Igualdade e escassez
Muitos recordarão que a União Soviética e outros
países socialistas da Europa do Leste costumavam ser caracterizados por
longas filas de consumidores de várias mercadorias. Isto foi motivo para
muita ridicularização no ocidente e era atribuída à
ineficiência do sistema socialista de produção, em
comparação com o capitalismo onde bastava ir a um supermercado e
comprar tudo o que se quisesse.
Na realidade, longe de serem um sintoma de ineficiência, as longas filas
de consumidores eram um reflexo da natureza altamente igualitária das
sociedades socialistas. Analogamente, o livre acesso a bens sob o capitalismo
é fundamentado na extrema desigualdade de rendimento que prevalece sob
este sistema. Este ponto pode ser ilustrado por um exemplo em que
deliberadamente escolhemos números que são idênticos em
todos os aspectos excepto na distribuição do rendimento.
Tomem-se duas economias S (sob o socialismo) e C (sob o capitalismo). Cada uma
investe 20 unidades e pode fabricar 100 unidades de produto. Os 20 por cento
superiores em S (consistentes de funcionários socialistas) têm 30
por cento do produto e os 80 por cento mais baixos (consistentes de
trabalhadores) têm os restantes 70 por cento. Em contraste, os 20 por
cento superiores em C (consistentes de capitalistas e funcionários)
têm 60 por cento do produto e os restantes 80 por cento (consistentes de
trabalhadores) têm 40 por cento. O segmento de topo em cada economia
consome a metade do seu rendimento e os trabalhadores em cada economia consomem
a totalidade do seu rendimento.
Agora, se a plena capacidade de produção dos 100 for atingida em
S, então o total da procura para consumo será 85 (consistindo de
metade de 30 mais 70) e a procura agregada total (inclusive de investimento de
20) será 105. Em contraste, o total da procura para consumo em C
será 70 (metade de 60 mais 40) e a procura agregada total (inclusive de
investimento de 20) será 90. Por outras palavras, se a plena capacidade
de produção de 100 for atingida, então haverá um
excesso de procura de 5 em S e uma procura deficiente de 10 em C.
Portanto a economia capitalista não produzirá em plena capacidade
devido à procura deficiente. Em vez disso produzirá apenas 66
2/3, uma vez que com esta produção e as mesmas fatias
distributivas os capitalistas obterão 40 e os trabalhadores
obterão 26 2/3, de modo que o consumo total será 46 2/3, os quais
juntamente com o investimento de 20 será exactamente igual à
produção verificada, 66 2/3. O emprego real portanto será
apenas dois terços do que teria sido se a produção em
plena capacidade estivesse a verificar-se. Em suma, haveria desemprego
maciço. Uma vez que não se trata de qualquer falta ou excesso de
procura (bem pelo contrário) nesta economia, os consumidores podem
simplesmente entrar em qualquer supermercado e comprar o que quiserem;
não há quaisquer filas de espera por bens.
Em contraste, na economia socialista, onde a produção de 100
causa um excesso de procura de 5, será produzida a capacidade total de
produção de 100; mas a questão é como é que
uma tal economia irá lidar com o excesso de procura de 5? A forma
fácil de o fazer seria simplesmente deixar os preços subirem,
até que os rendimentos reais de alguns consumidores tenham sido
suficientemente esmagados para reduzir as suas compras em 5; mas tipicamente
isto significaria um esmagamento desproporcionalmente grande dos trabalhadores
que terão muito pouco dinheiro para reduzir, a fim de manter o consumo.
Todo o excesso de procura de 5 será então reduzido a expensa dos
trabalhadores. Mas comparado a isto, uma redução proporcional no
consumo de toda a gente será melhor; isto é o que as economias
socialistas faziam, mantendo os preços ao nível antigo mas
instituindo o racionamento, para que a redução da procura em 5
pudesse ser mais igualmente repartida. Este racionamento significava que as
pessoas tinham de fazer fila para as suas compras.
Assim, o facto de que as economias socialistas eram caracterizadas por filas de
espera não era causado por qualquer ineficiência do sistema. Ao
contrário, era um reflexo da preocupação do sistema em
manter baixa a desigualdade na distribuição dos rendimentos.
Assim fazia de duas formas distintas: uma, mantendo o nível base de
distribuição relativamente mais igual; e a segunda, assegurando
que se no entanto surgisse um excesso de procura, então que a sua
resolução assumisse a forma não de um aumento de
preços que teria sido regressivo, mas de um racionamento a preços
determinados. As filas de espera eram um resultado deste racionamento.
Sem dúvida houve muitos problemas na implementação
efectiva de uma tal política na economia socialista, tais como o acesso
privilegiado de alguns (funcionários do Estado ou do Partido) a bens
escassos, e a violação do princípio da igualdade de
rações para todos pela instituição de um
princípio de "primeiro a chegar, primeiro a ser servido", o
qual tinha o efeito de distribuir o bem escasso arbitrariamente. Mas isto
não nega o ponto básico de que a escassez observada de bens numa
economia socialista foi o resultado de uma distribuição mais
igualitária do rendimento. Do mesmo modo, a plenitude observada de bens
sob o capitalismo é o resultado do facto de vastas massas de
trabalhadores terem demasiado pouco poder de compra nas suas mãos para
comprarem estes bens, o que é tanto uma causa como uma
consequência do desemprego em massa que invariavelmente caracteriza este
sistema.
O bem conhecido economista húngaro Janos Kornai, um crítico do
sistema socialista que existia no seu país, tinha dito: "o
capitalismo clássico é limitado pela procura enquanto o
socialismo clássico é limitado pelos recursos", o que
significa que este último utiliza plenamente todos os seus recursos,
incluindo a mão-de-obra disponível. A razão que ele deu
para este fenómeno foi que sob o socialismo, uma vez que as empresas
têm subsídios governamentais assegurados elas enfrentam uma
"restrição orçamental branda" que as faz gastar
em excesso em projectos de investimento, sem serem demasiado calculistas quanto
à taxa de retorno esperada. Sob o capitalismo, pelo contrário, as
empresas enfrentam uma "restrição orçamental
dura" que as torna cautelosas na realização de investimentos.
Se bem que isto possa ser verdade, há uma poderosa razão
adicional que temos enfatizado para o capitalismo ser constrangido pela procura
e o socialismo constrangido pelos recursos e esta é a maior
igualdade na distribuição do rendimento sob o socialismo. Dito de
modo diferente, uma vez que o nível da procura agregada em qualquer
economia (ignorando o comércio externo) consiste de dois elementos, o
nível de investimento e o nível de consumo tal como determinado
pelo rácio médio do consumo em relação ao
rendimento (ou propensão da economia a consumir nas palavras de Keynes),
a explicação de Kornai para a diferença entre capitalismo
e socialismo refere-se só ao primeiro elemento, embora também
haja uma diferença muito importante em relação ao segundo.
A maior igualdade na distribuição de rendimento sob o socialismo
significa na média um rácio consumo-rendimento mais elevado e,
portanto, um nível de procura agregada mais alto para qualquer dado
nível de investimento (o que os economistas chamam um
"multiplicador" mais alto para o investimento). Este aspecto chave
das economias socialistas foi omitido por Kornai.
Qual o interesse, poder-se-ia perguntar, em dizer tudo isto agora, quando o
socialismo na União Soviética e na Europa do Leste entrou em
colapso? Bem, uma razão parcial é recordar-nos que, apesar de
todas as suas limitações, as economias socialistas
constituíram um grupo que alcançou o pleno emprego, em contraste
com o que tem acontecido com todas as outras economias nos últimos
duzentos anos. Isto acontece porque o capitalismo, pela sua própria
natureza, não pode alcançar o pleno emprego, ao passo que
economias socialistas têm dinâmicas muito diferentes que lhes
permitem assim fazê-lo. Que tais economias existiram deveria ser sempre
recordado.
A outra parte da resposta reside no facto de que o contraste agudo entre
capitalismo e socialismo também se refere numa menor extensão
à diferença entre o regime dirigista e os regimes neoliberais em
países do terceiro mundo como a Índia. Não que estes
países tenham alcançado algo como o pleno emprego, mas os regimes
dirigistas tinham maior igualdade na distribuição do rendimento
razão pela qual eles enfrentavam problemas de excesso de procura
agregada e tinham de recorrer ao racionamento de vários bens. Isto
estava em contraste com a fase neoliberal destas mesmas economias que
assistiram a um enorme aumento na desigualdade de rendimento e, portanto, a um
esmagamento do poder de compra nas mãos das massas trabalhadoras, a qual
dá uma impressão totalmente enganosa de plenitude nos
supermercados.
Na Índia por exemplo, segundo Chancel e Piketty, a fatia do rendimento
nacional dos um por cento do topo da população era tão
baixa quanto seis por cento em 1982, antes de ser introduzida a
"liberalização" iniciada em 1985, mas aumentou para 22
por cento em 2013, a mais alta em quase um século. Portanto a
inflação sob o regime neoliberal geralmente não é
causada pelo excesso de procura; ela é tipicamente administrada pelos
governos através da elevação de impostos sobre bens de uso
comum ao invés de sê-lo sobre a riqueza dos capitalistas ou os
lucros.
Mas mesmo esta inflação pretende-se então que seja
controlada através da imposição de austeridade
orçamental (como se a sua causa fosse excesso de procura), o que por sua
vez agrava a situação de desemprego sem reduzir a
inflação. O governo da Índia está agora a
prosseguir um exercício tão insensato.
08/Agosto/2021
[*]
Economista, indiano, ver
Wikipedia
O original encontra-se em
peoplesdemocracy.in/2021/0808_pd/equality-and-scarcity
Tradução de JF.
Este artigo encontra-se em
https://resistir.info/
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