A família e o Estado
Simples analogias podem ser enganosas, mesmo perigosas. Um exemplo é a
analogia frequente entre a família e o Estado. Assim como uma
família não pode "viver acima dos seus meios" para
sempre e, mais cedo ou mais tarde, os seus credores não apenas cessam de
conceder empréstimos como também tomam os activos da
família por incumprirem o reembolso dos empréstimos, igualmente o
Estado não pode "viver acima dos seus meios" a contrair
empréstimos
ad infinitum;
mais cedo ou mais tarde os credores cessam de dar empréstimos e
até apreendem os seus activos.
Este argumento é muito comum. É ouvido inúmeras vezes,
entre porta-vozes de instituições de Bretton Woods e em discursos
de ministros das Finanças sobre o orçamento, proporcionando uma
lógica para restringir o défice. Uma vez que o défice
orçamental é uma medida da capacidade do Estado para contrair
empréstimos adicionais, nele incorrer implica que o Estado está
"a viver acima dos seus meios", o que acabaria por provocar
aflições, tal como acontece com uma família.
Naturalmente faz-se aqui uma ligeira concessão. Desde que haja
crescimento da economia, a receita fiscal do Estado também continua a
aumentar, verifica-se um dado rácio entre o défice
orçamental e o Produto Interno Bruto a cada ano, isso ainda
mantém constante a dívida total do Estado em
relação ao PIB, desde que a taxa de juro sobre tal dívida
seja menor do que a taxa de crescimento da economia. Se, além disso, o
rácio do défice orçamental em relação ao PIB
for pequeno, então a dimensão da dívida do Estado em
relação ao PIB permanece administrável. Mas qualquer
défice orçamental que ultrapasse esta pequena dimensão
torna o rácio dívida-rendimento demasiado alto e portanto a
situação torna-se insustentável. É em cima de um
raciocínio como este que têm sido fixados limites em torno dos 3
por cento do PIB nos défices orçamentais.
Contudo, esta analogia entre a família e o Estado é completamente
errónea e na verdade perigosa, uma vez que o seu efeito é manter
o défice orçamental (e portanto a despesa do governo)
restringido, mesmo em situações em que há desemprego em
massa devido a uma deficiência da procura agregada. Por outras palavras,
os meios de vida de milhões de trabalhadores são sacrificados no
altar desta analogia errónea entre a família e o Estado.
A diferença entre a família e o Estado decorre do seguinte facto
elementar: a menos que o Estado financie o seu défice orçamental
pela contracção de empréstimos do exterior (a necessidade
disto decorrerá só se uma parte do aumento na procura agregada
devido a maior despesa governamental "escapar para fora" na forma de
maiores importações e mesmo assim tal "escapadela" pode
ser impedida através de restrições tarifárias e uma
maneira adequada de gasto governamental), esta contracção de
empréstimos é junto a pessoas dentro do país sobre as
quais ele tem direitos soberanos de tributação. No caso de a
dívida se tornar não administrável, ele sempre pode elevar
taxas fiscais internas a fim de reduzir a dimensão relativa da sua
dívida.
Isto é algo que uma família não pode fazer. Quando uma
família contrai empréstimos de outros, ela não tem
direitos soberanos sobre eles, ela não pode tomar-lhes recursos para
reduzir a dimensão da sua dívida. Mas isso não acontece
com o Estado, o qual pode aumentar impostos sobre os habitantes dentro da sua
jurisdição, tanto àqueles aos quais está endividado
como a outros que não estão.
Pode-se pensar que um défice orçamental não pode ser
financiado pela contracção de empréstimos junto aos
habitantes internos, uma vez que estes não teriam suficientes
"poupanças" para emprestar ao governo. Mas isto ignora
completamente o ponto principal, acerca de como funciona um défice
orçamental. Um défice orçamental (assumindo que os seus
efeitos não "escapam para fora" como
importações) gera procura agregada adicional e assim aumenta o
produto e o emprego, e portanto gera poupanças adicionais. De facto, ele
mantém o produto em crescimento até que as poupanças
adicionais que gera em mãos privadas (com dado investimento privado)
equalize exactamente a dimensão do défice orçamental. Um
défice orçamental portanto coloca em mãos privadas as
próprias poupanças que pede emprestadas; não há
possibilidade aqui de não haver poupanças suficientes em
mãos privadas para financiar o défice orçamental.
Dizer que um défice orçamental, ou seja, um empréstimo do
Estado para financiar despesas maiores, está numa base completamente
diferente do empréstimo das famílias, e que o Estado não
pode ser visto em pé de igualdade com uma família, não
significa que um défice orçamental seja a melhor forma de
financiar despesas governamentais. O problema de um défice
orçamental deveria ser claro precisamente pelo que foi dito acima: uma
vez que gera poupanças privadas adicionais (nomeadamente riqueza privada
adicional) igual a si próprio, e uma vez que as poupanças
são tipicamente feitas em grande medida pelas camadas mais abastadas da
sociedade, despesas governamentais financiadas por um défice
orçamental aumentam a desigualdade de riqueza. Se, ao invés de
tomar emprestado, o Estado realmente tributasse estas poupanças
adicionais, ou seja, se não tivesse um défice orçamental
mas equilibrasse o seu orçamento pela elevação de
impostos, então não haveria aumento da desigualdade de riqueza,
mesmo que não houvesse redução da riqueza privada em
comparação com a situação original.
Assim, se bem que a despesa pública financiada pelo défice
orçamental seja pior do que a despesa pública financiada por
impostos (por razões de distribuição da riqueza), é
melhor do que não haver qualquer despesa pública (em nome do
controle do défice orçamental), pois melhora, ao contrário
desta última, as condições de vida de milhões de
trabalhadores desempregados, proporcionando-lhes emprego.
Do mesmo modo, o facto de um défice orçamental ser visto com
desdém com base numa analogia entre o Estado e uma família em
matéria de empréstimos, não significa que esta seja a
verdadeira razão para se lhe opor. Dizer que a analogia está
errada não é suficiente para persuadir o capital financeiro
internacional a concordar com défices orçamentais maiores. A
verdadeira razão para a oposição reside no facto de que o
activismo directo do Estado em matéria de aumento da procura agregada,
contornando os capitalistas, mina a legitimidade social do capitalismo. O medo
de que isto aconteça faz com que as finanças utilizem esta falsa
mas aparentemente simples e persuasiva analogia entre o Estado e a
família para desencorajar as despesas do Estado. A analogia não
é a razão é o argumento ostensivo avançado
para justificar o inactivismo do Estado.
Mas isso não é tudo. Há um esforço deliberado feito
sob o neoliberalismo para realmente reduzir o Estado ao nível do
agregado familiar, de modo a que a falsa analogia se torne real ao longo do
tempo. Isto evidentemente é uma tendência geral sob o capitalismo
neoliberal. Negar a natureza soberana do Estado e tornar o Estado
indistinguível de qualquer outro agente económico, como uma
família ou uma empresa, é uma das principais
características do regime neoliberal.
Um sintoma disto é a comparação entre os sectores
público e privado em termos de lucratividade, com o objectivo de mostrar
que o sector público é inferior. O truque aqui reside no
próprio discursos que é adoptado, a suposição
implícita de que o papel do sector público não é
diferente daquele do sector privado, a qual significa que o Estado não
é diferente de qualquer entidade corporativa privada e deveria ser
julgado como tal. Tendo arrancado com esta suposição, o
esforço então é feito para forçar o sector
público a ser "lucrativo", geralmente pela
minimização do seu papel social. Dessa forma, bancos do sector
público são colocados sob pressão para se tornarem mais
lucrativos, razão pela qual eles começam a negar crédito a
sectores prioritários como a agricultura.
Analogamente pretende-se ignorar o papel fiscal soberano do Estado que
é, como vimos, o que distingue o Estado de uma família na tomada
de empréstimos , especialmente o seu papel de
tributação em relação ao sector privado. Um aumento
da receita dos impostos sobre as empresas, que é sobretudo o
necessário para reunir poupanças adicionais geradas pelo
défice orçamental, não pode ser obtido à vontade do
Estado. Isto acontece porque qualquer tributação maior do sector
corporativo privado é desaprovada pelo capital financeiro globalmente
móvel. Em suma, o Estado é levado a comportar-se como se fosse
tão indefeso em matéria de tomada empréstimos quanto uma
família.
Assim, o capitalismo neoliberal não se limita a desenhar uma falsa
analogia entre o Estado e outros agentes económicos, lavando o seu papel
soberano; ele insiste em que o Estado real adopte o carácter para ele
designado.
Assim, consequentemente, a luta contra o neoliberalismo deve ter na sua agenda
um renascimento da natureza soberana do Estado; mas para que isso
aconteça o Estado deve ter um carácter de classe diferente.
Descartar a hegemonia das finanças globalizadas exige um Estado baseado
no apoio de uma aliança de trabalhadores e camponeses e com
políticas públicas que dêem prioridade aos seus meios de
vida.
15/Agosto/2021
[*]
Economista, indiano, ver
Wikipedia
O original encontra-se em
peoplesdemocracy.in/2021/0815_pd/household-and-state
e em
mronline.org/2021/08/17/the-household-and-the-state/
. Tradução de JF.
Este artigo encontra-se em
https://resistir.info/
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