Um contraste inimaginável

Prabhat Patnaik [*]

Taxa média anual de crescimento da riqueza, 1995-2001.

Muito já foi escrito sobre o imenso aumento da desigualdade económica que se tem verificado ultimamente e vários números surpreendentes foram fornecidos por organismos como a Oxfam, que acaba de publicar um relatório intitulado A desigualdade mata. Este mostra que a riqueza dos 10 homens mais ricos duplicou desde o início da pandemia, ao passo que os rendimentos de 99 por cento da população do mundo são hoje mais baixos do que antes da pandemia. Estima-se que apenas 0,027 por cento da população mundial terá possuido uma riqueza somada de US$45 milhões de milhões (trillion) em 2020, o que é mais de 15 vezes o actual Produto Interno Bruto da Índia.

Alguns afirmaram mesmo que o mundo contemporâneo se caracteriza pelo mais alto nível de desigualdade económica jamais testemunhado na história humana (MR Online, Fev 12). Esta afirmação não é de modo algum implausível. Uma vez que todos os sistemas sociais necessitam de produção, e uma vez que aos produtores têm de ser dado algum nível mínimo de subsistência, há um piso ao qual mesmo os mais pobres devem ter acesso, não importa quão baixa seja o nível da sua produtividade laboral; e isto é verdade mesmo em sistemas sociais anteriores. Por outro lado, a fatia do excedente económico, que é a diferença entre a produtividade do trabalho e a taxa salarial dos trabalhadores produtivos, pode continuar a ascender à medida que a produtividade laboral aumenta com o desenvolvimento das forças produtivas. Como o capitalismo tem testemunhado o mais alto nível de desenvolvimento das forças produtivas até o presente, não deveria ser surpresa se a desigualdade económica sob o capitalismo, no sentido da fatia do excedente económico no produto, for hoje mais alta do que em qualquer outro momento anterior.

O argumento óbvio contra esta visão seria que, com o desenvolvimento das forças produtivas, haveria também um aumento da taxa de salários reais dos trabalhadores produtivos, de modo que a fatia do excedente económico e, consequentemente, o nível de desigualdade que tipicamente é uma resultante do mesmo, não precisa de aumentar sob o capitalismo em comparação com modos de produção anteriores. Mas se virmos o capitalismo no seu contexto internacional, onde provoca a desindustrialização na sua periferia e, consequentemente, acumula reservas maciças de mão-de-obra que mantêm os salários reais muito próximos de um nível de subsistência, apesar do aumento substancial da produtividade laboral, então segue-se que a desigualdade definida em termos da fatia do excedente no mundo como um todo seria muito mais elevada sob o capitalismo do que sob modos de produção anteriores, precisamente devido ao maior desenvolvimento das forças produtivas que ele introduz em comparação com os modos de produção anteriores.

Mas mesmo que a desigualdade neste sentido seja hoje maior do que em qualquer outro momento da história humana devido ao modo [de produção] capitalista, apenas três décadas atrás existiram sociedades onde a desigualdade era mais baixa do que nunca na história humana. Refiro-me, evidentemente, à União Soviética e aos outros países socialistas da Europa de Leste. Após o colapso do socialismo naqueles países, tornou-se moda falar deles como não sendo efectivamente diferentes a este respeito dos países capitalistas, com um "apparatchik" que vivia do excedente exactamente como o fazem os capitalistas. Mas esta tentativa de apagar as diferenças entre os dois sistemas sociais no que diz respeito à desigualdade é uma manobra ideológica desonesta, a qual é factualmente incorrecta; ao contrário, o contraste entre os dois sistemas em termos de desigualdade é simplesmente inimaginável.

Max Lawson, da Oxfam, cita Branko Milanovic, um economista de origem jugoslava, para mostrar que a desigualdade nas economias da Europa de Leste (embora ele utilize uma medida diferente da que usei acima) era muito menor nessa altura quando comparada com a Alemanha Ocidental, França ou Dinamarca, para não mencionar os EUA, onde, evidentemente, era muito maior. E esta menor desigualdade, segundo Milanovic, deve-se a pelo menos três factores. O primeiro foi a expropriação maciça de propriedade privada, especialmente a feudal, após a Revolução Bolchevique, e a sua distribuição entre os camponeses; uma redistribuição de terras semelhante foi levada a cabo em muitos outros países da Europa de Leste após a guerra. O segundo foi o facto de toda a gente ter acesso a educação e cuidados de saúde gratuitos. Todo estudante recebia não só educação gratuita como também um subsídio para estudar, e uma vez que não existiam faculdades e universidades privadas, todos recebiam a mesma educação e tinham as mesmas oportunidades de avançar; não se tratava de alguns estudantes, de origem dita "abastada", estarem melhor colocados em comparação com outros estudantes. E o terceiro factor era o emprego garantido; a toda a gente era assegurado um emprego, não havendo a questão de alguns permanecerem desempregados e constituírem um exército de trabalho de reserva, como acontece sob o capitalismo.

Estes factores, entretanto, embora importantes, não explicam plenamente a maior igualdade no socialismo. Eles têm de ser complementados pela própria lógica do sistema socialista que impedia qualquer aumento da desigualdade. O facto de a economia estar sempre em pleno emprego deu às antigas economias socialistas uma dinâmica que era fundamentalmente diferente da do capitalismo. Sob o capitalismo, a distribuição do rendimento é determinada separadamente e independentemente, através da negociação entre os trabalhadores e os capitalistas, na qual os trabalhadores são prejudicados pela existência do exército de reserva: quanto maior a dimensão relativa do exército de reserva: quanto maior o tamanho relativo do exército de reserva, menor é a fatia salarial que os trabalhadores podem obter através da sua negociação.

Estes, independentemente das fatias dos trabalhadores e dos capitalistas no produto, são a razão porque existem crises de sobreprodução no capitalismo. Se a fatia relativa dos trabalhadores, ou seja, o seu salário real dividido pela produtividade laboral, for, digamos, metade, e a capacidade total de produção da economia for 100, então 50 chegariam aos trabalhadores e 50 aos capitalistas se a capacidade plena de produção for alcançada. Os trabalhadores consomem mais ou menos o que recebem; mas se o consumo dos capitalistas (incluindo o consumo dos seus "acólitos") e o investimento, os quais são decididos de forma independente, somar apenas 40, então só 40 do excedente serão "realizados", e, uma vez que a fatia do excedente é a metade, os trabalhadores obterão 40 e não 50, e a produção total "realizada" será de 80. Isto significa que 20 da produção factível permanecerá não-produzida, e se a produtividade laboral for, digamos, 1, então mais 20 trabalhadores ficarão desempregados além daqueles que de qualquer forma estariam desempregados se 100 tivessem sido produzidos.

Numa economia socialista, no entanto, se a soma do investimento e consumo pelo pessoal do Estado, incluindo os gestores (não há capitalistas e, portanto, não há consumo de capitalistas) for de 40, então o produto ainda permanecerá em 100, nomeadamente ao nível da sua capacidade plena e o montante extra será simplesmente dado aos trabalhadores. A parte dos trabalhadores será ajustada para cima, de modo a que estes obtenham 60 através de uma queda nos preços em relação aos salários monetários. Por outras palavras, a fatia dos trabalhadores, em vez de ser dada independentemente, é ela própria flexível, ajustando-se sempre de modo a realizar a plena capacidade de produção.

Assim, enquanto uma economia capitalista tem desemprego caso a procura agregada seja insuficiente, uma economia socialista nunca tem procura agregada insuficiente porque a fatia dos salários se ajusta sempre para compensar qualquer possibilidade desse tipo. A fatia do excedente económico no produto pode, portanto, aumentar constantemente e, consequentemente, a fatia dos salários no produto pode cair constantemente só se o rácio investimento/produto ascender de modo constante. Mas mesmo em tal caso, uma vez que não existem capitalistas privados proprietários dos meios de produção, todo este aumento do excedente económico vai para o Estado e não há aumento de rendimento ou de desigualdade de riqueza entre indivíduos.

Assim, a própria lógica do funcionamento do sistema socialista foi tal que descartou qualquer crise de sobreprodução, qualquer desemprego e qualquer tendência em direcção ao crescimento da desigualdade de rendimento ou de riqueza entre indivíduos. Além disso, a transição para um sistema tão notavelmente igualitário a partir de um sistema anterior marcado pela desigualdade maciça, ocorreu num espaço de tempo muito curto. Como diz um dos interlocutores de Lawson: "Houve situações em que os pais eram analfabetos e os seus filhos tornaram-se professores universitários".

Algumas pessoas acreditam que não se pode ter criatividade numa sociedade caracterizada por uma igualdade substancial, pois tal igualdade minaria o incentivo. Mas este é um argumento falho, por duas razões óbvias. Primeiro, é míope acreditar que a mola mestra do esforço criativo reside apenas nos incentivos monetários. Por outras palavras, este argumento justifica uma ordem burguesa ao fazer suposições acerca da natureza humana que a limitam apenas ao que se testemunha dentro de uma ordem burguesa. E em segundo lugar, não considera a perda maciça de criatividade (independentemente dos custos humanos envolvidos) que se verifica quando a massa da população é mantida sem instrução, desempregada, com saúde precária e com carências nutricionais.

20/Fevereiro/2022

[*] Economista, indiano, ver Wikipedia

O original encontra-se em peoplesdemocracy.in/2022/0220_pd/unimaginable-contrast

Este artigo encontra-se em resistir.info

20/Fev/22