A importância do "Económico"
Actualmente o mundo está a assistir a um fenómeno um tanto raro,
nomeadamente uma tendência difusa de levantes políticos por parte
da classe média urbana. Não apenas os líderes, mas mesmo o
grosso dos participantes em tais levantamentos são educados, são
razoavelmente prósperos e utilizam amplamente os
canais dos media sociais para se manterem em contacto uns com os outros.
É certo que levantamentos da classe média educada não
são novos; o movimento mundial de estudantes no fim dos anos sessenta
foi um exemplo clássico de um tal levantamento. Mas os actuais
levantamentos da classe média diferem do movimento de estudantes dos
anos sessenta em pelo menos três aspectos: primeiro, aquele movimento era
teoricamente inspirado pelo marxismo, embora correntes do marxismo algo
diferentes daquelas que foram assentes desde os dias do
Comitern
, e viam o capitalismo no centro das "estruturas" a que se opunham. Os
levantamentos contemporâneos da classe média, em contraste,
geralmente evitam teoria (alguns chegam a orgulhar-se deste facto), não
são motivados por qualquer desejo de derrubar o sistema capitalista e
podem mesmo considerar toda esta conversa de "capitalismo versus
socialismo" como irrelevante e ultrapassada.
Segundo, o movimento estudantil da década de 1960 via a necessidade de
forjar ligações com a classe trabalhadora para avançar sua
resistência às "estruturas" do capitalismo; e, por um
momento em França em Maio de 1968, ele chegou a ter êxito em
forjar tais ligações. Os presentes levantamentos da classe
média, no entanto, embora possam ser apoiados pela classe trabalhadora,
como no Egipto durante a "Primavera Árabe", permanecem
conscientemente como classe média.
E, terceiro, a resistência dos anos 1960 era em grande medida provocada
pela Guerra do Vietname, a qual punha a nu de maneira palpável a
natureza moralmente horrenda do capitalismo. Em contraste, às
motivações morais dos levantamentos da classe média de
hoje falta qualquer posicionamento específico ou claro. A sua repulsa
é dirigida contra uma ditadura nuns lugares (Tunísia, Egipto),
contra a "corrupção" em outros (Índia) e mesmo
contra o apoio do Estado ao campesinato em outro (Tailândia).
Alguém poderia tomar estes três exemplos como representativos de
três movimentos diferentes juntados [arbitrariamente] e portanto recusar
atribuir-lhes quaisquer características comuns de movimentos de classe
média. Mas eles têm algo em comum, não importa quanto
possamos admirar uns e lamentar outros; e isto consiste no facto de que todos
eles são difusos, receptivos a influências em
direcções diversas e diametralmente opostas (incluindo mesmo
algumas fascistas) e, portanto, são também sujeitos à
manipulação em geral (e não apenas fracções
particulares deles) por interesses corporativos e mesmo imperialistas.
QUESTÃO BÁSICA
Dizer tudo isto não é menosprezar tais levantamentos, mas
simplesmente enfatizar que, sem importar qual possa ser nossa atitude em
relação a cada um, este fenómeno é algo que nunca
foi visto antes. É um fenómeno
sui generis
e levanta de imediato uma questão básica para qualquer marxista.
A teoria marxista sustenta que os chamados estratos intermediários, quer
definidos como consistindo tanto pela classe média urbana como pela sua
equivalente rural, os camponeses médios e ricos, ou apenas pela classe
média urbana, é incapaz de exercer poder de Estado e, mais
geralmente, de estabelecer sua hegemonia no âmago da sociedade.
Será que o levantamento da classe média que hoje se está a
verificar em todo o mundo, e que recorda levantamentos de trabalhadores que
foram uma característica gritante de sociedades capitalistas não
há muito tempo, sugere que este entendimento marxista básico
precisa ser revisto? Será o actual activismo da classe média
precursor de uma nova época em que esta possa realmente emergir como a
classe política dominante em lugar tanto da classe capitalista como da
classe trabalhadora? Ou será o caso de o levantamento da classe
média actuar apenas como ponto de partida rumo a alguma coisa mais, seja
uma reconsolidação da hegemonia burguesa sob a liderança
da oligarquia corporativo-financeira (se esta hegemonia for de algum modo
desafiada em alguma forma específica existente), ou uma
transição para um desafio mais básico ao sistema
através da formação de uma aliança
trabalhadores-camponeses-classe média? E se há um tal arranjo
transicional então o que determina a direcção da sua
transição, isto é, para onde exactamente estaria a
transitar?
Certamente esta questão habitualmente não é de modo algum
discutida desta maneira, porque mesmo no caso dos levantamentos mais
progressistas conduzidos pela classe média, tais como os da
"Primavera Árabe" (isto é, onde o levantamento da
classe média não é perceptivelmente promovido ou pelo
imperialismo ou por interesses corporativos-financeiros internos, mas é
visto mesmo como uma ameaça potencial a estes), a discussão
invariavelmente permanece confinada à questão
"democracia-versus-ditadura", a qual é importante mas
insuficiente. "Democracia", a qual em si própria tem diversos
matizes, é uma forma de domínio de classe. E que matiz de
"democracia" é alcançado através destes
levantamentos, ou se eles de algum modo tiverem êxito em alcançar
qualquer forma de democracia, dependem da espécie de hegemonia de classe
que os conduziu. Portanto a questão real é a que espécie
de hegemonia de classe estes levantamentos da classe média podem
conduzir. E a resposta a esta pergunta tem de ser procurada no âmago da
"teoria económica"
("economic").
A razão porque a classe média (ou a pequena burguesia) nunca
poderá adquirir hegemonia é porque lhe falta agenda
económica coerente. Ela pode ter no melhor dos casos um desejo
nostálgico de alguma forma passada de organização social,
mas nenhuma agenda concreta para o futuro. Mesmo os slogans que se ouvem
frequentemente nos levantamentos da classe média de hoje, tais como
libertar a sociedade da "corrupção" e do
"capitalismo de compadrio"
("crony capitalism"),
ou "redução da desigualdade em riqueza e rendimentos",
nunca trata da questão: qual é a forma de
organização social dentro da qual todas estas
"melhorias" devem ocorrer? E este facto faz com que todas estas
sugestões de "melhoria" da sociedade sejam meras
auto-ilusões, por duas razões óbvias.
A primeira razão é que o capitalismo é um sistema
"espontâneo", o qual tem uma lógica interna sua e
é por ela conduzido. Interferir com aquela lógica necessariamente
implica que tal interferência tenha de ser transferida para diante, pois
"uma coisa leva a uma outra". Por exemplo: se desigualdades de
riqueza forem reduzidas através de uma tributação da
riqueza, então os capitalistas reduzirão seus planos de
investimento, precipitando desemprego em massa e uma crise. O que será a
resposta do Estado que a princípio impôs a
Tributação da Riqueza, diante de tal situação, se
não simplesmente sucumbir a isto pela retirada do imposto? Será
que ele arrancará então com unidades do sector público
para compensar a escassez de investimento provocada pela perda de
"confiança" dos capitalistas?
Em suma, qualquer grande interferência no funcionamento do capitalismo
não pode ser fragmentar. Ela terá de ser sustentada
através de nova interferência de um modo recursivo e isto
necessariamente terá de ir em frente até que o próprio
sistema seja transcendido; ou alternativamente a grande interferência
original tenha sido revertida. Os levantamentos da classe media não
enfrentam este problema (nem mesmo estão em medida de desafiar esta
concepção). Eles não tratam disto porque nem mesmo se
impõem a tarefa de formular qualquer agenda económica coerente.
A segunda razão é que vivemos numa era de capital
"globalizado", quando o capitalismo atingiu uma etapa em que o
processo de centralização de capital deu origem à
formação de um capital financeiro internacional. O Estado,
contudo, mesmo quando tem uma forma democrática, permanece um
Estado-nação. Portanto, nesta situação, utilizar o
Estado-nação para interferir no funcionamento do capital
globalizado torna-se particularmente difícil, o que se soma ao problema
mencionado acima da interferência no funcionamento do capital
per se.
O activismo da classe média de modo algum se coloca esta questão
porque lhe falta qualquer agenda económica para além de desejos
meramente piedosos.
FALTA DE AGENDA ECONÓMICA
Precisamente porque lhe falta qualquer agenda económica, e qualquer
perspectiva concreta sobre como "interferir" no funcionamento do
capitalismo e como executar esta "interferência", mas ao
invés restringem seus desejos apenas a algumas medidas
fragmentárias, na melhor das hipóteses, ou na expectativa
totalmente injustificável de que o sistema simplesmente aceitará
tais medidas sem protesto ou oposição, ele também acaba
finalmente por ser assimilado pelo sistema. Mesmo na sua
encarnação mais favorável ao povo, e mesmo quando procura
alcançar algum êxito político, este êxito permanece
apenas temporário. Sem atacar, com uma estratégia apropriada que
inclua uma agenda económica concreta, a hegemonia da oligarquia
corporativo-financeira (a qual está integrada ao capital financeiro
internacional) sobre a economia, é forçado a aceitar ou o
abandono da democracia ou de matizes da "democracia" que são
"adequadamente" debilitados pela tal hegemonia corporativa.
Vamos deixar de lado aqueles levantamentos da classe média que
são promovidos pelo imperialismo e pelas oligarquias corporativas
internas e que acontecem sob nomes como a "revolução
laranja" ou a "
revolução das tulipas
". Mesmo onde
os levantamentos da classe média foram pró povo e quiseram
estabelecer democracia contra implacáveis ditaduras apoiadas pelo
imperialismo, como no Médio Oriente e alhures, o seu triunfo geralmente
teve vida curta, não porque quaisquer destes triunfos incorresse no
risco da vida curta, mas devido às suas próprias
limitações estruturais internas, a saber, a ausência de
qualquer programa económico concreto que combinassem com as
mudanças políticas que eles desejavam anunciar.
Segue-se que os levantamentos da classe média, se desejarem sinceramente
fazer alguma diferenças para as vidas do povo, têm de enfrentar a
hegemonia da oligarquia corporativa-financeira através de uma agenda
económica concreta, a qual pode então constituir a base de uma
aliança trabalhadores-classe média-camponeses (afim à
velha "aliança operário-camponesa"). Uma tal agenda,
mesmo quando está confinada a medidas "Estado
Providência"
("Welfare State"),
se permanecer autêntica, necessariamente terá de tomar passos
recursivos que levam ao rumo de uma transcendência do capitalismo,
exactamente como Marx fundamentou.
Dizer que não há nada que vá para além de Marx
não é deificá-lo, mas simplesmente enfatizar que ele
descobriu certas verdades essenciais acerca do capitalismo as quais permanecem
válidas enquanto o sistema perdurar. Fechar os olhos a estas verdades,
como tendem a fazer os levantamentos da classe média, mina projectos que
se pretendam de algum modo emancipatórios; não leva a qualquer
abertura de novo terreno. Na verdade, o marxismo tem sempre de ser desenvolvido
a fim de estar à altura de novas situações, mas este
desenvolvimento deve necessariamente basear-se sobre certas verdades acerca do
capitalismo descobertas por Marx.
30/Novembro/2014
[*]
Economista, indiano, ver
Wikipedia
O original encontra-se em
peoplesdemocracy.in/2014/1130_pd/importance-%E2%80%9Ceconomic%E2%80%9D
Este artigo encontra-se em
http://resistir.info/
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