Estabelecendo os limites do jornalismo de invasão

por John Pilger

A cobertura "desinfectada" da guerra do Iraque por organizações como a BBC compara-se à 'nobre causa' dos EUA no Vietnam.

Em 14 de Novembro Bridget Ash escreveu ao programa Today da BBC a perguntar porque a invasão da Iraque era descrita simplesmente como "um conflito". Ela não conseguia recordar-se de outras invasões sangrentas reduzidas a "um conflito". Recebeu esta resposta:

Cara Bridget
Você pode discordar, mas penso que há uma grande diferença entre as "invasões" agressivas de ditadores como Hitler e Saddam e a "ocupação", ainda que mal planeada e executada, de um país para fins positivos, como no esforço da Coligação no Iraque.
Fielmente seu,

Roger Hermiston
Editor Assistente, Today

Demonstrando como funciona a censura em sociedades livres e o duplo padrão que sustenta a fachada de "objectividade" e "imparcialidade", as polidas grosserias de Roger Hermiston representam uma exposição valiosa. Uma invasão não é uma invasão se "nós" a fazemos, sem importar as mentiras que a justificaram e a demonstração de desprezo pelo direito internacional. Uma ocupação não é uma ocupação se "nós" a executarmos, não importa que os meios para os nossos "fins positivos" exijam as mortes violentas de centenas de milhares de homens, mulheres e crianças, e uma desnecessária tragédia sectárias. Aqueles que usam eufemismos para estes são aqueles que Arthur Miller tinha em mente quando escreveu: "O pensamento de que o estado ... está a punir tantas pessoas inocentes é intolerável. E assim a evidência tem de ser negada internamente". Miller podia ter sido menos caridoso caso se tivesse referido directamente àqueles cujo emprego é manter o registo correcto.

A ubiquidade da visão de Hermiston foi iluminada na véspera de Bridget Ash ter escrito a sua carta. Enterrando na base da página sete na secção de media do Guardian estava uma notícia de um estudo sem precedentes das universidades de Manchester, Liverpool e Leeds sobre as reportagens que conduziram à invasão do Iraque e durante a mesma. Este concluía que mais de 80 por cento dos media seguiu infalivelmente "a linha do governo" e menos de 12 por cento chegou a desafiá-las. Esta investigação não habitual, e reveladora, está na tradição de Daniel Hallin da Universidade da Califórnia, San Diego, cujo trabalho pioneiro sobre a reportagem do Vietnam, The Uncensored War, despediu o mito de que os media supostamente liberais da América haviam minado o esforço de guerra.

O mito tornou-se a justificação para a era moderna de jornalistas "virados" e "embebidos" (controlados) pelo governo. Concebida pelo Pentágono, foi entusiasticamente adoptada pelo governo Blair. O que Hallin mostrou — e foi muito claro naquele tempo no Vietnam, devo dizer — foi que enquanto organizações de media "liberais" tais como o New York Times e a CBS Television eram críticas das tácticas e "erros" da guerra, mesmo expondo umas poucas das suas atrocidades, eles raramente desafiaram os seus motivos proclamados — precisamente a posição de Hermiston sobre o Iraque.

A linguagem era, e é, crucial. A linguagem desinfectada da BBC no Iraque de hoje é pouco diferente da "nobre causa" da América no Vietnam, a qual foi seguida pela "tragédia" do pântano da América — quando a tragédia real era sofrida pelos vietnamitas. Com efeito, a palavra "invasão" foi banida. O que é que mudou? Bem, "dano colateral", o obsceno eufemismo inventado no Vietnam para a matança de civis, não exige mais o uso de aspas nos editoriais do Guardian.

O que é refrescante acerca deste novo estudo britânico é o entendimento dos media corporativos de que os governos ocidentais merecem crédito e protecção da sua boa reputação, bem como os seus "motivos positivos" no Iraque, pouco importando a verdade demonstrável. Piers Robinson, da Universidade de Manchester, que dirigiu a equipe de investigação, diz que a "razão humanitária" tornou-se a principal justificação para a invasão do Iraque e foi ecoada pelos jornalistas. "Isto é o novo imperativo ideológico modelando os limites dos media", afirma ele. "E o governo Blair foi muito eficaz a promovê-la entre liberais internacionalistas no media". Foi a campanha de 1999 no Kosovo, promovida por Blair e devidamente repetida como sendo uma "intervenção humanitária", que estabeleceu os limites para o moderno jornalismo de invasão.

A aventura do Kosovo foi há muito exposta como uma fraude que ridiculariza advertências de um "novo genocídio como o Holocausto", embora pouco disto tenha sido noticiado. Tal como se o nosso longo rastro de sangue fosse invisível para sempre, intelectualmente e moralmente. Certamente já é tempo de que aqueles que dirigem as faculdades de jornalismo começarem a alertar os futuros profissionais para a sua insidiosa aparência.

11/Dezembro/2006

Sítio web do autor: http://www.johnpilger.com

Publicado pela primeira vez em New Statesman


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08/Dez/06