A preferência da finança pelas metrópoles
A presente globalização sempre foi legitimada pelo argumento de
que hoje o capital, ao contrário dos tempos coloniais, tornou-se cego a
distinções raciais e outras entre países ao decidir sua
localização. Ele agora fluiria sempre que houvesse oportunidades
para investimento lucrativo. Considerando os salários mais baixos no
terceiro mundo e portanto a maior lucratividade de localizar fábricas
ali ao invés de localizá-las nas metrópoles, isto
asseguraria não uma divergência cumulativa entre países
metropolitanos e do terceiro mundo como acontecia anteriormente, mas, ao
contrário, uma eliminação desta divergência.
Aos países do terceiro mundo foi pedido que permitissem capital
estrangeiros nos seus territórios com base neste argumento. E na verdade
a experiência de muitos países no Leste e no Sudeste da
Ásia, para os quais se mudaram várias indústrias e
actividades do sector serviços vindas das metrópoles, parecia
confirmar esta visão. Opor-se a tal "abertura", a qual
implicava globalização, parecia insensato, um resíduo de
velhas posições ideológicas herdadas dos tempos coloniais.
Muitos argumentaram mesmo que neste mundo onde ocorrera a
descolonização e onde até mesmo
"super-potências" económicas estavam a emergir no
interior do terceiro mundo, o termo "imperialismo" perdera a sua
relevância.
Houve dois problemas fundamentais com este argumento. O primeiro, que
não discutiremos aqui em pormenor, é que, para um país
permanecer competitivo no mercado global, tem de haver uma contínua
mudança tecnológica e estrutural no seu interior, a qual aumenta
o crescimento da produtividade do trabalho e portanto reduz a taxa de
crescimento de emprego para qualquer dada taxa de crescimento do PIB. Isto,
juntamente com o esmagamento da agricultura camponesa que inevitavelmente
acompanha uma tal estratégia e a consequente migração de
trabalhadores rurais aflitos para as cidades, significa que as reservas de
trabalho nunca acabarão apesar da difusão de actividades das
metrópoles. Portanto, o desemprego e a pobreza persistem e realmente
são agravados mesmo quando há uma taxa elevada de
crescimento do PIB causando um profundo hiato social e económico
dentro do país. A experiência indiana confirma isto amplamente.
O segundo problema com o argumento acima é o tema com que nos
preocuparemos aqui e este relaciona-se com o facto de que na
"abertura" ao capital não é permitida qualquer
distinção entre capital-como-finança e
capital-na-produção. Mesmo que assumamos por um momento que o
capital-na-produção se tornou realmente "cego" acerca
de onde se localiza a si próprio e que se concentra em farejar lucros (o
que não é verdade), a mesma certeza não se mantém
para o capital-como-finança. Este facto sempre foi conhecido, mas a
pandemia demonstrou-o mais uma vez de modo claro.
Há três propriedades cruciais do capital-como-finança. Uma
é a sua extrema volatilidade, sua propensão para mover-se de uma
localização para outra com velocidade notável e à
mínima provocação, a qual pode então adquirir um
carácter cumulativo e desestabilizar qualquer economia. A segunda
é a dos seus dogmas claríssimos, incluindo acima de tudo o seu
desgosto por um Estado economicamente intervencionista. Disso é
indicativo o seu desgosto por um défice orçamental que não
seja minúsculo sob quaisquer circunstâncias. Estas duas
propriedades em conjunto explicam porque mesmo governos desejosos de assim
faze-lo ficam sempre apreensivos quanto a empreender investimento em empresas
públicas, despesas com educação pública e cuidados
de saúde e, também, porque os défices orçamentais
permanecem restritos mesmo em meio a uma recessão.
Entretanto, é a terceira propriedade da finança que é de
extrema importância embora menos discutida ou sequer noticiada. E esta
é a preferência para mover-se dos países do terceiro mundo
para localizações em "abrigos seguros" nas
metrópoles aos primeiros sinais de qualquer perturbação na
economia mundial mesmo quando esta perturbação nada tem a
ver com o terceiro mundo e mesmo quando a sua fonte está nas
próprias metrópoles. Ironicamente, por causa da pandemia do
coronavírus, US$84 mil milhões saíram de países do
terceiro mundo, incluindo a Índia, só no mês de
Março.
O que este "instinto de volta para casa" implica é que a
finança não é cega acerca do lugar em que se
auto-localiza. Ela pode sair em busca de lucros para regiões remotas do
terceiro mundo, mas apressa-se em voltar "para casa" sempre que
há qualquer perturbação, não só nestas
regiões remotas mas em qualquer lugar na economia mundial. Quando corre
de volta para casa, como tem feito recentemente, as divisas nas regiões
remotas depreciam-se em relação ao dólar, tornando o
serviço da dívida externa nessas regiões muito mais penoso
e a sua balança de pagamentos insustentável sem novos
empréstimos externos. Como "condicionalidade" para tais
empréstimos externos, os governos destas regiões são
obrigados a prosseguir a austeridade e a engendrar um maior desemprego interno.
Portanto, a natureza da finança globalizada é tal que não
só impede gastos em bem-estar por parte de governos do terceiro mundo
mesmo quando tudo vai bem como também impõe
austeridade a estes governos sempre que há qualquer
perturbação na economia mundial, mesmo uma
perturbação que seja totalmente não relacionada a qualquer
acção da sua parte.
Portanto, para o terceiro mundo, sujeitar-se a fluxos financeiros globais
é o equivalente a aceitar não só uma subserviência
do seu Estado-nação interno à hegemonia da finança
como também uma posição de inferioridade em
relação aos Estados-nação dos países
avançados. O facto de que Estados-nação por toda a parte
(excepto os EUA com a sua divisa poderosa) se tornam subservientes à
finança globalizada, reduzindo com isso a democracia, tem sido
amplamente observado. Mas o que é menos observado é que há
uma diferença no status dos Estados-nação metropolitanos e
os Estados-nação do terceiro mundo.
Esta diferença de status é visível mesmo durante a actual
pandemia. Os governos em países capitalistas avançados
concluíram pacotes orçamentais para enfrentar a pandemia que se
elevam a proporções substanciais dos seus PIBs (Alemanha 5%; EUA
15% até agora; Japão 20%) e não têm remorsos quanto
a utilizar não só défices orçamentais como
também défices monetizados (isto é, tomadas de
empréstimos dos seus respectivos bancos centrais) para
financiá-los. Na Índia, em contraste, o único pacote
até agora foram os 1,7 milhão de milhões de rupias de
Nirmala Sitharaman (0,7 por cento do PIB) dos quais quase a metade é
despesa antiga re-etiquetada. Não tem havido conversa de qualquer novo
pacote apesar da extensão do confinamento que era para terminar em 14 de
Abril durante um novo período de três semanas. E agora o governo
anunciou sua intenção de permanecer dentro do limite do
défice orçamental. Isto deve-se parcialmente, sem dúvida,
à absoluta pusilanimidade do governo Modi em relação
à finança globalizada mas reflecte também seus
constrangimentos.
Mesmo dentro da esquerda há uma visão de que a
globalização representa uma espécie de meio caminho rumo
ao internacionalismo que ela apoia. Na verdade, esta está a ocorrer
dentro do capitalismo e é dominada pela finança. Mas não
se deveria, argumenta-se, reverter à situação anterior
à globalização. Deveríamos, ao invés,
permanecer dentro do âmbito da globalização e procurar
derrubar a hegemonia do capital financeiro sobre este processo. Este argumento
é enviesado por duas razões diferentes: uma, a óbvia,
é que não há luta dos trabalhadores coordenada
internacionalmente, muito menos uma luta dos camponeses coordenada
internacionalmente. Uma luta internacional contra a globalização
não pode ter êxito se as classes cuja tarefa é levar a cabo
esta luta não forem elas próprias coordenadas internacionalmente.
A outra razão é que como a globalização envolve,
como vimos, uma replicação da estrutura hierárquica de
nações que a obtiveram historicamente sob o capitalismo, apesar
de toda a passagem de actividades da metrópole para o terceiro mundo, o
processo de libertação desta globalização dominada
pela finanças não pode ser idêntico ou simétrico em
todas as nações. Se os países do terceiro mundo podem ser
atingidos por saídas financeiras maciças por razões
não provocadas por si mesmos, então eles têm de impedir
estes fluxos através de controles de capitais e isto
ipso facto
significa um desligamento da globalização. Em suma, para os
trabalhadores e camponeses do terceiro mundo o desligamento da actual
globalização deve permanecer um objectivo central.
Isto não significa que a luta para reformar as
instituições e práticas através das quais opera a
finança dominada pela globalização não deveria ser
efectuada. A questão do desligamento torna-se relevante precisamente
porque tais reformas ou não terão êxito de todo ou
serão insuficientes a partir da perspectiva de países do terceiro
mundo. A luta pela reforma das instituições através das
quais é exercida a hegemonia do capital financeiro e o desligamento da
actual globalização não são dois processos
distintos uma ascende porque a outra não tem êxito. E a
outra, nomeadamente reformar as instituições da presente
globalização, seria mal sucedida porque a finança
não abdicará voluntariamente da sua hegemonia.
03/Maio/2020
[*]
Economista, indiano, ver
Wikipedia
O original encontra-se em
peoplesdemocracy.in/2020/0503_pd/finance's-preference-metropolis
Tradução de JF.
Este artigo encontra-se em
https://resistir.info/
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