Como a definição cambiante de petróleo tem enganado tanto o público como os decisores políticos

por Kurt Cobb [*]

. Toda a gente sabe que a produção mundial de petróleo este ano tem oscilado entre os 88 e os 89 milhões de barris por dia (mi.b/d) porque fontes do governo, da indústria e dos media nos dizem isso. Mas, como se revela, o que toda a gente sabe está errado.

Está errado não porque os números citados acima não possam ser encontrados em fontes oficiais. Está errado porque os números incluem coisas que não são petróleo, tais como líquidos de gás natural e biocombustíveis. Se se eliminarem estas outras coisas, então a produção mundial de petróleo este ano tem estado em torno dos 75 mi.b/d . A principal coisa que é preciso saber acerca da taxa mundial de produção só de petróleo bruto é que desde 2005 ela tem estado fincada entre os 71 e os 75 mi.b/d (calculados numa base mensal) . E que isto já tem enormes efeitos negativos sobre a economia e a sociedade mundial através dos altos preços de energia que são parcialmente responsáveis pela nossa estagnação económica actual.

Mas como a produção de líquidos de gás natural tem crescido um tanto mais rapidamente devido à recente perfuração intensiva em busca de gás natural e como aqueles líquidos são enganosamente agregados à oferta de petróleo, tem sido dada às pessoas a impressão errada de que a produção mundial de petróleo continua a crescer. Não é verdade! O que está a crescer é uma categoria chamada "total de líquidos" a qual abrange petróleo, líquidos de gás natural, biocombustíveis e alguns outros combustíveis menos importantes. O total de líquidos está a crescer apenas devido a grandes ganhos em líquidos de gás natural e ganhos menores em biocombustíveis. Eis porque é tão importante entender o que são líquidos de gás natural.

Mas em primeiro lugar, uma questão importante. Por que os responsáveis do governo e da indústria, analistas de petróleo e repórteres de energia igualam total de líquidos e oferta total de petróleo? (discutirei posteriormente alguns dos não tão agradáveis motivos por trás desta afirmação.) Num relatório recente a U.S. Energy Information Administration colocou o assunto desta forma: "A expressão "combustíveis líquidos" abrange petróleo e produtos de petróleo e substitutos próximos, incluindo óleo bruto, condensados de campo ou de instalações (lease condensate), líquidos de instalações de gás natural, biocombustíveis, transformação de carvão em líquidos (coal-to-liquids), transformação de gás em líquidos (gas-to-liquids) e ganhos de processamento de refinarias". Vamos ver porque esta adopção dos "substitutos próximos" é demonstravelmente falsa no que se refere à maior parte dos líquidos de instalações de gás natural e decididamente hipócrita (disingenuous) no que se refere a biocombustíveis.

Primeiro, petróleo bruto é aquilo que você pensa que é. É um líquido negro, rico e hidrocarbonetos que emerge de reservatórios subterrâneos. Ele também pode ser fabricado sinteticamente de outros hidrocarbonetos tais como o betume encontrado nas areias betuminosas do Canadá. O petróleo também inclui alguma coisa chamada condensados de campo que se refere aos hidrocarbonetos leves que frequentemente aparecem em reservatórios de petróleo. Eles são gasosos no ambiente de alta temperatura do reservatório, mas condensam-se em líquidos quando escapam para o poço e são capturados por equipamento especial no local da extracção. Estes condensados tornam-se parte do fluxo de petróleo bruto. Eles são altamente valorizados por causa da facilidade em refiná-los, embora dêem apenas uma pequena contribuição para a oferta mundial de petróleo.

Mas o que são líquidos de instalações de gás natural e serão eles bons substitutos para petróleo? Infelizmente, reina a confusão porque uma expressão muito semelhante mas mais restrita, líquidos de gás natural (natural gas liquids, NGL), inclui condensados de campo, já discutidos acima e que sabemos estarem incluídos no fluxo de petróleo bruto. Habitualmente, quando as pessoas se referem ao NGL, o que elas realmente querem dizer é líquidos de instalações de gás natural (natural gas plant liquids, NGPL).

Os NGPL são outros hidrocarbonetos além do metano que são separados do gás natural primário numa instalação de processamento. Eles incluem etano, propano, butano e pentano. As quantidades variam. Exemplo: o gás natural bruto (raw gas) extraído da costa da Malásia contém 11% de etano, 5% de propano, 2% de butano e cerca de 2% de algo chamado gasolina natural ou gás condensado (drip gas) , um combustível com poucos octanos que hoje é utilizado primariamente como solvente. O gás natural bruto do North Slope do Alasca contém uma percentagem mais alta de metano e consequentemente percentagens mais pequenas de etano (7%), propano (4%), butano (1%) e outros componentes incluindo dióxido de carbono e pentanos (2%). Nestes dois casos pode-se ver que o etano constitui cerca da metade do NGPL, o propano cerca de um quarto, o butano 10% do NGPL malásio e 7% do NGPL do Alasca.

Então, para que serve o etano? Sua utilização principal é como matéria-prima para a produção de etileno, um produto químico de uso amplo. O polietileno é o plástico mais amplamente utilizado no mundo e encontrado em coisas como filme de empacotamento e sacos de lixo. Outros processos transformam o etileno em anti-congelante automotivo. Outros ainda o transformam em polistireno o qual é utilizado em isolamento e embalagens. Algum etano permanece no gás natural canalizado para as nossas casas e fábricas, mas não muito. Até agora, é difícil ver como o etano, o mais abundante dos NGPLs, é um bom substituto para produtos combustíveis líquidos baseados no petróleo.

E quanto ao propano? Toda a gente conhece a utilização do propano em churrascos familiares e fogões de campismo. Também é utilizado para aquecimento em habitações rurais. Além disso, a Green Truck Association informa que há 270 mil veículos movidos a propano nos Estados Unidos. Isto é cerca de um décimo de um por cento dos cerca de 250 milhões de veículos registados no país. Alguns afirmam que 17,5 milhões de veículos no mundo são movidos a propano. Se for verdade, isso seria cerca de 1,7% dos mil milhões de veículos do parque mundial. Sim, o propano é um substituto viável para combustíveis baseados no petróleo nos transportes. Mas um bocado mais de veículos teria de ser convertido para propano a fim de que essa substituição fosse significativa. E nesse caso há um tecto sobre quanto propano poderia realmente ser disponibilizado porque, como vimos, ele representa apenas 4 a 5 por cento de toda a produção de gás natural bruto.

Na medida em que o propano desloca o óleo de aquecimento, ele é um bom substituto do petróleo. Mas, mais uma vez, seus limites de produção impedem-no de ser uma panaceia. Naturalmente, o próprio gás natural é muitas vezes um substituto do óleo de aquecimento, especialmente devido ao seu baixo custo comparativo. Assim, pode haver um limitado efeito de substituição quando a infraestrutura de gás natural é viável.

E acerca do butano? Todos reconhecem que o butano é o combustível para isqueiros. Quando é misturado com propano, é chamado gás de petróleo liquefeito ou GPL o qual é utilizado para aquecimento ambiente. Também é utilizado como propelente em sprays aerosóis. Mas ninguém pode colocar butano num veículo. Não é um combustível líquido adequado para o transporte. Suponho que alguém poderia dizer que temos de utilizar petróleo para fabricar isqueiros se não tivéssemos butano. Não estou certo de que seja um bom arranque para uma política de energia inteligente baseada no papel central do petróleo na civilização global.

Os pentanos têm utilizações industriais e de laboratório, mas não são utilizados como combustível líquido. A agregação ao NGPL como oferta de petróleo não é muito forte. De facto, uma vez que pouca substituição é possível e o crescimento de substitutos que está disponível é limitado, a fusão do NGPL com o petróleo parece mais como um gesto para salvar as partes por parte daqueles que têm estado sistematicamente errados acerca dos abastecimento e dos preços do petróleo durante a última década. E parece ser um movimento de desespero por parte de uma indústria que nos últimos anos está a ter grande dificuldade em repor suas reservas de petróleo . Se os investidores forem tomados pela ideia de que agora as companhias de petróleo são essencialmente empresas em auto-liquidação, as avaliações das mesmas seriam cortadas drasticamente. E isso, naturalmente, significa que opções e haveres em acções para os executivos de topo seriam arrasados assim como as posições mantidas pelos grandes investidores.

O NGPL actualmente constitui cerca de 9 milhões de b/d dos chamados total de líquidos. Os bicombustíveis, alguns líquidos do carvão e uma minúscula quantidade de líquidos do gás (natural) constituem outros 2 milhões de b/d. A transformação de carvão em combustíveis líquidos para veículos agora se faz principalmente na África do Sul, uma relíquia dos dias do apartheid quando o governo sul-africano temia um embargo petrolífero que podia deixar o país sem combustível para os transportes. Transformar carvão em gasolina e diesel é um processo extremamente sujo e extremamente caro. Mas a África do Sul pagou pelo equipamento para fazer isso há muito tempo atrás e agora deve simplesmente pagar pelo carvão interno para abastecer suas refinarias de carvão para líquidos. Só uma quantidade relativamente pequena de gás natural está a ser transformada quimicamente em combustíveis líquidos, principalmente gasóleo. O processo é caro e capital intensivo, considerado adequado só para converter gás natural que de outra forma seria queimado em tocha.

Quanto aos biocombustíveis, a América já está a aproximar-se do limite da sua capacidade de absorver a oferta de etanol. A maior parte dos carros pode andar só com uma mistura de 10%. Acima disso, na grande maioria dos veículos, partes do motor começam a degradar-se. Naturalmente, podíamos continuar a aumentar a capacidade dos automóveis para queimar etanol. Mas o problema da escala é o factor decisivo. Na América do Norte seriam precisos 1,8 mil milhões de acres [728,4 milhões de hectares] para plantar bastante milho a fim de fornecer suficiente etanol para movimentar a sua frota de veículos . Isso representa quatro vezes e meia a quantidade de terra arável disponível. E, além disso, o etanol do milho gasta mais energia para produzir do que a energia que proporciona. Ele não é uma fonte de energia, quando muito um portador de energia. Limitações semelhantes aplicam-se ao biodiesel, o qual é fabricado a partir de óleos vegetais. O volume remanescente da produção total de líquidos, cerca de 2 milhões de b/d, é o que se chama ganho de refinaria. Dito simplesmente, o volume total de petróleo bruto aumenta uma vez decomposto nas suas várias fracções. Isto não é uma fonte de petróleo, mas antes uma consequência dos gastos energéticos para refiná-lo.

Mesmo quando são considerados produtos não-petrolíferos, o total de líquidos mal se moveu – apenas 3,5% para todo o período de 2005 a 2011. Mesmo se estes líquidos fossem intercambiáveis com o petróleo, eles estariam a fazer muito pouco progresso na sua substituição.

OFERTA ESTÁ A ESTAGNAR

Mas como poucos dos produtos não petrolíferos agora a serem agregados à oferta são substitutos genuínos e como alguns têm graves limitações quanto ao volume que poderiam proporcionar, deveríamos considerar a verdade acerca do petróleo. Sua oferta está a estagnar o que explica os preços recordes dos últimos anos. E a promessa de que altos preços trariam abundantes novas ofertas demonstrou-se ser nada mais do que lavagem cerebral.

As limitações na oferta de petróleo agora estão sobre nós. A questão importante é a da taxa de produção, não a dos recursos supostamente enormes que optimistas possam elucubrar nas suas imaginações – e está a ficar cada vez mais difícil extrair da crusta da Terra a quantidade diária de petróleo que desejamos. Nós extraímos primeiro o que era fácil. Não podemos agora esperar extrair o difícil às mesmas taxas do petróleo fácil. E, tão pouco, não podemos esperar que a percentagem total de recuperações dos reservatórios mais pequenas, mais complexos e mais desafiantes que agora somos forçados a explorar venha a ser tão alta como aquela que obtínhamos no passado dos reservatórios grandes, simples e fáceis.

Enfrentar esta realidade será difícil porque exigirá muitas mudanças no nosso pensamento e na nossa sociedade. E exigiria a rebaixa imediata do valor de uma das maiores e mais poderosas indústrias do mundo porque ela agora está diante da contracção no futuro não muito distante. Não é de admirar que forças poderosas estejam decididas a mudar a definição de petróleo ao invés de aceitar a realidade.

NT: Nas traduções, sempre que possível, foram utilizadas expressões indicadas em:
  • Multilingual Dictionary of the Gas Industry, IGU, Vulkan-Verlag, Essen, 1997, 782 p. (embora o mesmo não inclua o português entre as dez línguas que apresenta).
  • António Correia de Pinho, Glossary of Useful Oil Field Terms Expressions – Abbreviations – Symbols, Junta de Investigações do Ultramar, Lisboa, 1972, 121 p.

    Ver também:
  • A centralidade ignorada do Pico Petrolífero

    [*] Colaborador permanente do Scitizen , sítio web de ciência com sede em Paris. Autor do romance Prelude . Seu trabalho também tem sido publicado em Energy Bulletin, The Oil Drum, 321energy, Common Dreams, Le Monde Diplomatique, EV World e muitos outros sítios. Seu sítio web é Resource Insights .

    O original encontra-se em Peak Oil Review , 16/Julho/2012


    Este artigo encontra-se em http://resistir.info/ .
  • 20/Jul/12