A família e o Estado

por Prabhat Patnaik [*]

Grafitti de Banksy. Simples analogias podem ser enganosas, mesmo perigosas. Um exemplo é a analogia frequente entre a família e o Estado. Assim como uma família não pode "viver acima dos seus meios" para sempre e, mais cedo ou mais tarde, os seus credores não apenas cessam de conceder empréstimos como também tomam os activos da família por incumprirem o reembolso dos empréstimos, igualmente o Estado não pode "viver acima dos seus meios" a contrair empréstimos ad infinitum; mais cedo ou mais tarde os credores cessam de dar empréstimos e até apreendem os seus activos.

Este argumento é muito comum. É ouvido inúmeras vezes, entre porta-vozes de instituições de Bretton Woods e em discursos de ministros das Finanças sobre o orçamento, proporcionando uma lógica para restringir o défice. Uma vez que o défice orçamental é uma medida da capacidade do Estado para contrair empréstimos adicionais, nele incorrer implica que o Estado está "a viver acima dos seus meios", o que acabaria por provocar aflições, tal como acontece com uma família.

Naturalmente faz-se aqui uma ligeira concessão. Desde que haja crescimento da economia, a receita fiscal do Estado também continua a aumentar, verifica-se um dado rácio entre o défice orçamental e o Produto Interno Bruto a cada ano, isso ainda mantém constante a dívida total do Estado em relação ao PIB, desde que a taxa de juro sobre tal dívida seja menor do que a taxa de crescimento da economia. Se, além disso, o rácio do défice orçamental em relação ao PIB for pequeno, então a dimensão da dívida do Estado em relação ao PIB permanece administrável. Mas qualquer défice orçamental que ultrapasse esta pequena dimensão torna o rácio dívida-rendimento demasiado alto e portanto a situação torna-se insustentável. É em cima de um raciocínio como este que têm sido fixados limites em torno dos 3 por cento do PIB nos défices orçamentais.

Contudo, esta analogia entre a família e o Estado é completamente errónea e na verdade perigosa, uma vez que o seu efeito é manter o défice orçamental (e portanto a despesa do governo) restringido, mesmo em situações em que há desemprego em massa devido a uma deficiência da procura agregada. Por outras palavras, os meios de vida de milhões de trabalhadores são sacrificados no altar desta analogia errónea entre a família e o Estado.

A diferença entre a família e o Estado decorre do seguinte facto elementar:   a menos que o Estado financie o seu défice orçamental pela contracção de empréstimos do exterior (a necessidade disto decorrerá só se uma parte do aumento na procura agregada devido a maior despesa governamental "escapar para fora" na forma de maiores importações e mesmo assim tal "escapadela" pode ser impedida através de restrições tarifárias e uma maneira adequada de gasto governamental), esta contracção de empréstimos é junto a pessoas dentro do país sobre as quais ele tem direitos soberanos de tributação. No caso de a dívida se tornar não administrável, ele sempre pode elevar taxas fiscais internas a fim de reduzir a dimensão relativa da sua dívida.

Isto é algo que uma família não pode fazer. Quando uma família contrai empréstimos de outros, ela não tem direitos soberanos sobre eles, ela não pode tomar-lhes recursos para reduzir a dimensão da sua dívida. Mas isso não acontece com o Estado, o qual pode aumentar impostos sobre os habitantes dentro da sua jurisdição, tanto àqueles aos quais está endividado como a outros que não estão.

Pode-se pensar que um défice orçamental não pode ser financiado pela contracção de empréstimos junto aos habitantes internos, uma vez que estes não teriam suficientes "poupanças" para emprestar ao governo. Mas isto ignora completamente o ponto principal, acerca de como funciona um défice orçamental. Um défice orçamental (assumindo que os seus efeitos não "escapam para fora" como importações) gera procura agregada adicional e assim aumenta o produto e o emprego, e portanto gera poupanças adicionais. De facto, ele mantém o produto em crescimento até que as poupanças adicionais que gera em mãos privadas (com dado investimento privado) equalize exactamente a dimensão do défice orçamental. Um défice orçamental portanto coloca em mãos privadas as próprias poupanças que pede emprestadas; não há possibilidade aqui de não haver poupanças suficientes em mãos privadas para financiar o défice orçamental.

Dizer que um défice orçamental, ou seja, um empréstimo do Estado para financiar despesas maiores, está numa base completamente diferente do empréstimo das famílias, e que o Estado não pode ser visto em pé de igualdade com uma família, não significa que um défice orçamental seja a melhor forma de financiar despesas governamentais. O problema de um défice orçamental deveria ser claro precisamente pelo que foi dito acima:   uma vez que gera poupanças privadas adicionais (nomeadamente riqueza privada adicional) igual a si próprio, e uma vez que as poupanças são tipicamente feitas em grande medida pelas camadas mais abastadas da sociedade, despesas governamentais financiadas por um défice orçamental aumentam a desigualdade de riqueza. Se, ao invés de tomar emprestado, o Estado realmente tributasse estas poupanças adicionais, ou seja, se não tivesse um défice orçamental mas equilibrasse o seu orçamento pela elevação de impostos, então não haveria aumento da desigualdade de riqueza, mesmo que não houvesse redução da riqueza privada em comparação com a situação original.

Assim, se bem que a despesa pública financiada pelo défice orçamental seja pior do que a despesa pública financiada por impostos (por razões de distribuição da riqueza), é melhor do que não haver qualquer despesa pública (em nome do controle do défice orçamental), pois melhora, ao contrário desta última, as condições de vida de milhões de trabalhadores desempregados, proporcionando-lhes emprego.

Do mesmo modo, o facto de um défice orçamental ser visto com desdém com base numa analogia entre o Estado e uma família em matéria de empréstimos, não significa que esta seja a verdadeira razão para se lhe opor. Dizer que a analogia está errada não é suficiente para persuadir o capital financeiro internacional a concordar com défices orçamentais maiores. A verdadeira razão para a oposição reside no facto de que o activismo directo do Estado em matéria de aumento da procura agregada, contornando os capitalistas, mina a legitimidade social do capitalismo. O medo de que isto aconteça faz com que as finanças utilizem esta falsa mas aparentemente simples e persuasiva analogia entre o Estado e a família para desencorajar as despesas do Estado. A analogia não é a razão – é o argumento ostensivo avançado para justificar o inactivismo do Estado.

Mas isso não é tudo. Há um esforço deliberado feito sob o neoliberalismo para realmente reduzir o Estado ao nível do agregado familiar, de modo a que a falsa analogia se torne real ao longo do tempo. Isto evidentemente é uma tendência geral sob o capitalismo neoliberal. Negar a natureza soberana do Estado e tornar o Estado indistinguível de qualquer outro agente económico, como uma família ou uma empresa, é uma das principais características do regime neoliberal.

Um sintoma disto é a comparação entre os sectores público e privado em termos de lucratividade, com o objectivo de mostrar que o sector público é inferior. O truque aqui reside no próprio discursos que é adoptado, a suposição implícita de que o papel do sector público não é diferente daquele do sector privado, a qual significa que o Estado não é diferente de qualquer entidade corporativa privada e deveria ser julgado como tal. Tendo arrancado com esta suposição, o esforço então é feito para forçar o sector público a ser "lucrativo", geralmente pela minimização do seu papel social. Dessa forma, bancos do sector público são colocados sob pressão para se tornarem mais lucrativos, razão pela qual eles começam a negar crédito a sectores prioritários como a agricultura.

Analogamente pretende-se ignorar o papel fiscal soberano do Estado – que é, como vimos, o que distingue o Estado de uma família na tomada de empréstimos –, especialmente o seu papel de tributação em relação ao sector privado. Um aumento da receita dos impostos sobre as empresas, que é sobretudo o necessário para reunir poupanças adicionais geradas pelo défice orçamental, não pode ser obtido à vontade do Estado. Isto acontece porque qualquer tributação maior do sector corporativo privado é desaprovada pelo capital financeiro globalmente móvel. Em suma, o Estado é levado a comportar-se como se fosse tão indefeso em matéria de tomada empréstimos quanto uma família.

Assim, o capitalismo neoliberal não se limita a desenhar uma falsa analogia entre o Estado e outros agentes económicos, lavando o seu papel soberano; ele insiste em que o Estado real adopte o carácter para ele designado.

Assim, consequentemente, a luta contra o neoliberalismo deve ter na sua agenda um renascimento da natureza soberana do Estado; mas para que isso aconteça o Estado deve ter um carácter de classe diferente. Descartar a hegemonia das finanças globalizadas exige um Estado baseado no apoio de uma aliança de trabalhadores e camponeses e com políticas públicas que dêem prioridade aos seus meios de vida.

15/Agosto/2021

[*] Economista, indiano, ver Wikipedia

O original encontra-se em peoplesdemocracy.in/2021/0815_pd/household-and-state e em mronline.org/2021/08/17/the-household-and-the-state/ . Tradução de JF.


Este artigo encontra-se em https://resistir.info/ .
18/Ago/21