem criou a política para Nixon, mas sim o Estado Profundo.
Kissinger era apenas um garoto mensageiro. Na situação de 1972, o
Estado Profundo queria sair do Vietname, política que fora posta em
prática como contenção da China comunista e da
Rússia. Estávamos lá com base na teoria do dominó.
Ele prossegue:
O Estado Profundo queria alcançar um certo número de objectivos
ao abordar o Presidente Mao, o qual era antagonizado pela Rússia. Em
1972 queria aliar-se com a China contra a Rússia. Aquilo tornava o
Vietname sem sentido, pois com a China a tornar-se partícipe da
contenção da Rússia o Vietname já não
significaria nada. Queríamos contrabalançar a China contra a
Rússia. Agora, a China não era uma grande potência em 1972,
mas podia drenar a Rússia, forçando-a a colocar 400 mil soldados
na sua fronteira. E a nossa política do Estado Profundo funcionava.
Nós, no Estado Profundo, havíamos pensado bem nisso, não
Kissinger. Tropas de 400 mil soldados na fronteira chinesa esgotavam o seu
orçamento, como mais tarde com mais de 100 mil soldados no
Afeganistão, e o Pacto de Varsóvia tinha outros 600 mil soldados.
E isso nos leva ao Afeganistão:
Em 1979 o Estado Profundo quiz que a Rússia tivesse um Vietname no
Afeganistão. Estive entre aqueles que se manifestaram contra, pois isto
desnecessariamente usaria o povo afegão como carne de canhão e
isso era injusto. Fui ultrapassado. Aqui Brzezinski estava a brincar de
Kissinger; mais um super-valorizado que apenas transportava mensagens.
O Estado Profundo também decidiu esmagar o preço do
petróleo, pois isso enfraqueceria a Rússia economicamente. E isso
funcionou em 1985, levando o preço para oito dólares por barril,
o que comeu mais da metade do orçamento russo. Então, basicamente
demos permissão a Saddam Hussein para invadir o Kuwait como um
estratagema para enviar nosso exército avançado a fim de
derrubá-lo e demonstrar ao mundo a nossa superioridade em armamento, o
que desmoralizou muito os russos e colocou o medo de Deus no petróleo
islâmico. Depois disso criámos a ficção da Guerra
das Estrelas. A Rússia, para nossa surpresa, perdeu o sangue frio e
entrou em colapso.
O Sr. S. define tudo isto como "maravilhoso" na sua opinião,
pois "o comunismo saiu e a cristandade entrou":
Queríamos então acolher a Rússia na comunidade das
nações cristãs, mas o Estado Profundo queria
desmembrá-las. Isso foi estúpido, pois eles iriam equilibrar-se
contra a China, pelo menos do seu ponto de vista
Mackinder
. Foi ingénuo da minha parte esperar um regresso da cristandade, pois o
Ocidente estava a avançar rapidamente rumo a uma total
desintegração moral.
Enquanto isso, a nossa aliada China continua a crescer, uma vez que não
havíamos terminado com o desmembramento da Rússia e os
conselheiros que enviámos para a Rússia destruíram toda a
economia na década de 1990 contra as minhas objecções. Os
78 dias de bombardeamento de Belgrado finalmente acordaram a Rússia e
eles iniciaram uma remilitarização maciça, pois era
óbvio que a intenção final era bombardear Moscovo. Assim,
os mísseis defensivos tornaram-se essenciais. Assim, os S-300, S-400,
S-500 e em breve os S-600.
O Estado Profundo fora advertido por mim nas nossas reuniões sobre como
o bombardeamento de Belgrado em 1999 faria a Rússia remilitarizar-se e
eu perdi a discussão. Belgrado foi bombardeada durante 78 dias, a
contrapor ao bombardeamento vingativo de Hitler durante dois dias. E a China
continua a crescer.
Porque é que o equilíbrio de poder não funciona
E isso leva-nos a uma nova era que começou na prática com
o anúncio chinês das Novas Estradas da Seda em 2013 e com Maidan
em Kiev em 2014:
A China desperta para tudo isto, na medida em que começa a aperceber-se
de que foram utilizados e de que a frota dos EUA controla as suas rotas
comerciais. Assim, em 2014 decide aproximar-se da Rússia, precisamente
na altura em que testemunharam o derrube da Ucrânia com o Maidan. Este
derrube foi organizado pelo Estado Profundo quando começaram a
compreender que haviam perdido a corrida às armas e nem sequer sabiam o
que estava a acontecer.
O Estado Profundo queria atrair a Rússia para um novo Vietname na
Ucrânia a fim de esgotá-la e tornar a fazer cair o preço do
petróleo, o que fizeram. Pequim estudou isto e viu a luz. Se a
Rússia for derrubada, o Ocidente controlará todos os seus
recursos naturais, dos quais precisam à medida que crescem para uma
economia gigantesca maior do que a dos EUA. E Pequim começa a revelar
uma relação calorosa com Moscovo, procurando obter recursos
naturais terrestres como petróleo e gás natural da Rússia
a fim de evitar, tanto quanto possível, os mares para o abastecimento de
recursos naturais. Ao mesmo tempo, Pequim acelera maciçamente a sua
construção de submarinos portadores de mísseis capazes de
destruir as frotas dos EUA.
Então, onde é que Kissinger no Arizona se encaixa nisto?
Neste momento, Kissinger reflecte a profunda angústia do Estado Profundo
quanto ao relacionamento russo-chinês e quer esta divisão como se
corresse risco de vida. Isto é abordado de forma interessante por
Kissinger. Ele não quer dizer a verdade acerca do equilíbrio das
realidades de poder. Ele descreve-as como "os nossos valores", quando
os EUA não têm valores que restem além da anarquia,
pilhagem e incêndio de centenas de cidades. Biden tem esperança de
comprar todas estas massas privadas de direitos mediante a impressão
selvagem de dinheiro.
Assim, estamos de volta a Kissinger chocado com a nova aliança
russo-chinesa. Eles têm de ser separados.
Agora, não concordo com os intrigantes do equilíbrio de
forças quando dizem que a moralidade ou os valores nobres deveriam reger
as relações internacionais, não o poder. Os EUA têm
seguido sonhos de equilíbrio de forças desde 1900 e agora
enfrentam a ruína económica. Estas ideias não funcionam.
Não há razão para os EUA não poderem ser amigos da
Rússia e da China e as diferenças podem ser resolvidas. Mas
não se pode acertar no primeiro passo quando considerações
de equilíbrio de forças dominam tudo. Esta é a
tragédia do nosso tempo.
12/Maio/2021
[1] Crash Test Dummy: Bonecos articulados usados em ensaios de desastre
automobilístico
[2] Beltway: auto-estrada que circunda Washington.
[*]
Jornalista. Muitos dos seus livros estão em
Book Depository.
O original encontra-se em
www.strategic-culture.org/news/2021/05/12/insider-view-tragedy-of-us-deep-state/
Este artigo encontra-se em
https://resistir.info/
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