A criação artificial da escassez: o caso das vacinas
por Juan Torres López
[*]
O desaparecido economista e catedrático da Universidade de Salamanca
David Anisi escreveu em 1995 um livro intitulado
Creadores de escasez. Del bienestar al miedo
(Alianza Editorial). Nele explicava que, ao contrário do que se
acreditava, a crise que se verificou a partir dos anos 70 não havia sido
o que obrigou a questionar o Estado de Bem Estar, mas foi o inverso: a
colocação em causa deste último originou a crise.
Como explicava Anisi, "havia chegado o momento de disciplinar os
trabalhadores. E assim se fez".
Para isso recorreu-se à forma sempre mais eficaz, gerando o desemprego.
Aquele que carece de rendimentos e meios de vida não tem outro
remédio senão aceitar o que aparece para ir em frente e
converte-se assim num ser pessoal, mental e socialmente frágil,
facilmente manipulável e disciplinado.
Para provocar deliberadamente o desemprego que disciplinasse as classes
trabalhadoras aplicaram-se políticas baseadas na criação
artificial de escassez, aumentando as taxas de juro (o que travava o
investimento produtivo mas ao mesmo tempo enriquecia os possuidores do
dinheiro), reduzindo salários (o que reduzia o consumo mas aumentava os
lucros das grandes empresas que têm mercados cativos) e provocando
défices públicos e muita dívida (arrefecendo assim a
economia mas aumentando o negócio do capital financeiro).
O efeito dessas políticas é o mesmo de pisar constantemente o
travão num veículo: diminui a velocidade de cruzeiro, gasta-se
muito mais energia e deteriora-se o conjunto da maquinaria. Numa economia, a
consequência é que diminui a taxa de crescimento da actividade
económica e aumenta o desemprego. Dois efeitos que se agravam quando
todo isso ocorre, como se verificou nos anos oitenta e noventa do século
passado, em meio a uma revolução tecnológica. Quando esta
se manifesta, aumenta a produtividade e se este aumento não for
acompanhado por uma redução da jornada e de políticas
expansivas do gasto, o efeito da travagem é muito maior.
Isso é o que vêm provocando as políticas neoliberais e por
isso dizemos que criam escassez artificialmente. Destroçam toda a
economia e diminuem a provisão de bens e serviços mas beneficiam
muito, como já disse, os proprietários do capital financeiro (que
se enriquecem mais quanto maior for a dívida) e as grandes empresas que
dominam os mercados e têm clientes cativos ou uma massa de liquidez muito
grande com a qual se enriquecem nos mercados financeiros.
Pode parecer que a tese que acabo de expor seja demasiado perversa para ser
verdade mas, se não acreditam, leiam o que escreveu na página 183
do seu livro
El final de la edad dorada
(Ed. Taurus, 1996) aquele que foi um poderoso ministro da Economia de Felipe
González, Carlos Solchaga: "A redução do desemprego,
longe de ser uma estratégia da qual todos sairiam beneficiados, é
uma decisão que se fosse executada poderia acarretar prejuízos a
muitos grupos de interesses e a alguns grupos de opinião
pública". Não se pode reconhecer mais explícita e
claramente.
De facto, o capitalismo dos nossos dias é um criador artificial de
escassez e neste momento estamos a contemplar no caso das vacinas uma
manifestação mortífera disso.
Quando se estendeu a pandemia, as autoridades mundiais reconheceram o
lógico e elementar: o seu remédio não podia ser outro
senão uma vacinação maciça e muito rápida da
maior parte da população mundial.
A presidente da Comissão Europeia instou a que as vacinas se
convertessem num bem público porque "a União Europeia havia
investido muitos milhares de milhões no seu desenvolvimento". O
Fundo Monetário Internacional pedia no seu relatório de Janeiro
último uma "distribuição universal de vacinas ... a
preços acessíveis para todos"...
Contudo, não é isso o que está a acontecer e sim
exactamente o contrário: os governos dos países ricos recusam que
as vacinas se possam produzir e distribuir maciçamente e a preços
acessíveis em todos os países do mundo, como seria
imprescindível para acabar com a pandemia. Continua-se a criar escassez
ainda que agora não seja para disciplinar as classes trabalhadoras e sim
para salvaguardar o lucro e o poder das grandes empresas farmacêuticas,
de cuja natureza e estratégia escrevia há dias o professor
Vicenç Navarro nestas mesmas páginas (
aqui
).
Para desenvolver vacinas de distribuição universal, como pede o
FMI, é preciso a colaboração de cientistas e produtores de
todo o planeta mas isso só é possível se se puser à
disposição de todos eles o conhecimento e a técnicas que
as tornam possível, algo que é impossível enquanto
não se suspenderem as patentes e direitos de propriedade intelectual.
É o que está a pedir há meses a grande maioria de
países, líderes políticos, organizações de
todo tipo, centros de investigação, personalidades, dirigentes de
igrejas... E é o que deseja a imensa maioria da população
nos lugares onde em que lhe foi perguntado (73% no Reino Unido).
Mas, contra essa opinião maioritária, os governos dos
países ricos (Estados Unidos, União Europeia, Japão, Reino
Unido, Brasil, Canadá, Noruega e uns poucos mais) opõem-se
constantemente a isso.
A fim de salvaguardar os interesses comerciais das grandes empresas
farmacêuticas que produzem as vacinas (o mesmo poderia dizer-se de outros
bens, dispositivos ou instrumentos de diagnóstico que estão a ser
imprescindíveis na pandemia), está-se a dar lugar a uma
carência generalizada de vacinas, simplesmente, porque não se
está a aproveitar toda a capacidade potencial de
fabricação das mesmas. Os dados são inapeláveis:
Só se está a utilizar 43% da capacidade que há no
mundo para produzir as vacinas já aprovadas (
aqui
).
As três maiores fabricantes de vacinas só estão a
produzir para 1,5% da população mundial, um volume muito abaixo
da sua capacidade potencial por não ter acesso às licenças
(
aqui
).
Apesar da escassez, quando alguns fabricantes se oferecem para
produzi-las não recebem resposta das empresas que, com o
beneplácito dos governos, dominam o mercado. Isso aconteceu com a
dinamarquesa Bavarian Nordic que poderia fabricar quase 250 milhões de
vacinas (
aqui
).
Algo parecido ocorre em países como a Índia: um dos seus
fabricantes está a produzir milhões de vacinas mas há pelo
menos outras vinte fábricas, e outras muitas em todo o mundo, que
poderiam estar a produzi-las se tivessem acesso às licenças (
aqui
).
A consequência de tudo isto é duplamente absurda e me atreveria a
dizer que criminosa.
Em primeiro lugar, milhares de milhões de pessoas dos países mais
pobres ficam à margem da vacinação que lhes pode evitar a
enfermidade. Os países ricos (16% da população mundial)
acumulam as vacinas (60%) enquanto os mais pobres estão desabastecidos.
O Reino Unido havia distribuído mais de 31 doses por cada 100 pessoas e
os Estados Unidos mais de 22 em fins de Fevereiro, a Ásia no seu
conjunto um pouco mais de dois e a África menos 0,55 em média nos
países onde haviam chegado (
aqui
). A um terço da humanidade não chegou nem uma dose e, segundo
The Economist
, mais de 85 países não vacinarão o suficiente até
2023 (
aqui
), enquanto os governos dos países ricos compraram três vezes mais
unidades do que precisa a sua população (cinco no Canadá)
Isto não apenas um genocídio e sim, para cúmulo, de uma
completa estupidez. A acumulação de vacinas nos países
ricos não vai terminar com a pandemia porque esta é global e as
mutações podem vir de qualquer país onde a vacina
não tenha chegado. E é também uma política
estúpida porque, como expliquei num artigo anterior, financiar a
vacinação em todos os países do mundo implica 338 vezes
menos dinheiro do que o que custará o dano de não fazê-lo (
aqui
). Mais uma prova de que as decisões económicas que se tomam
não buscam a eficiência nem a poupança e sim o
enriquecimento de uns poucos.
A política dos países ricos é igualmente absurda porque,
em última análise, vai criar racionamento também em casa,
como está a acontecer na União Europeia. E também é
estúpido responder à escassez que eles próprios causaram
restringindo as exportações, porque isso não
melhorará nem o abastecimento interno nem o global, mas provocará
respostas do mesmo tipo que irão perturbar as cadeias de abastecimento.
A pandemia não está a ser combatida como os próprios
líderes mundiais disseram que deveria ser combatida porque são
incapazes ou não estão dispostos a limitar a ganância de
uns poucos. Uma crise económica gigantesca e a perda de milhões
de empresas e empregos está a ser causada para a salvaguarda dos
privilégios dos grandes monopólios. Milhões de pessoas
vão morrer desnecessariamente porque se está a dar prioridade aos
interesses comerciais.
Terminarei citando um autor amaldiçoado porque penso que ele estava
absolutamente certo. Refiro-me a Frederich Engels que disse na sua obra
A situação da classe operária na Inglaterra
que quando as pessoas morrem como "vítimas da nossa desordem
social e das classes que têm interesse nessa desordem" é
cometido um "assassinato social".
Isso é o que agora está a acontecer com as vacinas e por isso
torna-se cada vez mais necessário que se definam e persigam os crimes
económicos contra a humanidade.
12/Março/2021
[*]
Professor de teoria económica na Universidade de Sevilha.
O original encontra-se em
juantorreslopez.com/la-creacion-artificial-de-la-escasez-el-caso-de-las-vacunas/
Este artigo encontra-se em
https://resistir.info/
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