Como é que a crise veio cá parar?

A ladainha da Brigada do Reumático

por Anselmo Dias

A nova brigada do reumático. Quem, tendo vivido os derradeiros momentos do fascismo, não se recorda dessa antológica cena de ópera bufa envolvendo o encontro dos altos comandantes das Forças Armadas com o então presidente do Conselho de Ministros, Marcelo Caetano, pomposa cerimónia que entrou na gíria popular como sendo a da "Brigada do Reumático"?

Passados cerca de 36 anos, com novos actores, em circunstâncias políticas diferentes e a pretexto da actual situação do país, mas repetindo o mesmo guião "operático-reumatismal", assiste-se, no Palácio de Belém, ao encontro entre o Presidente da República e um vasto conjunto de ex-ministros das Finanças, todos eles com vastos currículos políticos, académicos e profissionais.

Tal encontro, uma espécie de representação teatral a fazer lembrar o papel das carpideiras – as mulheres pagas para carpir e para criarem, no culto dos mortos, um clima pesado e lamuriento – tal encontro, dizíamos, remete-nos simbolicamente para a agonia do fascismo.

A actual "Brigada do Reumático", embora não tenha qualquer similitude com a anterior, foi, pois, ao Palácio de Belém, carpir, entre outros choradinhos, a dívida externa, a dívida pública, o défice orçamental, os grandes investimentos, entre outros temas afins.

Tais personagens, uns da área do PS, outros da área do PSD, um outro na área do CDS-PP e uns outros ligados ideologicamente àqueles partidos, embora formalmente independentes, tais personagens, quer pelos seus argumentos relativamente ao seu contributo para a dimensão dos actuais défices, quer por aquilo que fizeram e por aquilo que deviam ter feito e não fizeram, fazem lembrar aquela anedota em que, numa zona rural, um indivíduo rouba um porco, transportando-o ao ombro, a caminho de casa.

Neste percurso encontra uma patrulha da GNR, cujo comandante indaga, assim, o ladrão: "O que é que você leva aí?"

O ladrão, mostrando a maior surpresa, dirige o olhar displicente para ombro que suporta o porco e, com a maior naturalidade, dá-lhe uma ligeira sacudidela com as pontas dos dedos, afirmando. "Ai o bicho", como se, em vez do roubo de um anafado e pesado reco tivesse havido, no ombro do ladrão e à sua revelia, o mero poisio de uma pequena libelinha.

"Ai o bicho" é o que dizem Jacinto Nunes, Medina Carreira, João Salgueiro, Ernâni Lopes, Miguel Beleza, Manuela Ferreira Leite, Eduardo Catroga, Pina Moura, Bagão Félix e Campos e Cunha, que integravam a já referida "Brigada do Reumático", bem como os ausentes, quando, todos eles, são inquiridos sobre o papel que ao longo dos anos têm desempenhado na vida governativa, académica e profissional.

"Ai o bicho" é a resposta de quem, tendo colaborado nas malfeitorias políticas, económicas e sociais afirma como afirmou o ladrão perante a pergunta do agente da GNR.

Nenhum deles, e muito menos o anfitrião, tiveram qualquer culpa na situação actual. Longe disso, afirmam também a pés juntos as conhecidas e consabidas vozes do dono.

Não carregam com o peso de nenhuma responsabilidade. Nenhuma.

A responsabilidade, a haver, no Ministério das Finanças, é do conluio entre o motorista e a empregada de limpeza. Um porque, ganhando 800 euros não é verdadeiramente flexível no seu horário de trabalho e a outra, usufruindo o salário mínimo nacional, é uma perdulária no uso dos detergentes na limpeza das sanitas do Governo, afectando, por isso, a nossa competitividade.

A culpa está toda aqui.

Uns pelos salários, outros pelos custos intermédios. Estes são os verdadeiros culpados, quer pelos custos da despesa primária do Estado, quer pelo esbanjamento de recursos.

Porrada neles. PECs em cima do costado, para ver se gostam.

Definidos os verdadeiros responsáveis, não é justo, pois, em Portugal, pedir responsabilidades ao PS e ao PSD, pelo que a anedota do roubo do porco atrás referida não faz qualquer sentido aplicada aos respectivos governos e ministros das Finanças.

Com efeito, incluindo o actual Presidente da República:

Nenhum deles pugnou pela descaracterização da nossa Constituição designadamente na parte em que havia um projecto racional, progressista e patriótico para o nosso modelo de desenvolvimento, em oposição à irracionalidade vigente, cujos efeitos imediatos e cujas prolongadas consequências estão à vista de todos.

Nenhum deles estimulou e/ou criou condições para essa grande negociata que foi a privatização do sector empresarial do Estado, parte do qual está na posse de accionistas estrangeiros, por via de um esquema em que os accionistas nacionais foram meros intermediários num negócio entre o propositado baixo preço inicial da venda do nosso património e a sua posterior revenda, a preços de mercado, possibilitando a todos aqueles a quem foi atribuído um lugar na manjedoura do Estado uma enorme acumulação de capital.

Nenhum deles esbanjou o dinheiro proveniente das privatizações, antes pelo contrário, investiram tais verbas na dinamização e modernização do nosso tecido produtivo, conferindo-lhe um confortável valor acrescentado.

Nenhum deles concordou com a forma fraudulenta como foram alienadas várias instituições bancárias do sector empresarial do Estado (quem não se lembra, entre outros, do caso Fonsecas & Burnay?), bem como da cumplicidade do sistema financeiro do Estado no financiamento a privados no assalto destes às empresas que haviam, no processo revolucionário, sido nacionalizadas.

Nenhum deles defendeu e propôs o abate da frota pesqueira, o abandono da agricultura, a alienação da marinha mercante e a desindustrialização, na justa medida em que sabiam de tais consequências no desequilíbrio da nossa balança comercial e no stock acumulado da dívida externa.

Nenhum deles pactuou com o compadrio envolvido na transformação de terras agrícolas, avaliadas a patacos, em terrenos urbanizáveis avaliados em milhões sem que tivesse revertido para o orçamento do Estado as referidas mais-valias cuja dimensão, no contexto por vezes mafioso, explica muitas das grandes fortunas existentes em Portugal.

Nenhum deles deixou, insistentemente, de estudar a natureza do nosso comércio internacional e de pugnar por medidas práticas tendentes à substituição das importações por produção nacional, favorecendo, entre nós, o emprego e evitando o endividamento externo.

Nenhum deles apoiou a ganância da oligarquia financeira na fixação especulativa das taxas e serviços bancários à revelia dos seus custos reais, na medida em que sabiam que, desse comportamento, haveria uma colossal transferência de meios monetários das empresas e das famílias para os bolsos dos accionistas do sistema financeiro.

Nenhum deles contribuiu para a criminosa política do BCP, do BES, do BPI, da CGD e restante banca na destruição da poupança nacional, quer por via de taxas de juros inferiores ao valor da inflação no que se refere à remuneração dos depósitos, quer por via do desenfreado consumismo do compre agora e pague depois.

Nenhum deles fomentou a abusiva disseminação do chamado "dinheiro de plástico" e na abertura de linhas de crédito não solicitadas pelos clientes, na medida em que sabiam que isso iria provocar o endividamento externo e, por conseguinte, colocar a nossa dependência nas mãos dos credores no que concerne ao investimento na economia e à própria liquidez da banca.

(Abre-se aqui um parêntesis para dizer que, recentemente, o actual presidente do conselho de administração do BCP, batendo com a mão no peito, declarou que a banca, no que concerne à concessão de crédito, foi "imprudente". Imprudente? o tanas! Crime lesa-pátria era o que ele devia ter dito).

Nenhum deles foi apologista quanto aos critérios na concessão de crédito por parte da banca, no privilégio dado à "economia de casino", em detrimento da economia ligada à produção de bens transaccionáveis.

Nenhum deles permitiu que os recursos colocados à disposição da banca fossem delapidados na construção de uma excessiva rede de autoestradas, no estímulo à obsessiva renovação do parque automóvel, na densificação de telemóveis, sectores que guindam Portugal nos primeiros lugares do ranking mundial.

Nenhum deles concordou com o peso excessivo que a banca teve na trilogia "venda de terrenos-construção de novas habitações-actividades imobiliárias", porque sabiam que o vultuoso crédito aí destinado faltaria em sectores estratégicos na área da agricultura, das pescas e das indústrias. Acresce a isto o facto de eles saberem que o país iria pagar cara a circunstância de haver uma excessiva oferta de casas novas, comparativamente à procura, ou seja: um imenso capital empatado, isto num país que anda de mão estendida a pedir dinheiro emprestado no estrangeiro.

Nenhum deles pugnou pela existência das famigeradas parcerias público-privadas, designadamente em todas aquelas em que o Estado arca com a socialização dos prejuízos, garantido aos privados um negócio certo e seguro, com taxas de rentabilidade muito superiores aos valores médios dos vários sectores da nossa economia.

A este propósito, tenhamos presente, entre muitos outros, o rocambolesco processo do Hospital Amadora-Sintra, sob a gestão do Grupo Mello, e o não menos rocambolesco processo do terminal de Alcântara a cujo concessionário, onde pontifica o egrégio Jorge Coelho, foi garantida uma taxa interna de rentabilidade na ordem de cerca de 14%, valor de fazer inveja à taxa de rentabilidade dos capitais próprios da generalidade das empresas ligadas aos sectores primário e secundário do nosso tecido produtivo

Dias Loureiro recebe um abraço carinhoso de Cavaco, sob o olhar benevolente de Jaime Gama. Nenhum deles fechou os olhos à hecatombe financeira provocada pelo "banco laranja" o BPN, cujos altos dignitários ligados ao PSD provocaram a transferência de mais de 4 mil milhões de euros da CGD, ou seja, dos nossos bolsos, para tapar a roubalheira provocada naquela instituição, onde pontificava Dias Loureiro, um ex-conselheiro de Estado, sob investigação judicial e alto dirigente ligado à campanha eleitoral que levou Cavaco Silva à Presidência da República.

(Abre-se aqui um parêntesis para salientar que o estado-maior da última candidatura à Presidência da República por Cavaco Silva saiu do BPN. Agora, tal estado-maior sai das grandes superfícies).

Nenhum deles esteve ligado, directa ou indirectamente, às grandes empresas majestáticas na área da electricidade, dos combustíveis e das comunicações onde a formação de preços é verdadeiramente obscena, afectando, quer o resultado das micro, pequenas e médias empresas, quer a economia familiar.

Nenhum deles sugeriu que parte dos lucros fabulosos dessas vacas sagradas que dão pelo nome de EDP, GALP, PT, entre outras, fossem investidos no estrangeiro quando é publico e notório que o país precisa desse usurpado dinheiro para a dinamização da nossa economia. Não é verdade que todos eles, em uníssono, protestaram contra o investimento de cerca de 3 mil milhões de euros, pela EDP, nos EUA e por valores ainda mais vultuosos da PT, no Brasil?

Nenhum deles incentivou a criação de uma administração pública paralela, empanturrada nos lugares de topo por familiares, amigos e confrades, por via de institutos e dessa monstruosidade que dá pelo nome de entidades reguladoras cujos responsáveis, todos sabem, são invariavelmente "capturados" pelos regulados, ou seja, pelas próprias empresas que pretensamente regulam.

Nenhum deles abençoou o "negócio da china" que dá pelo pomposo nome de out-sourcing, ou seja, os serviços prestados pelos grandes escritórios de advogados e pelas empresas de consultoria, designadamente na área da economia e da engenharia para onde têm sido drenados, ao longo dos anos, centenas de milhões de euros, verbas que poderiam ser evitadas se fosse valorizado o saber existente, quer na função pública, quer nas nossas universidades.

(Abre-se aqui um parêntesis para dizer que, para a elaboração de uma história contemporânea, é mais importante o contributo dos grandes escritórios de advogados do que o papel científico dos historiadores. Com efeito, nesses grandes escritórios de advogados sabe-se mais das relações de poder e de dinheiro do que, na Idade Média, os padres sabiam por via da confissão).

Nenhum deles se esqueceu, um momento sequer, de introduzir na estrutura da função publica, no sector empresarial do Estado e na sociedade em geral modelos comportamentais, perfeitamente mensuráveis, tendentes a combater a corrupção, exemplarmente tipificada durante o cavaquismo na utilização dos dinheiros do Fundo Social Europeu e, no socratismo, nessa imensa hidra que dá pelo nome de "Face Oculta", em esquecer os gastos escandalosos levados acabo por essa miríade de boys e girls do PS, do PSD e do CDS-PP que proliferam nos ministérios, nos institutos, nas entidades reguladoras e no sector empresarial do Estado.

Nenhum deles deixou de solicitar ao Ministério Público uma investigação, caso a caso, das derrapagens nas obras públicas, no sentido de se saber a quem beneficiava o cambalacho em torno da diferença entre o valor original atribuído a uma obra e o valor final dessa mesma obra.

Nenhum deles impediu medidas justas e racionais na máquina do Estado, em ordem quer ao controle e à recolha de impostos por forma a introduzir uma maior justiça fiscal, quer a evitar o regabofe dos perdões e prescrições fiscais. O que aconteceu, a este propósito, quando Cavaco Silva era primeiro-ministro e Oliveira Costa era secretário de Estado foi um mero descuido, sem qualquer consequência, não obstante as más línguas referirem que estávamos perante um verdadeiro caso de polícia. Embora tudo isto fosse público estamos certos de que o ministro das Finanças da altura não sabia de nada. Tão certo quanto à ignorância de Salazar relativamente à actividade da PIDE.

Nenhum deles deixou, junto do Banco de Portugal, de reclamar medidas eficazes contra a banca privada pela sua actividade no desvio de capitais para os paraísos fiscais, por via desse embuste que dá pelo nome de "planeamento fiscal". A magnitude deste comportamento está bem patente no mega processo "Furacão", recentemente relembrado pelo envolvimento do patrão da Mota Engil, suspeito de prática de crimes de fraude fiscal agravada e de branqueamento de capitais.

Nenhum deles teve qualquer problema na sua relação com as Finanças, quer no pagamento da sisa, quer na regularização de mais-valias, quer quando um ex-titular do Ministério declara às Finanças apenas um rendimento de três contos, (ainda circulava o escudo) em vez dos trinta contos recebidos por um parecer encomendado por um empresário relativo a um determinado negócio.

Concluindo: quando, repetidamente, usámos a expressão "Nenhum deles" fizémo-lo com a intenção de, salvo as devidas excepções, falar de pessoas que, à exaustão, em entrevistas, em declarações públicas, em artigos editados em jornais e revistas propuseram, para milhões de portugueses, a redução salarial e a diminuição das prestações sociais, ao mesmo tempo que muitos deles próprios foram, no circuito formado pelo Banco de Portugal, Caixa Geral de Depósitos, Universidades, administração pública, sector empresarial do Estado e actividades governativas, acumulando reformas sobre reformas, sem que tivessem atingido a idade legal para a reforma e sem que tivessem tido um período laboral similar ao período contributivo exigido pela Segurança Social.

É evidente que nada disto é ilegal.

Mas é evidente que tudo isto, no nosso Estado de Direito, é rasteiro, ilegítimo, imoral e socialmente condenável.

O epílogo das brigadas do reumático

Tudo o atrás referido, dizem os interessados e proclamam as vozes do dono, está, pois, em conformidade com o normativo legal.

As leis existem e elas são cumpridas. Enfim, reina a ordem no nosso Estado de Direito.

Porém, tal como em situação dolorosa exclamou Galileu, "...contudo, ela move-se...", também nós acreditamos que o Estado de Direito também se move.

Recordamos, voltando ao início do texto, que o epílogo do Estado de Direito, aquando da "Brigada do Reumático" recebida por Marcelo Caetano, acabou naquilo que todos nós sabemos, a jornada gloriosa do 25 de Abril, dando assim início a um novo Estado de Direito.

Quanto ao epílogo da simbólica "Brigada do Reumático" recebida por Cavaco Silva e de outras contemporâneas "Brigadas do Reumático", aguardemos pelo Estado de Direito que vier a ser ditado pelo povo.

O tempo que for necessário.

O original encontra-se em http://www.avante.pt/pt/1928/temas/111206/

Este artigo encontra-se em http://resistir.info/ .

22/Nov/10