O famoso romance
Birdsong
conta uma história da árdua guerra de trincheiras de 1914-18. As
trincheiras enlameadas e encharcadas de chuva estavam separadas
das linhas alemãs, pelo inferno desolado da "terra de
ninguém" um deserto plano indescritível de lama, lama
e mais lama, cheio de pedaços do que antes eram homens, cujos restos
mortais ninguém ousou recuperar, e a surreal arte sinistra do arame
farpado enrolado em todas as formas e ângulos imagináveis.
Por toda a paisagem estilo Hieronymus Bosch, os alemães lançavam
onda após onda de intensos projécteis de artilharia de alto poder
explosivo enviando penachos de terra para o céu. No entanto, em
contraponto a este pano de fundo escuro e demoníaco,
Birdsong
desdobra uma história de luta humana, quase morte e profunda
compaixão pelos demónios feridos. Mas, no fundo, é uma
história sobre túneis aqueles que os cavaram; aqueles
neles enterrados, como eles caíram; e aqueles que deles surgiram
como vermes a erguerem-se para surpreender e matar o inimigo.
Os túneis foram a arma secreta da 1ª Guerra Mundial. Eles foram a
resposta ao bombardeio aéreo impiedoso desencadeado pela massa
esmagadora de uma máquina militar superior. Os batalhões entravam
nas trincheiras com 800 homens e, após a barragem, emergiam com apenas
100-200 homens vivos. Mesmo assim, eles continuaram voluntários a
cavarem túneis na lama para surgirem, como fantasmas, sobre um inimigo
adormecido.
A doutrina ocidental do poder do fogo avassalador nasceu lá. Na guerra
seguinte (Segunda Guerra Mundial), tudo se resumiu ao bombardeio
(indiscriminado) de populações civis (na Alemanha e no
Japão) para quebrar psicologicamente a sua vontade de
lutar. Essa abordagem aprofundou-se. Tornou-se o principal instrumento da caixa
de ferramentas ocidental. Churchill usou poder de fogo aerotransportado no
Médio Oriente no período entre guerras, e a superioridade
aérea absoluta continua a ser o cerne da actual estratégia dos
Estados Unidos e da NATO.
Qual é o ponto aqui? É que toda este conjunto de
estratégias militares enraizadas no bombardeio aéreo
maciço que remonta à década de 1920 e
avançou até hoje em Gaza, está a expirar. Tornou-se
tão obsoleto (pelo menos no Médio Oriente), quanto a guerra de
trincheiras no início de 1918.
Túneis (agora muito mais refinados), ganharam uma vida renovada em
resposta ao bombardeio aéreo maciço sobre terreno civil como uma
ferramenta psicológica primária de guerra. Eles marcam o fim de
uma estratégia. Enxames de mísseis e grupos de drones
inteligentes são hoje
os pontos de inflexão
: a 'nova' guerra tão revolucionária quanto o advento do
arco longo
(nos anos 1300). Eles tornaram-se, por assim dizer, de certo modo, a
força aérea do Hamas, do Hezbollah, dos Houthi e do Irão.
É claro que a barragem de foguetes do Hamas apanhou Israel (e
Washington) de surpresa. Podem não ter entendido plenamente, mas o
conflito israelense-palestino nunca mais será o mesmo. Por quê?
Para ser muito claro, o que aconteceu é, em primeiro lugar, que assim
como as tropas da Primeira Guerra Mundial encontraram uma resposta parcial aos
bombardeios contínuos às suas posições pela
artilharia alemã por meio dos seus túneis rasos e propensos a
desabamentos, da mesma forma o Irão, o Hezbollah, a resistência
iraquiana e os Houthis actualizaram a estratégia para profundas (30
metros) posições fortificadas subterrâneas
efectivamente para anular o Poder Aéreo de Israel e, na verdade,
para voltar o poder aéreo israelense sobre si próprio,
danificando a imagem de Israel, enquanto lustra o dos palestinos.
Em segundo lugar, a carnificina de Israel em Gaza, matando 230 palestinos,
incluindo 65 crianças, certamente voltou o mundo exterior contra si. E,
pela primeira vez, há um
debate sério
nos Estados Unidos acerca do apoio ao sistema obstinado de controle de Israel
sobre os territórios palestinos e a sua anexação
rastejante de terras palestinas não inibida durante anos por um
Estados Unidos aquiescente.
Mas por que desta vez seria diferente dos episódios anteriores? O que
é que mudou? Numa palavra: o despertar da revolução
uma
"nova normal democrática"
. Com a América e partes da Europa agora a verem suas próprias
histórias de colonização, limpeza étnica e
colonialismo como aberrações tóxicas que deveriam ser
redimidas, hoje tornou-se possível dizer coisas nos EUA sobre Israel
há muito pensadas
, mas mantidas até então
in pectore
; que antes teria feito o céu e a terra desabarem sobre a carreira de
quem as pronunciasse. Já não é mais assim.
Em terceiro lugar, um número crescente de políticos que em Oslo
apostaram suas carreiras na construção da solução
de dois Estados, finalmente começam a reconhecer que os factos no
terreno
fazem de Oslo uma fantasia
. "A estrutura de Oslo acabou", disse Marwan Muasher, um ex-diplomata
e político jordano que há duas décadas desempenhou um
papel importante na Iniciativa Árabe de Paz: "Defendo dois estados
por formação. Deparo-me com um estado pela realidade".
Os pilares chave de Oslo têm sido vistos como quimeras: Que a demografia
por si só obrigasse Israel a implementar um resultado de dois estados;
que a cooperação de segurança palestina amenizadde
hesitações israelenses no endossar a um estado palestino; e em
terceiro lugar que um estado palestino pusesse fim à
ocupação. Todas essas suposições-chave
demonstraram-se falsas.
Contudo, os EUA e os europeus não têm ideia do que fazer acerca da
situação, para além de pedir um retorno à
'normalidade' uma normalidade que permita aos israelenses 'voltar
à praia' e aos palestinos 'à sua jaula', como um comentarista,
causticamente observou
quanto ao significado de 'normal'.
Possivelmente, o atordoamento ocidental sobre o que fazer explica de alguma
forma sua surpresa com os eventos de Gaza. Enquanto o Ocidente buscava sua
solução liberal e laica, o Irão, o Hamas e o Hezbollah
silenciosamente estavam a forjar uma resposta bem diferente uma que
mudaria todo o paradigma. Na prática, a guerra do Líbano de 2006
foi um 'ensaio geral'. Ele marcou o 'fim do começo' deste novo modo de
drones em enxame e guerra de mísseis; e esta última guerra de
Gaza (junto com os mísseis e drones mais sofisticados e inteligentes que
agora cercam Israel) representa seu amadurecimento. É um movimento
concertado e estreitamente coordenado. O Hamas, entretanto, preferiu fazer da
sua estreia em Gaza um movimento totalmente palestino.
Em 2006, Israel também foi apanhado de surpresa. Amos Harel
recorda
que todos os presentes na sala quando "Dan Halutz, o orgulhoso chefe de
gabinete das IDF no início da Segunda Guerra do Líbano, nunca
esquecerão do seu briefing à imprensa na véspera da
sexta-feira, 14 de julho de 2006. Halutz enumerou a lista dos feitos das IDF,
encabeçado por um golpe maciço no sistema de mísseis de
médio alcance do Hezbollah (cujos pormenores eram escassos na
época). Ele estava a tentar convencer os repórteres de que o
exército havia reagido adequadamente ao sequestro de dois soldados
reservistas dois dias antes. Subitamente, foi-lhe trazida uma nota com a
notícia do [míssil de cruzeiro do Hezbollah] que atingiu o navio
de mísseis da marinha israelense
INS Hanit
frente às costas de Beirute. Numa guerra, as surpresas não
vêm apenas de uma direcção".
Na verdade, em 2006 as IDF estavam a bombardear uma simulação. O
Hezbollah havia construído esses túneis para enganar as IDF. Eles
deixaram escapar informações falsas que Israel absorveu. Os
verdadeiros silos de mísseis estavam seguros e intactos e os
disparos de mísseis continuaram por quase um mês. Será
provável que o Hezbollah tenha transmitido tal conselho
estratégico ao Hamas? Claro que sim.
Hoje, é uma história semelhante. Israel está
apregoando vitória
(enraizada na sua destruição dos túneis do Hamas), mas a
enfrentar o fracasso como em 2006. Relatórios confiáveis
sugerem que a estratégia das IDF dependia do grau de confiança
com que haviam mapeado os túneis de Gaza. De modo que quando o
exército deliberadamente lançou o boato de uma invasão
terrestre iminente de Gaza, eles calcularam que a liderança do Hamas
imediatamente tomaria os túneis, os quais seriam bombardados pela
Força Aérea de Israel, enterrando o movimento vivo. Só que
isso não aconteceu a liderança do Hamas não estava
naqueles
túneis e os mísseis não cessaram.
Aluf Benn
resume
, no
Haaretz
(onde é editor-chefe):
"Você pode alimentar o público com noticiários que
falam arrogantemente sobre "os golpes dolorosos que desferimos no
Hamas" e mostrar o piloto que matou um comandante da Jihad Islâmica
enquanto esquece que este era um caça a jacto avançado com
armamentos de precisão a atacar um edifício de apartamentos
como uma versão moderna de Judá, o Macabeu ou Meir
Har-Zion. Mas
todas essas camadas de maquilhagem não podem esconder a verdade: Os
militares não têm ideia de como paralisar as forças do
Hamas e desequilibrá-lo. Destruir os seus túneis com bombas
poderosas revelou as capacidades estratégicas de Israel sem causar
qualquer dano substancial às capacidades de combate do inimigo.
Supondo que 100, 200 ou mesmo 300 combatentes foram mortos, isso deitaria
abaixo o domínio do Hamas? Ou seus sistemas de comando e controle? Ou
sua capacidade de disparar foguetes contra Israel? O número cada vez
menor de alvos de qualidade é evidente no número crescente de
vítimas civis à medida que a campanha continuava... ".
Bem, houve um israelense divergente que não esteve preso à
mentalidade prevalecente: "O crítico mais astuto da chefia do
exército nos últimos anos, advertiu que a próxima guerra
seria travada na frente interna [e] que Israel não tinha resposta
para ataques envolvendo milhares de mísseis os quais as suas
forças terrestres são incapazes de combater". Esta foi a
advertência
do major-general Yitzhak Brik, mas como tantas vezes acontece com os
contestatários, ele foi condenado ao ostracismo e ignorado.
A longa tradição da estratégia de bombardear terrenos
civis (justificada dizendo-se que havia terroristas escondidos ali), pode estar
a terminar o seu prazo de validade, à medida que os Direitos Humanos se
tornam a pedra de toque da política externa (bem como do comando da
política interna dos EUA).
Isso tem implicações para os EUA e para a NATO, tanto quanto para
Israel. Seria o bombardeamento de Belgrado pela NATO, com total impunidade,
durante 78 dias factível novamente no clima de 'valores' de hoje?
Um cessar-fogo foi 'acordado' (embora, como ocorre frequentemente com a
'mediação' egípcia, as partes já contestem o que
foi supostamente acordado entre elas). Um cessar-fogo pode assinalar uma pausa
na batalha de Gaza, mas de modo algum o fim de uma guerra.
A última razão pela qual o conflito israelense-palestino
não será o mesmo outra vez é que a erupção
colectiva por toda a Palestina histórica unificou e mobilizou o povo
palestino sob a liderança
militar do
Hamas. Esta última é percebida como a única força
capaz de proteger a
mesquita de Al-Aqsa
ameaçada por tentativas de colonos de tomá-la; ou
queimá-la uma ameaça real com o potencial de inflamar os
muçulmanos por todo o mundo.
Enquanto Gaza se acalma, por agora, a próxima fase desta guerra
provavelmente terá como centro Al-Aqsa, Jerusalém e as
comunidades palestinas de 1948 dentro de Israel. Os israelenses enfrentam uma
nova realidade: o Hamas não está "lá", mas
está por toda parte em torno deles; e além disso eles
também sabem que a possibilidade da (provável) futura
coligação de direita em Israel concordar com este novo paradigma
é zero.
24/Maio/2021
[*]
Ex-diplomata britânico, fundador e director do Conflicts Forum, com sede
em Beirute.
O original encontra-se em
www.strategic-culture.org/...
Este artigo encontra-se em
https://resistir.info/
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