Portugal, o aluno que aprende bem as más lições
Duas ou três observações prévias se impõem na
apresentação dum texto da autoria dum português: mais jovem
e a lecionar e investigar em Londres, o qual escreve em inglês, sendo
depois traduzido (ou "retrovertido") para o idioma pátrio por
um outro português, eu próprio, mais velho, também
professor universitário, trabalhando e residindo por cá (por
enquanto
).
A ironia da situação é gritante e multímoda. Se em
geral saber ser "estrangeiro em face aos seus" pode ser considerado
mais uma virtude do que um vício (pensemos nos casos clássicos de
Montaigne, de Montesquieu, de Erich Scheurmann
), creio também que
"nós outros", portugueses, tendemos frequentemente a errar por
exagero de sinal contrário, "torcendo demasiado a vara no sentido
oposto" e caindo assim na esparrela do coletivo desconhecimento de si, da
autoalienação
e também do fascínio
fácil e "bacoco" pelo que é considerado melhor
só por ser estrangeiro, sobretudo dos países da "gente
bem", da Europa do noroeste e da América a norte do Rio Grande
(coisa bem diversa, face a povos mentalmente mapeados a sul ou a leste, mas
isso é conversa muito mais longa).
A esses problemas mais gerais e mais recuados no tempo acrescem, porém,
vários outros mais recentes e mais limitados, atinentes por exemplo
à promoção descarada e abusiva, nos meios
académicos, do inglês enquanto língua franca universal,
imperativa e exclusivista, que
para brilhar seca
todas as demais, a começar pelas de cada país nesse país
mesmo. Isso é muito mais verdade ainda, sublinhe-se, em casos como o dos
institutos e faculdades de economia e gestão, aliás
economics and business schools
É necessário já, hoje em dia, um tradutor
("traidor", "revelador") português para
"desocultar", face à opinião indígena, o que
outro português escreve, mas em língua angla e algures
"lá fora".
Parece que fica tudo dito em matéria de ironia, mas ainda não.
Acresce que, precisamente, o caso do autor da peça traduzida constitui
ele mesmo uma ilustração plena dum fenómeno para o qual se
chama crucialmente a atenção no texto: o aspeto de a atual vaga
emigratória ser basicamente composta por profissionais bem mais
qualificados em termos académicos, e em média, do que a
generalidade da população ativa portuguesa. Esse facto, para
além do simples viés etário do fluxo emigratório
(respeitando a gente nova, portanto a curto prazo contribuinte líquida
para o Estado Social português) faz da "atenuante", ou do
"analgésico" de curto prazo, a saída, o "votar com
os pés", uma tremenda agravante a médio/longo prazo.
A própria "dinâmica intrínseca", chamemos-lhe
assim, dos problemas económicos e das reações adaptativas
que suscitam, conduz a uma trajetória de "causalidade circular
cumulativa" (para usar a expressão consagrada de um economista
justamente famoso, Gunnar Myrdal) ou de reforço: quanto pior ficamos,
pior ainda tendemos a ficar nos períodos subsequentes.
As coisas complexificam-se e enriquecem-se, claro, porque os seres humanos
são mais do que meros "agentes racionais" no sentido da
economics
: disso nos recorda precisamente a trilogia de Albert Hirschman a que Alexandre
Afonso com justeza se refere. Do ponto de vista da análise
económica tradicional, a reação "normal"
é porém, diga-se, a portuguesa: a da saída. Quanto
à reação de protesto (e, já agora, também
à da lealdade), impõem ambas outras componentes, com as quais a
economics
se dá habitualmente mal, ou às quais tem manifesta dificuldade
em processar analiticamente. Facto que é só por si, sublinhemo-lo
agora, sinal bem claro já da pobreza concetual ínsita à
"dismal science"
, aliás
dismal ignorance
A obra de Hirschman, acrescentemos ainda, está traduzida para
língua portuguesa desde 1973 (edição brasileira, com o
título
Saída, Voz e Lealdade
, São Paulo, Perspectiva). Título mais adequado teria decerto
sido
Saída, Protesto e Lealdade
, mas talvez a "suavização" editorial tenha ajudado a
contornar possíveis dificuldades face à censura da época,
quem sabe
Finalmente, e regressando ao texto de Alexandre Afonso:
1) Risco principal corrido pela sociedade portuguesa é a morte
não por "estoiro", mas por "suspiro": "
not with a bang, but a whimper
", nos termos do poema de T. S. Eliot (
The Hollow Men
, Os Homens Vazios), outro famoso não-britânico por nascimento,
tornado britânico por residência e naturalização.
Mudando um pouco a metáfora: não estamos a ser mortos por uma
fera que faça sangue, mas por uma constritora. Isso é muito
importante, se quisermos pensar em terapia adequada.
2) Não deixa de ser notável que, face à manifesta
ausência de genuíno debate de ideias, perante o
indisfarçável "robusto consenso" Troikista de todo o
"arco da governação", a cena política portuguesa
tenha absoluta necessidade duma superlativa fulanização (quer em
versão de "prós" quer de "contras",
naturalmente), como está bem patente neste último caso d'
A Entrevista
, enquanto única forma disponível para conseguir manter o
interesse do "povão"/"povinho". (Aqui entre
nós: os norte-americanos recorrem consabidamente a duelos de lama entre
mulheres como forma de manter interessada uma turba excitadíssima e
muito participativa
Será essa, no fim de contas, a secreta
vocação de Sócrates, Passos e Portas?)
João Carlos Graça
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Portugal é o aluno que consegue boas classificações por
aprender maus ensinamentos
A 15 de Março, Portugal
obteve mais tempo
para reduzir o seu défice público nos termos do memorando de
entendimento assinado com a UE, o BCE e o FMI em Maio de 2011, quando o
país se tornou o terceiro Estado-membro ao qual foi prestada
assistência no contexto da crise da Eurozona. O relaxar dos termos do
resgate tem sido considerado como uma recompensa pelo currículo
português de cumprimento do programa de ajustamento, o qual inclui cortes
altamente impopulares de salários no sector público, um
dramático
agravamento da carga fiscal
e a privatização das indústrias mais importantes
(aeroportos, eletricidade e rede energética). Portugal tem sido
consistentemente recomendado pela sua determinação em prosseguir
reformas de austeridade, apesar dos indicadores económicos que têm
também ficado aquém das metas em matérias de crescimento,
emprego e redução da dívida.
Números recentes
do Ministério das Finanças revelam, por exemplo, que 23,8
milhares de milhões de euros em cortes da despesa pública (14 por
cento do PIB) ao longo de três anos resultaram numa redução
do défice orçamental de apenas 6,6 milhares de milhões, em
parte por causa da drástica queda do nível da atividade
económica e das receitas fiscais que aqueles cortes orçamentais
provocaram. O desemprego atingiu 18 por cento (39 por cento no caso dos jovens)
em Janeiro. Apesar disto, o FMI continuou a incensar o
consenso social e político notavelmente robusto
,
o qual também assegura uma
abordagem mais tolerante por parte da Alemanha
.
Como poderemos explicar este consenso, confrontado com um pano de fundo de
protestos contra a austeridade que eclodem através da Europa? Existem
três fatores, que colocam Portugal numa posição à
parte, que podem ser mencionados: a situação que prevaleceu antes
da crise; as estratégias políticas dos principais partidos; a
tradição, profundamente enraizada nos cidadãos
portugueses, de "votar com os pés".
O primeiro fator consiste em Portugal não ter passado por uma fase de
"expansão rápida e rebentamento", como aconteceu com a
Espanha, a Grécia ou a Irlanda. Se as medidas de contenção
fiscal aplicadas têm sido razoavelmente brutais, o facto é que a
viragem para a austeridade não foi tão brusca como noutros
países: na verdade, já tinha começado mesmo antes da
crise. Tal como outros países periféricos, Portugal aderiu
à Eurozona com uma divisa sobrevalorizada relativamente aos seus
níveis de produtividade. No contexto da queda da procura no exterior,
causada pela
contenção salarial na Alemanha
e pela competição acrescida da Europa central e de leste, as
suas exportações foram severamente penalizadas desde o final da
década de 1990. Tal como na Espanha e na Grécia, as baixas taxas
de juro permitidas pela união monetária europeia fortaleceram o
consumo interno, níveis elevados de dívida privada e
défices comerciais. Todavia, em contraste com aqueles países,
onde o crescimento económico foi sustentado por bolhas
imobiliárias, o mercado imobiliário português estava
já saturado no final da década de 1990, o que o tornou
razoavelmente
pouco reativo
a baixas taxas de juro. Apanhado entre a baixa competitividade das
exportações e as limitadas possibilidades para a expansão
interna, Portugal atravessou uma década de
crescimento anémico
depois de ter integrado o Euro. De acordo com dados da OCDE, Portugal foi o
país da Eurozona que cresceu menos desde 1999 (Figura 1). Em resultado
disso, os governos portugueses já estavam a pôr em prática
medidas de consolidação orçamental antes da crise,
particularmente sob o governo socialista de José Sócrates
(2005-2011).
O segundo fator é a estratégia política prosseguida pelos
principais partidos. Ao passo que a Grécia enfrentou uma
situação de instabilidade política que pode ser comparada
à da
Alemanha de Weimar
, os principais partidos portugueses exibiram um notável grau de
consenso desde os primeiros estágios da crise da dívida soberana.
As medidas de austeridade, primeiro postas em prática pela minoria
socialista antes do resgate, foram suportadas pelo PSD de centro-direita, e os
socialistas apoiaram pelo menos passivamente um importante número de
medidas de contenção fiscal promovidas depois pela
coligação conservadora PSD/CDS-PP, que chegou ao poder em Junho
de 2011. Este padrão de compromisso pode ser explicado pela reduzida
distância ideológica entre os maiores partidos, mas também
pela sua relutância em assumir o exercício do poder no contexto do
programa de ajustamento. Em essência, ser governo à sombra da
Troika não constitui exatamente uma programa apelativo. Consiste em
fazer o trabalho sujo de impor políticas altamente impopulares com uma
margem de manobra mínima, e procurar ir espalhando e tornando difusa a
revolta popular. Em particular para o PS e o PSD, suportar o governo enquanto
se está na oposição tem sido um expediente para conseguir
fazer passar um certo número de medidas impopulares, sem todavia sofrer
de forma direta o ónus correspondente. Mesmo tendo nos últimos
tempos assumido uma postura algo mais combativa, os socialistas descobriram que
era difícil advogar um programa alternativo, precisamente porque eles
próprios tinham levado a cabo o mesmo tipo de políticas quando
estavam no poder.
O fator final consiste no tradicional papel da emigração enquanto
válvula de segurança para problemas na sociedade portuguesa.
Albert Hirschman
escreveu magistralmente acerca da existência de três
possíveis respostas face a condições políticas ou
económicas adversas: "lealdade"/cumprimento,
"voz"/protesto ou "saída"/retirada. Embora seja
verdade que o protesto popular ("voz") tem vindo a aumentar, tal como
evidenciado recentemente por uma série de manifestações
massivas que usam os
símbolos
da Revolução dos Cravos de 1974, aquilo que também pode
ser observado é uma estratégia ainda mais massiva de
"saída" através da emigração.
Números recentes indicam que mais de 1 milhão de portugueses
abandonaram o país
desde 1998, e qualquer coisa como 120 mil podem tê-lo deixado só
no ano de 2011. Para um país de 10 milhões de habitantes, estes
são números extremamente elevados. O ciclo de
emigração que começou no final dos anos 90 pode ser
comparado apenas ao que ocorreu durante os anos 60, quando a
emigração era a única via para escapar à estrutura
social rígida mantida pela ditadura de Salazar. No contexto da presente
crise, a emigração pode ter ajudado a reduzir o desemprego e a
possibilidade de protesto político, mas também contribui para
agravar massivamente problemas estruturais de sustentabilidade do Estado
Social. Aqueles que partem para o Brasil, Angola, Moçambique, Alemanha
ou mais partes são frequentemente jovens e muito instruídos, e
dado que Portugal tem uma das mais baixas taxas de natalidade da Europa, os
possíveis contribuintes líquidos para o Estado Social
estão a ir-se embora, ao passo que beneficiários líquidos,
como reformados e pensionistas, permanecem. Neste contexto, o maior risco para
o Portugal fustigado pela austeridade pode bem não ser uma
explosão, mas uma lenta morte por desgaste.
[*]
Alexandre Afonso é docente no Departamento de Economia Política
do King's College de
Londres. Os seus interesses de investigação são a
política comparada, a mobilidade do trabalho, as relações
industriais e as reformas do estado social. O seu livro
Social Concertation in Times of Austerity
foi publicado pela Amsterdam University Press em 2013.
O original encontra-se em
blogs.lse.ac.uk/,,,..
Este artigo encontra-se em
http://resistir.info/
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