A doutrina Blair: sangue e dinheiro
por John Pilger
Em 17 de Outubro o presidente Bush assinou um diploma a legalizar a tortura e o
rapto e efectivamente revogou a Carta de Direitos
(Bill of Rights)
e o habeas corpus. Agora a CIA pode legalmente sequestrar pessoas e
transportá-las para prisões secretas em países onde elas
provavelmente serão torturadas. A prova extraída sob tortura
agora é admissível em 'comissões militares'; pessoas
podem ser sentenciadas à morte com base no testemunho de pessoas
espancadas. Agora você é culpado antes mesmo de a culpa ser
confirmada. E você é um "terrorista" se cometer o que
George Orwell, em 1984, chamou "crimes de pensamento". Bush
ressuscitou as prerrogativas dos monarcas Tudor e Stuart: o poder da
ilegalidade irrestrita. "A América pode estar orgulhosa",
disse o senador Lindsey Graham, um dos promotores desta lei, que se levantou
com outros congressistas, a aplaudir quando Bush com a sua assinatura anulou a
constituição e a essência da democracia americana.
O significado histórico disto mal foi reconhecido na
Grã-Bretanha, a fonte destes antigos direitos agora abandonados, sem
dúvida porque a mesma lei dos bárbaros está a ter acolhida
aqui. O grande crime do Iraque é um tsunami moral que deixou os
vassalos do New Labour a debaterem-se e a berrar suas inversões
desesperadas da verdade enquanto aguardam o resgate da parte de Washington.
"A um nível ideológico mais profundo", escreveu o
historiador americano Alfred McCoy, "[o que está a acontecer]
é uma competição do poder contra a justiça ...
Encarado historicamente, é um combate sobre princípios
fundamentais que remontam a aproximadamente 400 anos". Não
há muito tempo, entrevistei Dianna Ortiz, uma freira americana torturada
por um esquadrão da morte guatemalteco cujo líder ela identificou
como um compatriota americano. Isto foi no tempo de Ronald Reagan, que foi
tão assassino na América Central quanto Bush no Médio
Oriente. "Você não pode clamar seu uma democracia se pratica
ou tolera a tortura", afirmou ela. "É o teste
definitivo".
Os Estados Unidos prometiam uma democracia quando em 1964 o Civil Rights Act
tornou-se lei e quando, no ano seguinte, o Voting Rights Act acabou finalmente
com a escravidão. Durante a década seguinte, o movimento dos
direitos civis juntou-se ao grande movimento popular para terminar a
carnificina no Vietnam, e o Congresso legislou no sentido de restringir o poder
paralelo secreto da CIA. Foi um interlúdio passageiro. Sob Reagan,
perversamente, foi restaurada a mitologia da democracia americana e do
"orgulho", quando o seu executivo corrupto ateou uma guerra ilegal na
empobrecida América Central, provocando centenas de milhares de mortes,
classificada pelas Nações Unidas como genocídio. Os
Estados Unidos tornaram-se o único país desde sempre a ter sido
condenado pelo Tribunal Internacional de Justiça por terrorismo (contra
a Nicarágua). "Deixe de asneiras", disse um antigo
responsável sénior da CIA. "O que importa são os
interesses da nossa segurança nacional, okay?"
"Segurança nacional" é o eufemismo para a palavra
proibida, imperialismo, cujo poder despótico acelerou-se sob George W.
Bush. A assinatura de decretos presidenciais secretos que podem subverter a
escassa oposição de um Congresso normalmente indiferente
são agora prática normal, juntamente com um conjunto de
prisões secretas, descritas aprovadoramente por Bush como "o
programa da CIA". Os Estados Unidos são hoje uma extensão
do totalitarismo que há muito procura impor no exterior. Esta verdade
intragável não é declarada, naturalmente. Apesar das suas
actuais "dificuldades" no Iraque, a propaganda corporativa continua
ao lado de Bush. A procura por uma "saída estratégica"
pode produzir manchetes "embaraçosas", mas o saqueio
deliberado e sistemático de milhares de milhões de dólares
dos recursos do Iraque tem sido tranquilamente cumprido, com uns US$ 20 mil
milhões "a faltarem". O mesmo silêncio aplica-se
à guerra interna de classe e de raça, quando a gang de Bush chuta
para longe a escada que outrora conduzia à classe média
americana. Em Janeiro último, 25 mil pessoas candidatavam-se a 325
empregos num Wal-Mart em Chicago.
Os direitos constitucionais são mitos americanos formidáveis. A
imprensa americana é muitas vezes apresentada como a que tem o discurso
constitucionalmente mais livre da terra; e assim é, teoricamente. Mas
durante todo período da repressão interna a imprensa e o
jornalismo radiotelevisivo desempenharam um papel aquiescente, apoiando guerras
imperiais, afundando nas mentiras do "caçador de vermelhos"
Joe McCarthy, promovendo falsos debates acerca de falsas ameaças (Cuba,
Nicarágua, a corrida às armas nucleares) e o superculto do
"anti-comunismo". As mentiras de Bush sobre o Iraque e o
Afeganistão foram simplesmente ampliadas e promovidas. Seymour Hersh e
um punhado de outros destacam-se como excepções honrosas.
Em 1991, no fim da carnificina unilateral conhecida como Guerra do Golfo, o
celebrado apresentador de TV americano Dan Rather disse à sua
audiência nacional que "Há uma coisa com a qual todos
nós podemos concordar. É o heroísmo dos 148 americanos
que deram as suas vidas para que a liberdade pudesse viver". "De
facto, um quarto deles haviam sido mortos por outros americanos. A maior parte
das baixas britânicas verificaram-se pelo mesmo "fogo amigo".
Além disso, glorificações oficiais a descreverem como os
americanos haviam morrido heroicamente em combate corpo a corpo eram falsas.
As centenas de milhares de iraquianos que morreram durante e em
consequência daquela "guerra" permanecem não
mencionáveis tal como as centenas de milhares que morreram em
resultado do embargo ao longo de uma década; tal como as 655 mil
"mortes em excesso" de iraquianos desde a invasão de 2003.
A guerra à democracia tem sido exportada com êxito. Na
Grã-Bretanha e em outros países ocidentais, tais como a
Austrália, o jornalismo e o mundo académico tem sido
sistematicamente apropriado como o administrador de classe da nova ordem, e as
ideias democráticas foram esvaziadas e reformuladas, para além de
todo reconhecimento. Ao contrário da década de 1930, há
um silêncio dos escritores, com Harold Pinter quase como a única
voz a levantar-se na Grã-Bretanha. Os promotores de uma forma de
capitalismo conhecida como neoliberalismo, o superculto responsável
pelas maiores desigualdades da história, são descritos como
"reformadores" e "revolucionários". A nobre palavra
"liberdade" refere-se agora ao direito divino deste extremismo
"prevalecer", o jargão para domínio e controle. Este
vocabulário, que contamina os noticiários e os pronunciamentos do
estado e da sua burocracia, é do mesmo dicionário do
arbeit macht frei
o trabalho torna-o livre as palavras inscritas sobre
os portões em Auschwitz.
Para os britânicos sob Blair, o resultado desta falsa democracia tem sido
catastrófico. Mesmo se a convergência dos partidos Trabalhista e
Conservador fosse historicamente inevitável, Tony Blair foi a mais
extrema figura política britânica de que se tem memória,
aquele que regrediu a Grã-Bretanha à época da
violência a tempo inteiro, ao papel imperial, convertendo a
noção ficcional do "choque de
civilizações" numa possibilidade real. Blair destruiu o
poder do parlamento e politizou aquelas secções do serviço
público e dos serviços de segurança e inteligência
que se consideravam imparciais. Ele é presidente da
Grã-Bretanha, faltando apenas os berros do "Hail Chefe".
Instalado no poder por pouco mais de um quinto da população
eleitora, ele é o mais não democraticamente eleito líder
da história britânica. Inquéritos após
inquéritos contam-nos também que é o mais insultado.
Sob o presidente Blair, o parlamento tornou-se como o Congresso sob Bush: uma
inutilidade, uma loja de covardes que em dois anos e meio só duas vezes
debateu o Iraque. Com uma importante excepção, medidas
regressivas umas após as outras têm sido aprovadas ali: desde o
Criminal Justice Act 2003 até o Prevention of Terrorism Act 2005, com
suas sentenças obrigatórias e prisões domiciliares
("ordens de controle"). Uma "lei para abolir o
parlamento", como a aparentemente inócua Legislative and Regulatory
Reform Bill 2006 já pode ser conhecida, com a remoção da
legislação do governo removida do escrutínio parlamentar,
dando aos ministros poderes arbitrários e à Downing Street o
poder absoluto de decretar. Não houve debate público. Como
é irónico que a lei tenha sido travada na Casa dos Lordes a qual,
juntamente com o judiciário, constitui hoje a leal
oposição.
Em 2003 Blair trabalhou a prerrogativa real secreta Orders in Council
a fim de ordenar um ataque não provocado e ilegal a um
país indefeso, o Iraque. No ano seguinte ele utilizou os mesmos poderes
arcaicos para impedir os ilhéus de Chagos de retornarem à sua
pátria, da qual foram expulsos secretamente de modo a que os americanos
pudesse construir uma enorme base militar ali. Em Maio último, o
Supremo Tribunal descreveu o tratamento destes cidadãos britânicos
como "repugnante, ilegal e irracional".
Em 16 de Outubro de 2005, Bush afirmou que a al-Qaeda procurava
"estabelecer um império radical islâmico que abrangesse desde
a Espanha até à Indonésia". Este exagero calculado,
profundamente cínico que recorda a advertência de
Washington de "nuvens em cogumelo" a seguir ao 11 de Setembro de 2001
foi repetido por Blair logo depois de abraçar Rupert Murdoch, a
fonte provável do seu futuro enriquecimento.
Esta é a mensagem dos instigadores liberais da guerra que pretendem
estar mais na moda do que ele
[1]
e salvar as suas gastas reputações com a
utilização de expressões especiosas tais como
"islamo-fascismo". Eles suprimiram a verdade de que a al-Qaeda
é minúscula em comparação como o terrorismo de
estado que mata e mutila em escala industrial e cujo custo distorce todas as
nossas vidas. O terrorismo de estado britânico no Iraque tem um custo de
mais de 7 mil milhões de libras [10,46 mil milhões]. O
custo real do Trident
[2]
diz-se ser de 76 mil milhões de libras [113,6 mil milhões].
As condições básicas do que havia de melhor na vida
britânica e que sobreviveram a Margaret Thatcher não têm
lugar nesta contabilidade. Ao Serviço Nacional de Saúde e
àquilo que outrora foi o melhor serviço postal do mundo
são negados subsídios não corrompidos por um "mercado
livre" manipulado. Em ambos os casos isto é o florescimento do
parasitismo dos Blairs, assim como a venda de 72 caças Eurofighters ao
regime medieval na Arábia Saudita, completa com
"comissões", e a recusa do governo em proibir as altamente
lucrativas bombas de estilhaçamento, cujas vítimas são
sobretudo crianças sangue e dinheiro são a essência
do blairismo e do seu liberalismo mutante. No seu novo manual do Labour, de
1996,
The Blair Revolution: can new Labour deliver?,
Peter Mandelson e Roger Liddle realçam as "forças" da
Grã-Bretanha sob um regime Blair. Estas eram as
corporações multinacionais e o "aeroespaço" (a
indústria armamentista) e a "proeminência da City de
Londres". Sangue e dinheiro.
Naturalmente, como em qualquer era colonial, o sangue derramado é
invisível. As vítimas distantes do mesmo são
untermenschen
o que equivale a dizer que são menos do que humanos e não
têm presença nas nossas vidas. Em 11 de Junho, Fiona Bruce, a
locutora da BBC, anunciou que prisioneiros na Baía de Guantanamo estavam
a cometer suicídio. Ela perguntou: "Quão prejudicial
será isto para a administração Bush?" Na recente
conferência do partido Trabalhista, uma ocasião presidencial, um
destacado jornalista da televisão, Jon Snow, escreveu que Blair
demonstrou "domínio retórico e fina subtileza". Na
verdade, afirmou, ele era "um líder para o seu tempo, num momento
em que a Grã-Bretanha precisava exactamente de tal
liderança".
Aqueles que têm desmascarado as fachadas das gangs de Blair e Bush podem
não ficar desanimados. A manifestação inspirada de 15 de
Fevereiro de 2003 pode não ter impedido uma invasão, mas este
mesmo poder universal da moralidade pública pôs, acredito, num
impasse ataques ao Irão e à Coreia do Norte, provavelmente com
armas nucleares "tácticas". Esta força moral
está indubitavelmente a agitar-se outra vez por todo o mundo, incluindo
os Estados Unidos, e é temida por aqueles que tramariam uma "guerra
sem fim". Contudo, se aprendi alguma coisa ao testemunhar numerosos
estratagemas sangrentos, nunca é de subestimar o vigor do império
desenfreado e predador e a desonestidade das suas
"intervenções humanitárias". Milhões de
nós, que somos a maioria, precisam levantar as vozes outra vez, mais
urgentemente do que nunca.
02/Novembro/2006
1- "Tonier-than-thou". Jogo de palavras intraduzível. A
palavra "tonier" ("mais na moda") assemelha-se ao nome do
primeiro-ministro britânico (Tony).
2- Trident: míssil balístico com alcance superior a 7000 km.
O original encontra-se em
http://www.johnpilger.com/page.asp?partid=416
Este artigo encontra-se em
http://resistir.info/
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