As verdadeiras cores do FMI
A crise do Covid-19 provocou uma resposta muito diferenciada entre os
países avançados e os países do terceiro mundo. Os
primeiros desenvolveram pacotes orçamentais significativos para
salvamento e recuperação, ao passo que os segundos ficaram presos
à austeridade orçamental. Entre os países do terceiro
mundo, o pacote orçamental da Índia talvez tenha sido o mais
mesquinho, ascendendo a não mais de um por cento do PIB; mas mesmo
outros países do terceiro mundo não se têm saído
muito melhor. Em contraste, os EUA sob Trump desenvolveram um pacote de resgate
de US$2 milhões de milhões
(trillion),
o que representa 10% do seu PIB; e Biden anunciou um pacote adicional de
US$1,9 milhões de milhões, dos quais pelo menos um milhão
de milhões de dólares é transferência
orçamental directa para o povo. No seu conjunto, estes dois pacotes
atingem cerca de 20% do PIB dos EUA (embora repartidos por mais de um ano). A
União Europeia também desenvolveu pacotes orçamentais
significativos para o salvamento e recuperação da pandemia.
O que é digno de nota é que o Fundo Monetário
Internacional tem encorajado e apoiado activamente tais pacotes, afastando-se
da sua insistência habitual sobre austeridade orçamental. Em
relação aos países do terceiro mundo o FMI também
se exprimiu a favor de despesas públicas mais amplas no contexto da
pandemia. Mas, segundo uma análise da Oxfam, enquanto concedia
empréstimos a países do terceiro mundo durante a pandemia, o FMI
retractou-se destas piedosas palavras e mais uma vez impôs austeridade
orçamental a estes países!
A
análise da Oxfam
descobriu que dos 91 empréstimos negociados pelo FMI com 81
países após Março de 2020, 76 encorajam ou exigiam medidas
de austeridade. Tais medidas incluíam cortes nas despesas
públicas que implicavam níveis reduzidos de despesa com cuidados
de saúde pública e pagamentos de pensões. Eles envolviam
congelamentos salariais ou cortes salariais que reduziriam os rendimentos de
médicos, enfermeiros e outros trabalhadores em instalações
públicas de saúde, bem como cortes em benefícios de
desemprego e pagamentos por doença.
A Oxfam dá um certo número de exemplos específicos. No
caso do Equador, o FMI recentemente acordou um empréstimo de US$6,5 mil
milhões, mas a condição foi o seu "conselho" ao
Equador para cortar as despesas de saúde, cortar subsídios do
combustível de que as pessoas pobres dependem fortemente, e para parar
as transferências de dinheiro para as pessoas que não conseguem
encontrar trabalho. Nove países, os quais incluem Angola e a
Nigéria, foram convidados a aumentar ou introduzir impostos de valor
acrescentado que oneram fortemente os pobres, uma vez que se aplicam a
alimentos, vestuário e artigos domésticos. Em 14 países
que incluem Barbados, El Salvador, Lesoto e Tunísia, é
provável que haja cortes ou congelamentos nos salários e empregos
do sector público. Tais cortes significariam menos médicos,
enfermeiros e trabalhadores da saúde do governo, e isso também em
países que já têm um número extremamente reduzido
desse pessoal por habitante.
Esta insistência na austeridade da parte do FMI mostra duas coisas:
primeiro, que ele discrimina claramente entre países, contra os pobres
pois distintos dos ricos. Ele pode estar disposto a evitar medidas de
austeridade para os países ricos, mas nunca para os subdesenvolvidos. Em
segundo lugar, independentemente do que declare, por mais
"razoável" que pareça ocasionalmente, pressiona
invariavelmente em todas as ocasiões a mesma agenda, de austeridade e
privatização, em relação aos países do
terceiro mundo. Os seus ocasionais pronunciamentos "sensatos", que
contrariam a lógica das suas "condicionalidades", encorajam
economistas progressistas a abrigar a crença de que o FMI pode estar a
mudar e a tornar-se mais humano. Mas estes pronunciamentos, muitas vezes sob a
forma de artigos de investigação do seu pessoal publicados na sua
revista, são apenas uma fachada por trás da qual o FMI continua a
fazer o que sempre fez.
Outro exemplo de tal duplicidade é quando ele mostra alguma
apreciação da necessidade de impor controles de capitais em
países do terceiro mudo, o que fez muitos economistas progressistas
sentirem que afinal de contas o FMI estava a mudar. Mas no seu comportamento
real não houve a mais mínima mudança; a sua
insistência em manter as economias do mundo abertas a fluxos livres de
capitais, incluindo o financeiro, nunca esmoreceu. Não se pode deixar de
concluir que a sua simpatia por opiniões contrárias às
suas "condicionalidades", é apenas um artifício de
relações públicas por parte do FMI a fim de adquirir maior
credibilidade entre economistas progressistas.
Aqui levanta-se inevitavelmente uma apreensão. As posições
divergentes adoptadas pelo FMI face aos países avançados e aos
subdesenvolvidos no contexto da pandemia, podem muito bem ser transportadas
para além da pandemia, para constituir a base de um novo regime
internacional que facilitaria às metrópoles uma
recuperação da crise económica desencadeada pelo
capitalismo neoliberal. Este regime implicaria um estímulo
orçamental empreendido pelos governos dos países avançados
para a recuperação das suas respectivas economias da crise; mas
para os países do terceiro mundo haveria uma austeridade continuada, de
modo a que continuassem a ser afectados pelo desemprego maciço e pela
compressão dos rendimentos, o que também tem a
"vantagem" de assegurar que a recuperação nos
países avançados não seja constrangida pelo aparecimento
da inflação.
Por outras palavras, esta estratégia implicaria um cordão de
isolamento entre os países avançados e as economias do terceiro
mundo. Isto seria feito através de protecção, como o que
Trump havia introduzido nos EUA, mas agora generalizada ao mundo capitalista
avançado como um todo, juntamente com um estímulo
orçamental cujos efeitos são mantidos confinados às
economias domésticas dos países avançados. Por outras
palavras, os rendimentos nos países avançados irão
aumentar, enquanto os rendimentos nos países do terceiro mundo
permanecerão comprimidos através da austeridade orçamental
e da falta de acesso aos mercados metropolitanos.
Uma vez que os preços de todo um conjunto de
commodities
primárias produzidas no terceiro mundo estão ligados aos
rendimentos das pessoas que determinam a procura local de tais
commodities,
a compressão dos rendimentos no terceiro mundo também
assegurará uma compressão da procura a qual libertará tais
commodities
para as necessidades da metrópole a preços não acrescidos.
Sob o capitalismo neoliberal houve uma difusão de actividades da
metrópole para o terceiro mundo, especialmente para os países
asiáticos, mas não só para eles, a qual havia
"des-segmentado" a economia mundial. A estratégia que se
apreende pode agora ser posta em prática, na qual espécie de
política que o FMI está a seguir talvez seja um precursor, o que
significará uma "re-segmentação" da economia
mundial, com as oligarquias corporativas-financeiras dos países
avançados de um lado, fazendo algum "controlo de danos" ao
estimular uma recuperação na metrópole que reduz o
desemprego e a angústia entre trabalhadores metropolitanos, e os
trabalhadores do terceiro mundo do outro lado, com estagnação e
recessão contínuas nas economias do terceiro mundo. A grande
burguesia nestas últimas economias encontrará muito espaço
para se enriquecer, chegando mesmo a investir nas economias metropolitanas.
Isto significaria uma reconstituição do cenário colonial.
Sob o capitalismo neoliberal tal como existia até agora, embora os
trabalhadores do terceiro mundo tivessem testemunhado um aumento da pobreza
nutricional, tinha havido pelo menos uma deslocalização de
actividades da metrópole para o terceiro mundo a era de tal
deslocalização pode muito bem estar a chegar ao fim. E a
hostilidade dos EUA à China poderia muito bem fornecer uma cobertura
para a adopção de políticas, tanto nos EUA como alhures
nas metrópoles, para desencorajar tal deslocalização.
Os economistas progressistas do Ocidente irão sem dúvida
desmascarar tal discriminação flagrante e levantar a sua voz
contra ela, mas se ela persistir, então os países do terceiro
mundo serão forçados a desvincular-se de uma ordem global
tão flagrantemente discriminatória e a encontrar estímulos
alternativos para o seu crescimento.
A ordem global sempre foi discriminatória contra os trabalhadores do
terceiro mundo, mas anteriormente isto era camuflado pela experiência do
alto crescimento do PIB que a deslocalização das actividades da
metrópole havia tornado possível. Mas se tal
deslocalização for impedida por uma discriminação
flagrante, então haverá inevitavelmente um recrudescimento da
resistência do terceiro mundo.
O sonho da harmonia entre nações, de modo a que as
nações ricas ajudem as pobres a recuperar e prosperar, que
é entretido por muitos economistas progressistas, é nobre. Mas
infelizmente é incapaz de ser realizado dentro da ordem capitalista. A
duplicidade de padrões do FMI no contexto da pandemia, que pode muito
bem ir além da pandemia, serve apenas para sublinhar este ponto.
04/Abril/2021
[*]
Economista, indiano, ver
Wikipedia
O original encontra-se em
peoplesdemocracy.in/2021/0404_pd/imf%E2%80%99s-true-colours
Tradução de JF.
Este artigo encontra-se em
https://resistir.info/
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