Anatomia da intervenção imperialista
O que está a acontecer na Venezuela de hoje proporciona uma
lição objectiva sobre a natureza da intervenção
imperialista em países do terceiro mundo na era do neoliberalismo. O
imperialismo ultimamente interveio de acordo com linhas semelhantes em outros
países latino-americanos, nomeadamente no Brasil, mas a Venezuela,
precisamente por causa da forte resistência que apresentou, mostra as
técnicas do imperialismo num contraste mais agudo.
Não há muito, a viragem à esquerda na América
Latina não apenas em Cuba, Bolívia e Venezuela mas também
no Brasil, Argentina, Equador e vários outros países onde regimes de
centro-esquerda chegaram ao poder e perseguiram políticas
redistributivas em favor dos trabalhadores pobres foram uma fonte de
inspiração para forças progressistas de todo o mundo.
Hoje, muitos destes regimes foram derrubados, não porque seus programas
e políticas tivessem perdido apoio popular, mas através de
maquinações vis nas quais os EUA desempenharam um papel
importante. Foram golpes de estado de uma nova espécie, diferentes dos
anteriores efectuados pelos EUA nos anos 50, 60 e 70; eles são
específicos da era do neoliberalismo.
Houve dois importantes factores que contribuíram para estes derrubes. Um
é o colapso dos termos de troca das
commodities
primárias na esteira da crise capitalista mundial. Países
latino-americanos, incluindo o Brasil, têm sido fortes exportadores
de matérias-primas e o movimento desfavorável dos termos de troca
deixou-os com receitas cambiais reduzidas para a compra das suas
importações essenciais. No caso da Venezuela, os preços
reduzidos do petróleo desempenharam este papel; além disso os
preços reduzidos do óleo também reduziram as receitas do
governo. A tentativa do governo de preservar os benefícios
redistributivos desfrutados pelos pobres diante do declínio das receitas
cambiais, ao invés de adoptar as medidas de "austeridade" que
as agências imperialistas advogam, provocou um surto de
inflação.
Isto indubitavelmente significou adversidade para os pobres. Mas estas
adversidades, deve-se notar, não foram por causa das
políticas;
elas foram causadas pela deterioração dos termos de troca. De
facto os pobres teriam sofrido muito mais no caso de uma política de
"austeridade" face a estas dificuldades do que sofreram pela
não-imposição de uma tal política de
"austeridade".
As dificuldades económicas da Venezuela foram infinitamente pioradas por
causa das sanções impostas pelos EUA, as quais impedem mesmo que
mercadorias essenciais como remédios para salvar vidas sejam importadas
livremente. E ultimamente os EUA mais uma vez escalaram sua guerra
económica contra a Venezuela através do congelamento dos activos
possuídos pelo Estado venezuelano, a companhia petrolífera nos
EUA, e através do anúncio de que todas as receitas das
exportações de petróleo venezuelano para os EUA não
serão entregues ao regime democraticamente eleito e constitucionalmente
legítimo do presidente Nicolas Maduro mas sim ao regime de Juan
Guaidó, o qual, com apoio dos EUA, simplesmente proclamou-se como o
presidente. Isto equivale literalmente a roubar o dinheiro da Venezuela para
encenar um golpe na própria Venezuela, um fenómeno que recorda a
era colonial quando os povos eram pilhados para financiar conquistas coloniais.
Tais roubos e sanções, não é preciso dizer, agravam
a miséria do povo da Venezuela e a culpa desta mesma miséria
é então atribuída ao governo Maduro a fim de voltar o povo
contra ele.
O segundo elemento que tem contribuído para o recente jogo do derrube
é o facto de que os EUA estão agora a se desvincular gradualmente
do envolvimento directo no Médio Oriente,
sem de qualquer forma abandonar seus desígnios imperiais ali.
E isto permite-lhe agora centrar-se mais sobre a América Latina.
As recentes tentativas de golpes dos EUA, das quais a Venezuela é um
exemplo clássico, diferem dos golpes que patrocinaram nas décadas
de 50, 60 e 70 em pelo menos seis modos óbvios e em conjunto constituem
um novo padrão.
O primeiro é que apesar de os golpes anteriores, seja no Irão ou
Guatemala ou Chile, terem sido contra governos eleitos democraticamente, e
terem desavergonhadamente instalado em sua substituição regimes
autoritários apoiados pelos EUA, são executados em nome da
democracia. No Brasil, Bolsonaro aparece como um presidente democraticamente
eleito; mas não só houve um golpe "parlamentar" contra
Dilma Rousseff como o líder político reconhecido como o mais
popular no país, o ex-presidente Lula do Partido dos Trabalhadores, foi
impedido de competir nas eleições presidenciais.
Da mesma forma na Venezuela, Juan Guaidó, o pretendente apoiado pelos
EUA, acontece ser o presidente da assembleia nacional e não apenas algum
homem forte militar. Por outras palavras, as forças políticas que
representam a velha ordem exploradora de supremacia branca estão a ser
directamente mobilizadas
em massa
pelos EUA nesta luta contra os regimes progressistas na América Latina.
Associado a isto está o fenómeno de protestos de rua em grande
escala e manifestações organizadas pelas forças apoiadas
pelos EUA, as quais afirmam estarem a defender a democracia muito embora sejam
arregimentadas contra governos democraticamente eleitos. Os golpes
contra-revolucionários, em suma, adquiriram um carácter de massa
ao invés de serem meros
putsches
militares, como era o caso anteriormente.
Em segundo lugar, estes levantamentos contra-revolucionários em massa
decorrem de dificuldades económicas enfrentadas pelo povo, muito embora
os governos progressistas não sejam responsáveis por estas
dificuldades e apesar de a maior parte das mesmas serem criadas através
de actividades deliberadas do próprio imperialismo dos EUA. Os golpes da
era anterior não tinham um carácter de massa, nem seguiam a
irrupção de quaisquer dificuldades económicas, nem mesmo
incomodavam-se a justificar-se invocando estas dificuldades. É verdade
que o governo do Dr. Cheddi Jagan, na Guiana, foi derrubado através do
desencadeamento de uma greve de camionistas que foi financiada pelo
imperialismo. Mas o que então era utilizado ocasionalmente, agora
é a nova norma.
Em terceiro lugar, as culpas pelas dificuldades económicas, embora em
grande medida criadas pelo próprio imperialismo, a acrescentar-se ao
funcionamento da economia capitalista mundial, são atribuídas
não só a governos progressistas, mas mais explicitamente
às suas políticas de esquerda. Dificuldades económicas
são atribuídas à nacionalização de recursos
minerais, à intervenção do Estado na economia, a
posições políticas anti-capitalistas e assim por diante. A
propaganda para o golpe, em suma, incorpora um ataque ideológico a
qualquer interferência no funcionamento da ordem neoliberal. Este ataque
ideológico é necessariamente difuso. Ele invoca conceitos como
"corrupção" e "incompetência": mas
estes são supostamente considerados como sinónimos da
interferência do Estado na ordem neoliberal.
Em quarto lugar, da mesma maneira, o golpe explicitamente argumenta em favor de
uma agenda que envolve a restauração da ordem neoliberal
pró corporações. Um plano para a
"Transição democrática" avançado na
Venezuela, por exemplo, esboça que o golpe incluirá: (i) A
reactivação do aparelho produtivo (pelo acesso a fundos do FMI);
(ii) A remoção de todos os controles, regulamentos e
"obstáculos burocráticos e medidas punitivas"; (iii) o
investimento internacional dentro de um quadro regulamentar que crie
confiança e protecção efectiva da propriedade privada;
(iv) Abertura ao investimento privado em empresas públicas; (v)
Aprovação de uma nova Lei dos Hidrocarbonetos que permitira ao
capital privado manter maiorias accionistas em projectos petrolíferos;
(vi) O sector privado será responsável pela
operação de empresas concessionárias de serviços
públicos; (vii) Eficiência a fim de reduzir a dimensão do
Estado.
Isto é uma agenda desavergonhadamente neoliberal; mas ela constitui o
programa do golpe. Uma tal mensagem clara de que o governo democraticamente
eleito deveria ser derrubado a fim de pressionar por uma agenda corporativa
nunca fora tão explícito anteriormente.
Em quinto lugar, os golpes actuais são efectuados com base no apoio de
todas as potências imperialistas, muito embora eles possam ser efectuados
pelos EUA. Portanto a União Europeia foi solicitada por Trump a que
reconhecesse o pretenso governo de Juan Guaidó como governo
legítimo da Venezuela e ela o fez. É um sinal dos tempos,
tanto pelo facto de que os próprios EUA não têm a mesma
força que tinham antes como pelo facto de que vivemos num mundo onde
rivalidades inter-imperialistas são postas em surdina, que a
cooperação dos outros é requerida pelos EUA mesmo quando
empreende uma acção imperialista.
E finalmente o caso da Venezuela mostra o importante papel que os media
estão agora desempenhar para amolecer os povos e levá-los a
aceitar que uma acção imperialista contra um governo do terceiro
mundo constitui uma defesa da democracia. Jornais como
The New York Times
têm estado a impulsionar esta linha.
Em suma, temos agora uma nova ordem mundial, em que igualar interesses
corporativos com democracia está a tornar-se um princípio aceite.
O povo venezuelano até agora tem permanecido firme contra o golpe
patrocinado pelos EUA; mas por causa disto os EUA estão agora a
ameaçá-lo com intervenção armada. Se a
intervenção armada acontecer, então será a primeira
acção assim em anos recentes contra um país soberano,
não com o argumento, não importa quão frágil, de
que apresenta uma ameaça à segurança dos EUA ou de que de
alguma forma prejudicou interesses dos EUA, mas simplesmente com o argumento de
que ousou afastar-se de um regime de neoliberalismo.
24/Fevereiro/2019
[*]
Economista, indiano, ver
Wikipedia
O original encontra-se em
peoplesdemocracy.in/2019/0224_pd/anatomy-imperialist-intervention
. Tradução de JF.
Este artigo encontra-se em
http://resistir.info/
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