Boom do mercado de acções em meio à crise da economia real
Algo impar está a acontecer nos Estados Unidos. As mortes pelo
coronavírus continuam a crescer sem fim à vista. A economia
virtualmente entrou em colapso com mais de 40 milhões de pessoas
submetidas ao desemprego. Milhares estão nas ruas em protesto contra o
racismo desenfreado que marca aquela sociedade. As relações
com a China atingiram um nadir. No seu conjunto, como disse o filósofo
Cornel West, os EUA mostram todos os sinais de serem um "experimento
social fracassado". Mas ainda assim há um verdadeiro boom no
mercado estado-unidense de acções. O índice Nasdaq da
bolsa de valores aumentou em mais de 40 por cento desde 23 de Março e
está agora "a uma distância notável da maiores alturas
de todos os tempos", como disse um comentarista.
O mito de a bolsa de valores ser um barómetro da economia real foi
finalmente arruinado. Alguns contestariam isto com o argumento de que a
divergência entre os dois é apenas temporária e que, a
menos que a economia real se recupere, a "bolha" bolsista
estourará. Contudo, isto não leva em conta a especificidade da
economia neoliberal cuja característica central é a hegemonia da
finança.
Numa economia assim os défices orçamentais são mantidos
restringidos, bem como os impostos sobre os capitalistas, mesmo quando as
taxas fiscais anteriores sobre as corporações estão a ser
reduzidas. A política orçamental é portanto descartada
como instrumento para ultrapassar recessões e todo o ónus cai
sobre a política monetária. E a própria política
monetária deve funcionar de uma forma inteiramente nova.
O entendimento habitual dos manuais de política monetária
é que os seus vários instrumentos operam em última
análise pela redução do custo da contracção
de empréstimos pelas firmas. Isto torna valiosos projectos de
investimento que de outra forma seriam não lucrativos e, portanto,
aumenta o
nível de investimento o qual inclui equipamento e
construção. Da mesma forma, uma redução do custo da
contracção de empréstimos aumenta o consumo de bens de
consumo duradouros. Tudo junto, portanto, eleva o nível da procura
agregada e dessa forma o produto e o emprego.
Contudo, este caminho habitual quase não funciona sob o capitalismo
neoliberal. Mesmo no período anterior pode ser argumentado que apesar de
a disponibilidade de crédito ampliar o efeito de um aumento da procura
sobre o produto total (isto é, o valor do que é chamado de
"multiplicador"), isto dificilmente desempenhou um papel importante
para ocasionar o aumento inicial da própria procura, isto é, para
romper a tenaz da recessão. Isto acontece porque o investimento
é governado pela expectativa de crescimento do mercado e é pouco
afectado pelo custo do crédito. E mesmo a despesa do consumidor
não aumenta através de uma redução do custo do
crédito em meio a um desemprego generalizado, quando as pessoas
estão muito incertas acerca dos seus rendimentos futuros.
Às explicações de manual falta portanto substância.
Numa economia neoliberal a política monetária não
só funciona de forma totalmente diferente, se é que funciona de
alguma forma, como também os bancos centrais hoje em dia esperam que
funcione de modo diferente. E isto é feito através da
estimulação de bolhas de preços de activos. Por outras
palavras, ela opera não afectando directamente os fluxos, como dizem os
manuais, mas afectando os preços das acções e
através disso influenciando, se possível, a magnitude dos fluxos.
Quando Alan Greenspan era o governador do US Federal Reserve Board, ele reduziu
taxas de juros após o colapso da "bolha dot-com" e isto teve o
efeito, quer fosse pretendido ou não, de estimular a "bolha
habitacional" e dessa forma começar um novo boom. Desde
então isto se tornou a prática padrão e a política
monetária agora intervém directa e conscientemente em
vários meios de impulsionar o mercado de acções. Trata-se
naturalmente de um meio de promover os interesses da finança pela
dissociação da sua lucratividade em relação ao
estado da economia real
e de impedir qualquer colapso em mercados financeiros por causa das
dificuldades da economia real. Contudo, além disso é o
único meio disponível dentro de um regime neoliberal para
estimular a economia real, quando são descartados meios
orçamentais de fazer isso.
Por outras palavras, tudo isto representa o triunfo supremo do capital financeiro. A
oposição a qualquer estímulo orçamental obriga a
confiar exclusivamente na política monetária a fim de ressuscitar
a economia. E o único meio de a política monetária poder
funcionar de todo numa tal economia é pela geração de
bolhas no preço de activos, as quais são provocadas ao satisfazer
por todos os meios possíveis a sede de ganhos do capital financeiro.
Agora esta já é a política oficial do Fed nos EUA, a qual
deitou abaixo as taxas de juro para quase zero; manifestou sua
intenção de comprar não só títulos do
governo mas todos os passivos privados
("quantitative easing"
sem limites) e também do mercado, não apenas dos bancos. O Fed
mostrou sua disposição para conceder empréstimos
directamente a corporações mesmo para [atender] o seu serviço de
dívida; e virtualmente anunciou o seu desejo de intervir no mercado a fim de
impedir qualquer crash no preço das acções. Por outras
palavras, o Fed agora está desejoso de sustentar
ad infinitum
as condições do boom no mercado de acções. Se
alguém puder tomar emprestado à taxa virtualmente zero para
comprar acções cujo preço está mais ou menos
garantido que não caia abaixo de um certo nível, então por
que não deveria um tal personagem assim fazer? A política do Fed
equivale a uma dissociação total dos preços das
acções em relação à economia real:
mesmo se a economia real definhasse, isto não significaria um colapso de
preços das acções, porque a política do Fed estabelece
um piso abaixo do qual os preços das acções não
cairão.
Isto tem várias explicações. Em primeiro lugar, engendrar
um boom do mercado de acções na presente conjuntura dificilmente
terá qualquer efeito de estímulo à economia real. O
investimento, como vimos, está incapacitado por uma escassez de procura
agregada e o dinheiro barato, quase gratuito, pouco fará para induzir
firmas a aumentarem a sua capacidade. Além disso, se firmas contraem
empréstimos para o seu serviço de dívida, escalando
portanto suas dívidas, então tais firmas fortemente endividadas
dificilmente irão contrair ainda mais empréstimos para empreender
investimentos.
De forma análoga, famílias que já estão endividadas
dificilmente gastarão mais em consumo através da
contracção de empréstimos. A manutenção de
altos preços de acções pode na melhor das hipóteses
fazê-las manter níveis de consumo razoavelmente altos apesar do
desemprego elevado, mas não a consumir montantes cada vez maiores.
Portanto a economia real continuará a definhar apesar dos altos
preços das acções.
Assim, não há alternativa à política de promover a
procura agregada através de meios orçamentais a fim de
ultrapassar a elevada taxa de desemprego (mesmo que haja alguma
recuperação em relação aos actuais níveis
abissais quando o efeito do Covid-19 estiver ultrapassado). Na verdade, alguma
expansão orçamental verificou-se por causa da pandemia; mas isto
terá de continuar, mesmo quando a pandemia tiver acabado, para a
reanimação económica.
Em segundo lugar, uma tal posição política de
manter altos os preços das acções através da
política monetária mesmo quando a economia real continua a
definhar agora torna-se general por todo o mundo capitalista. Uma vez
que não é uma esquisitice do Fed e sim algo imanente ao regime da
hegemonia da finança, outros bancos centrais também
emularão o Fed no empenhamento em impedir qualquer colapso nos
preços das acções. Países do terceiro mundo como a
Índia estarão sob a compulsão de assim fazer porque
qualquer colapso no mercado de acções indiano provocará um
êxodo de capital financeiro o qual tornará muito mais
difícil a gestão da balança de pagamentos. Por outras
palavras, mesmo em países como a Índia a
intervenção do banco central, ao invés de ser limitada ao
mercado de divisas externas caso haja um fluxo de saída financeiro,
agora também abrange o mercado de acções.
No entanto, o que impedirá que uma tal política seja adoptada,
quer nos EUA quer em qualquer outro lugar, incluindo a Índia, é a
resistência do povo trabalhador. Uma situação em que a
política monetária é dedicada exclusivamente à
protecção dos interesses corporativos-financeiros enquanto os
trabalhadores continuam a sofrer com a elevada taxa de desemprego e a
penúria aguda será resistida por eles. A
reivindicação da intervenção do Estado
através de meios orçamentais, particularmente através de
maiores gastos do Estado Previdência
(welfare state)
a fim de aumentar a procura agregada e portanto o emprego, tornar-se-á
cada vez mais poderosa e generalizada.
Nos EUA e alhures, o povo já está nas ruas a exigir igualdade.
É só uma questão de tempo até que os trabalhadores
também na Índia tomem as ruas. O actual governo estará a
viver no paraíso dos tolos se acreditar que pode acarinhar interesses
corporativo-financeiros por muito tempo a expensas do povo.
21/Junho/2020
[*]
Economista, indiano, ver
Wikipedia
O original encontra-se em
peoplesdemocracy.in/2020/0621_pd/stock-market-boom-amidst-real-economy-crisis
. Tradução de JF.
Este artigo encontra-se em
http://resistir.info/
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