As leoninas condições de acesso às vacinas da Pfizer
O sigilo imposto pelas farmacêuticas para a venda de imunizantes
contra o
Covid-19 estende-se pelo planeta, com a cumplicidade ou
subordinação dos Estados
por Leonardo Cardozo e Francisco Claramunt
[*]
A população mundial desconhece quanto pagará pelas
vacinas, como são definidos os preços e quando elas
chegarão. Várias multinacionais, com a gigante Pfizer à
frente, impõem cláusulas que as eximem de responsabilidade pelos
efeitos adversos, blindam-nas contra os sistemas judiciários nacionais e
isentam-nas de cumprir cabalmente os prazos de entrega pactuados. As empresas
competem por mercados e preços; os Estados, por posições
na corrida da imunização.
No último sábado (23/01), o presidente do Uruguai, Luis Lacalle
Pou, afirmou que, "respaldado pela lei", seu governo teria assinado
dois contratos, dos quais se desconhecem detalhes, para abastecer-se de vacinas
com a Pfizer-Biontech e com a firma chinesa Sinovac. Indagado sobre o que
estabelecem esses acordos em matéria de responsabilidade face aos
eventuais efeitos adversos das vacinas, respondeu que ambos documentos
"têm cláusulas relacionadas à velocidade com que se
aprovaram" esses imunizantes. O Uruguai tinha que escolher disse
entre "ter ou não as vacinas" e, nessa escolha,
"assumimos algumas responsabilidades". Ante o sigilo que cobre o
assunto, o público só conta, no momento, com os antecedentes
internacionais das últimas semanas para esboçar uma ideia de em
que consistem as responsabilidades assumidas em seu nome.
Indenizações, arbitragem e garantias
Comecemos pela vizinhança. A Argentina participou, com mais de 6 mil
voluntários, dos testes da Pfizer-Biontech, disponibilizando seu
Hospital Militar e criando uma lei sob medida das exigências do
laboratório. Mas uma linha introduzida pelos parlamentares travou a
subsequente negociação para ter acesso às vacinas. A lei
faculta ao Poder Executivo incluir nos contratos com os fornecedores de
imunizantes "cláusulas que estabeleçam
condições de imunidade patrimonial (para as empresas) no tocante
a indenizações e outras demandas pecuniárias (...), salvo
aquelas originadas de manobras fraudulentas, condutas maliciosas ou
negligência por parte dos referidos agentes". Segundo o jornal
La Nación,
a Pfizer pediu ao governo argentino que suprimisse tal exceção.
Diante da negativa oficial, as negociações ficaram congeladas.
Em declarações à rádio AM 750, o ministro argentino
da Saúde, Ginés González García, disse não
entender "por que fazem tantas exigências": "Parece
até que não acreditam na vacina". García confirmou a
informação de que a Pfizer não aceitou a lei feita pelo
Congresso especialmente para a ocasião e acrescentou: "Na verdade,
é muito difícil para nós fazer outra lei, sem nem falar no
que seria mais digno para um país". Pouco depois, o médico
sanitarista Jorge Rachid, assessor do governador da província de Buenos
Aires, disse à rádio rosarina LT8 que "a empresa Pfizer
pediu uma lei que lhe desse em garantia bens inalienáveis do Estado,
como o petróleo e as geleiras", classificando tais
condições de "inaceitáveis" (
Perfil,
28.12.20).
Esse extremo, escandaloso sem margem a dúvidas, condiz com a
declaração de 24 de janeiro, reproduzido pela estatal
Agência Brasil,
em que o Ministério da Saúde brasileiro explica a razão
do fracasso de suas conversas com a Pfizer. Também no Peru, terminaram
congeladas as negociações com essa transnacional. O governo
já havia aceitado submeter à arbitragem internacional
possíveis controvérsias com a empresa. "A
autorização estabelecida neste artigo compreende a
renúncia à imunidade estatal de jurisdição",
diz expressamente o decreto promulgado pelo Executivo peruano em 2 de dezembro.
Mas isto não foi suficiente para a Pfizer, que queria uma
cláusula estipulando que, caso o Peru perdesse uma controvérsia,
fosse autorizado ao laboratório executar indenizações via
ativos peruanos no exterior, como bens móveis do serviço
diplomático, veículos militares ou objetos emprestados a museus,
segundo fontes dos ministérios da Saúde e Relações
Exteriores (jornal
El Comercio,
08.01.21).
Na Europa, a recente inadimplência da Pfizer-Biontech e da
Astrazeneca-Oxford na distribuição das doses prometidas
tensionaram a relação entre os governos e os laboratórios.
A Itália anunciou, no fim de semana, que avalia processar a Pfizer, e as
autoridades desse país revelaram alguns detalhes do secretíssimo
acordo da União Europeia com a companhia. Aparece, outra vez, o lavar de
mãos quanto a eventuais efeitos adversos, bem como a estratégia
legal da empresa para não fazer as entregas contratadas: embora a
distribuição de doses seja semanal, os Estados da UE não
poderão se queixar se as quantidades enviadas a cada semana estiverem
abaixo das contratadas. Só se poderão ajuizar demandas baseadas
no que a Pfizer houver entregado ao fim do trimestre (31 de março). Se,
nessa data, a empresa houver entregado menos doses que as encomendadas,
haverá várias opções: a Pfizer poderá
devolver o dinheiro correspondente às doses faltantes; as partes
poderão rescindir o contrato; e, só como última
opção, as autoridades europeias poderão pedir que se
sancione a empresa. Essas isenções quanto à entrega das
encomendas, detalhadas na última semana pelo jornal italiano
La Reppublica,
são de um tipo similar embora mais civilizado ao que
consta da denúncia pública contra o laboratório feita pelo
governo do Brasil e à cópia do contrato que a Pfizer teria
oferecido à República da Albânia, de acordo com um recente
vazamento publicado na imprensa daquele país.
O preço da dose
Também se buscam manter no mais estrito sigilo os preços das
doses da Pfizer e de outros laboratórios. A UE, por exemplo, tem
reservados pelo menos 2 mil milhões de euros do Instrumento de
Assistência Urgente para a pandemia, e seus países-membros
aprovaram uma contribuição adicional de 750 milhões para a
compra de vacinas, mas a população não sabe como as
autoridades estão gastando esse dinheiro.
Em meados de dezembro, a secretária de Orçamento e
Proteção aos Consumidores da Bélgica, Eva De Bleeker,
divulgou no Twitter os preços das vacinas dos seis contratos assinados
pela UE. Apagou-os meia hora depois e não ficou claro se seu erro foi ou
não intencional, mas a informação já havia se
espalhado. Oficialmente, a Comissão Europeia se negou a confirmar esses
preços, cuja divulgação enfureceu a Pfizer. "Esses
preços estão cobertos por uma cláusula de
confidencialidade no contrato com a Comissão Europeia", recordou
uma porta-voz da empresa. Conforme o tuíte de De Bleeker duas das
vacinas que já circulam na Europa são as mais caras (17,7
dólares a da Moderna e 14,5 a da Pfizer-Biontech, embora fontes da
Reuters
tenham corrigido para cima tais preços e indicado que o preço
pago à Pfizer era de 18,3 dólares por dose).
Enquanto isso, Israel paga 62 dólares por dose à mesma companhia.
A informação se deve, nesse caso, à
indiscrição de Yaron Niv, uma autoridade do Ministério da
Saúde desse país, que a revelou numa entrevista à
rádio pública Kan em dezembro, sem maiores detalhes. Talvez nisso
e no acordo complementar pelo qual Israel fornece à Pfizer as
estatísticas detalhadas de sua campanha de vacinação
inclusive informações médicas dos vacinados,
segundo o documento oficial a que Brecha teve acesso resida a chave do
celebrado sucesso israelense em matéria de vacinação
contra o Covid-19 (sucesso do qual estão excluídos os palestinos
submetidos à ocupação militar). Por sua vez, os Estados
Unidos pagam em torno de 19,50 dólares por cada dose da Pfizer, como
informado em dezembro.
Essa imprevisibilidade no custo do imunizante foi explicada em alguns meios de
comunicação internacionais como decorrente da
situação financeira de cada país. Assim, os
laboratórios venderiam doses mais baratas aos Estados mais pobres e mais
caras aos mais ricos o que, por sua vez, explicaria a necessidade do
segredo. Na semana passada, no entanto, se soube que a África do Sul, um
dos países africanos mais afetados pela pandemia, pagou quase 2,5 vezes
mais que a Europa pela vacina Oxford-Astrazeneca, cuja venda foi inicialmente
anunciada como a preço de custo. "O preço que nos foi
comunicado é de 5,25 dólares", declararam à
AFP
fontes do Ministério da Saúde sul-africano.
Na esteira das tensões desta última semana entre a
Comissão Europeia e a Pfizer e a Astrazeneca pelo descumprimento dos
prazos de entrega das doses prometidas, a comissária de Saúde
Stella Kyriakides anunciou, nesta quinta, que "no futuro, todas as
companhias que produzirem vacinas contra o Covid-19 na UE serão
obrigadas a apresentar uma notificação prévia quando
desejarem exportar vacinas a países não-europeus". Bruxelas
pretende evitar que as vacinas produzidas em seu território acabem indo,
a preços mais altos, para outros países (especialmente a
Inglaterra, onde suspeita-se foi parar um carregamento da
Astrazeneca prometido à UE), à luz da avaliação das
autoridades de que seria essa a causa do atraso no fornecimento, e não
os problemas nas fábricas da Bélgica alegados por ambos
laboratórios.
A sexta dose e as seringas
Em meados de dezembro, quando teve início a administração
da vacina da Pfizer nos Estados Unidos, as equipes de alguns hospitais
descobriram que, de cada frasco, seria possível extrair seis doses, uma
além do previamente anunciado. A descoberta suscitou esperanças
em meio a um panorama de escassez e urgência devido aos novos aumentos de
casos. Mas a empresa logo furou esse balão ao pressionar fortemente a
Food and Drug Administration (FDA) para que mudasse o texto de seu guia de
informações para os aplicadores, oficializando o novo rendimento
de cada frasco (
The New York Times,
22.01.21). Essa mudança se deu em 6 de janeiro, e, no dia 8, a
Agência Europeia de Medicamentos fez a mesma coisa. A
Organização Mundial de Saúde também adotou essa
recomendação.
Esse detalhe é importante, pois o fornecimento prometido nos contratos
se paga por quantidade de doses, e não por frasco. Isto permite à
empresa paliar parcialmente o descumprimento de seus compromissos na Europa e
no Canadá, no momento em que as autoridades alemãs advertem para
um desabastecimento de vacinas no velho continente que poderia durar até
dez semanas. Em 15 de janeiro, a Pfizer já havia comunicado a todos os
seus interlocutores europeus que, a partir da segunda-feira, dia 18, "cada
bandeja enviada conteria 1.170 doses, e não mais 975, com uma
redução de 20% no número de frascos" (
El Mundo, 25.01.21).
Com essa modificação, a produção líquida
da Pfizer prevista para este ano se eleva, por arte de magia, de 1.300 para
2.000 milhões de doses, como comunicaram imediatamente à imprensa
funcionários da companhia.
Mas acontece que as seringas especiais agora necessárias ditas
de baixo conteúdo morto,
pois reduzem o conteúdo residual que pode ficar inutilizado na agulha
ou no êmbolo não estão disponíveis para todos
os centros de vacinação da Europa e dos Estados Unidos, e
não estava prevista sua produção em grande escala para
obter a sexta dose. "Para a Pfizer, a aprovação da dose
extra pela FDA significa que pode cumprir seu contrato (...) e receber o
pagamento total dos Estados Unidos com 7 milhões de frascos a menos. Mas
muitas dessas sextas doses poderiam terminar descartadas porque os centros de
distribuição carecem das ferramentas adequadas", disse, em
22 de janeiro, ao
The Washington Post
Sam Buffone, ex-assessor jurídico da divisão de fraudes civis do
Departamento de Justiça. Das mais de 286 milhões de seringas que
a empresa Becton Dickinson a principal produtora do mundo tem
contratadas com o governo dos Estados Unidos, só 40 milhões
são do tipo necessário para extrair a sexta dose, afirmou a
companhia.
Por isso, o governo de Joe Biden avalia aplicar a Lei de Produção
de Defesa. Trata-se de uma norma aprovada em 1950, durante a Guerra da Coreia,
que permite ao governo intervir em empresas privadas para cumprir metas
bélicas. A lei foi se estendendo do campo militar a necessidades como as
causadas por catástrofes naturais, e foi utilizada pela
administração de Donald Trump no ano passado para aumentar a
produção de máscaras, respiradores e outros insumos
médicos. Além disso, segundo a
ABC News,
dá ao Executivo poderes de bloquear fusões e
aquisições estrangeiras consideradas prejudiciais à
segurança nacional o que, levado a cabo, poderia travar as
exportações das seringas (22.01.21). Enquanto isso, a Biontech,
sócia alemã da Pfizer, anunciou a iminente produção
e venda a preço de custo de 50 milhões de seringas especiais.
Talvez caiba recordar que os Estados Unidos já encomendaram à
Pfizer aproximadamente 200 milhões de doses de sua vacina.
A sete chaves
O zelo das empresas que especulam com vacinas para manter em segredo as
condições impostas aos Estados compradores chega a extremos
absurdos.
Após massivas manifestações e pedidos
internacionais, a Ucrânia, um país assolado por constantes
escândalos de corrupção, aprovou, nos últimos anos,
um pacote de reformas pró-transparência que obriga a tornar
pública a quase totalidade dos contratos estatais.
Mas a Pfizer, a
Moderna e a Johnson & Johnson, entre outras companhias farmacêuticas,
obrigam agora o governo ucraniano a descartar suas próprias normas e
passar por cima de seus mecanismos anticorrupção para garantir a
confidencialidade de eventuais contratos sobre vacinas, informou o
New York Times
na sexta, dia 22.
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A fuga albanesa
O portal de jornalismo investigativo Gogo.al, da Albânia, publicou, em 19
de janeiro, uma cópia do contrato secreto que a Pfizer teria proposto ao
governo desse país, logo reproduzida por vários meios de
comunicação locais. A Albânia tem uma
população um pouco menor que a do Uruguai, com quase 3
milhões de pessoas, e anunciou oficialmente nas últimas semanas
que comprou da referida empresa meio milhão de doses.
Brecha
não pôde confirmar por conta própria a veracidade do
documento publicado pelos jornalistas albaneses, mas suas cláusulas
estão em sintonia com as declarações de autoridades
latino-americanas e europeias.
O sucinto inciso 2.6 estabelece que "em nenhum caso, a Pfizer
estará sujeita à responsabilidade ou penalização
por atrasos na entrega". Outro parágrafo estabelece que, caso
"a Pfizer não tenha fornecido ao comprador
nenhuma dose
do produto antes de 31 de dezembro de 2021" ou "não possa
fornecer todas as doses contratadas antes de 31 de dezembro de 2022",
qualquer das partes poderá rescindir o contrato. Em tal caso, "a
devolução de cinquenta por cento (50%) do pagamento adiantado
será o único e exclusivo direito do comprador pela falta de
entrega das doses contratadas".
Também fica estabelecido no documento que a Albânia "renuncia
expressa e irrevogavelmente a qualquer direito de imunidade de
jurisdição", e isto inclui a imunidade (de
jurisdição ou de qualquer outro tipo) que "seus ativos
possam ter ou adquirir no futuro frente a qualquer arbitragem (...), inclusive,
mas não exclusivamente, a imunidade contra a penhora preventiva de
qualquer de seus bens e direitos". O contrato reitera, em vários
incisos, que qualquer controvérsia entre a Albânia e a Pfizer deve
ser resolvida pelos tribunais do estado de Nova Iorque.
Quanto às responsabilidades, fica estabelecido que "em nenhuma
hipótese, a Pfizer será responsável, ante o comprador, por
danos diretos, salvo na medida em que (...) sejam consequência de um
inadimplemento substancial de uma declaração ou garantia
formulada pela Pfizer em virtude do presente contrato, que tenha causado direta
ou exclusivamente o dano". Além disso, "em caso algum, a
Pfizer e suas controladas serão responsáveis perante o comprador
por qualquer demanda em razão da qual o comprador teria que indenizar a
Pfizer caso fosse apresentada diretamente contra ela. A responsabilidade total
da Pfizer e de suas controladas (...) não excederá a uma soma
equivalente ao preço total efetivamente auferido pela Pfizer, em virtude
deste contrato, pelas doses contratadas".
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29/Janeiro/2021
[*]
Jornalistas, uruguaios.
O original encontra-se em
brecha.com.uy/leoninas/
Traduzido por Henrique Júdice Magalhães.
Este artigo encontra-se em
https://resistir.info/
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