Entrevista ao general Vasco Gonçalves,
líder histórico da Revolução dos Cravos
"Cuba e Venezuela são exemplos
para todos os que querem um mundo melhor"
Os argentinos, os chilenos e
muitos outros latino-americanos estão acostumados a ver os principais
chefes militares com a sua tradicional pose prepotente, arrogante e
autoritária. Na nossa América, cada vez que estas personagens
sinistras se dirigem ao povo mostram os dentes como cães assassinos.
Fiéis guardiões dos seus amos, os empresários locais e o
imperialismo norte-americano, estes militares vêem nos seus
próprios povos o "inimigo" dizem-no nos seus textos
doutrinários, ou "civilacho"
[1]
na sua intimidade com desprezo e soberba.
Imenso contraste! Quando
alguém se aproxima do general Vasco Gonçalves tem a
impressão exactamente oposta. Este homem, que foi dos mais destacados
militares do 25 de Abril de 1974, a célebre Revolução dos
Cravos que derrubou o fascismo em Portugal, fala pausadamente, de forma suave e
calma. Tem os gestos amáveis e a atitude de um velho professor
universitário. Dirige-se aos interlocutores com um ênfase
pedagógico que não consegue dissimular.
A Revolução dos
Cravos foi atípica. Teve lugar na Europa Ocidental, precisamente quando
se supunha que a revolução já estava fora da agenda.
Segundo escreveu o próprio Vasco Gonçalves, "a
Revolução de Abril terá sido, na Europa Ocidental e depois
da Comuna de Paris, a maior ofensiva feita contra o sistema capitalista".
Precisamente quando nos restantes países europeus se abriam as flores
murchas do eurocomunismo e da social democracia (correntes que renunciavam a
toda a rebelião radical, não por uma momentânea debilidade
de forças, mas por princípios políticos) Portugal
pôs na ordem do dia a questão do poder. Isto teve lugar em plena
crise capitalista (1973-1974), quando o dólar e o petróleo
sofreram um abanão mundial, liquidando o keynesianismo do pós
guerra e abrindo caminho ao neoliberalismo.
Esta revolução
realizada em plena guerra fria deslocava o papel tradicional das Forças
Armadas europeias, especialistas na guerra contra- revolucionária nas
colónias africanas e, ao mesmo tempo, peritas na
contra-revolução e na tortura pelos militares latino americanos
(Brasil, Argentina, Chile, etc).
A de Portugal foi uma
revolução que questionava num mesmo movimento o vínculo
imanente entre capitalismo, fascismo e colonialismo. Três formas de
dominação que costumam apresentar-se na literatura
política como se fossem fenómenos desligados entre si.
Na gestação dessa
situação explosiva convergiram diversas circunstâncias
históricas. Por um lado, a rebeldia indomável dos movimentos
insurreccionais e guerrilheiros das colónias portuguesas (Angola,
Moçambique, Guiné-Bissau, etc). Por outro lado, a crescente
mobilização interna do povo português e das suas classes
trabalhadoras, fartos de quase 48 anos de ditadura fascista (a mais longa da
Europa, encabeçada por Salazar e depois por Caetano).
Mobilização que originou, inclusivamente, o aparecimento de
núcleos de resistência político-militar, como o dirigido
pela Acção Revolucionária Armada (ARA), braço de
auto-defesa impulsionado pelo Partido Comunista Português a partir de
1970, apesar de por esses anos a União Soviética defender, para
toda a órbita ocidental, a "coexistência
pacífica" e o respeito pelas "áreas de
influência".
Produto da guerra colonial e desse conjunto de circunstâncias, emergiu
uma crescente politização e radicalização dos
militares portugueses, os quais em 25 de Abril encabeçaram um
levantamento contra a ditadura. Algumas vendedoras de flores na rua ofereceram
cravos vermelhos aos soldados insurrectos contra o fascismo. Estes
colocaram-nos nos canos das suas espingardas. Uma fotografia que correu mundo
deu o nome à revolução. Os insurrectos foram acompanhados
pela mobilização de todo o povo e por isso o levantamento militar
transformou-se vertiginosamente numa revolução.
O general Vasco
Gonçalves foi um dos principais líderes e sem dúvida o
mais radical. Foi membro do Movimento das Forças Armadas (MFA) e do
Conselho da Revolução. Ocupou o cargo de Primeiro Ministro
durante vários governos provisórios que vieram a sofrer tanto
golpes reaccionários palacianos como golpes de Estado clássicos.
Em Novembro de 1975, um ano e meio depois do início da
Revolução dos Cravos, o governo revolucionário foi
derrubado. Caiu perante um golpe de estado de direita (no qual se reprimiu o
levantamento de algumas unidades militares da esquerda radical).
Diferentemente das intentonas anteriores, este novo golpe
contra-revolucionário saiu vitorioso. Foi instigado pelo Partido
Socialista Português Mário Soares como responsável
civil , pelos EUA, pela social democracia internacional e pela
Internacional Democrata Cristã.
Quanto ao papel de democracia
cristã internacional, cabe recordar que, por esta altura, ela participou
na desestabilização e no golpe de estado contra o presidente
marxista Salvador Allende no Chile, ao mesmo tempo que preparava um golpe em
Itália, se o PCI ganhasse as eleições.
Ainda quanto ao papel da social
democracia, não pode esquecer-se que a 15 de Setembro de 1975, apenas
dois meses antes do golpe, o líder do Partido Socialista Mário
Soares tinha denunciado publicamente, dando alento à
conspiração da direita que se preparava na sombra, que Portugal
corria o risco de converter-se "numa espécie de Cuba na
Europa". Um pecado imperdoável ! Anos depois foi público o
estreito entendimento então alcançado entre Mário Soares e
Frank Carlucci, na altura embaixador dos EUA em Portugal e proeminente homem da
CIA, para impedir que surgisse "uma nova Cuba", agora na Europa.
A partir do triunfo da
reacção de direita com máscara social democrata, em
Portugal tudo volta à "normalidade"... isto é, ao
capitalismo, à exploração e à obediência.
Vasco Gonçalves é
hoje um homem idoso, mas ainda se lhe incendeia o olhar com o brilho de um
adolescente, quando fala da revolução que o teve como principal
expoente das forças populares.
Modesto e simples, sente-se
surpreendido quando uma humilde camponesa, mais velha que ele, vestida de negro
da cabeça aos pés, se aproxima para lhe acariciar a cara,
expressar-lhe a sua admiração e sentar-se com ele como se fosse
um filho.
Este general atípico
defende Cuba e Venezuela e trata por assassinos os militares repressores;
declara-se abertamente marxista citando com familiaridade Lenine; envia
saudações a Fidel e Raul Castro, enquanto elogia com entusiasmo
Hugo Chavez e critica acidamente a social democracia. É sem
dúvida uma
avis rara.
Dialogar com ele deixa uma sensação estranha que surge
espontaneamente quando o comparamos com qualquer dos militares tradicionais,
sejam eles "nacionalistas" ou liberais, treinados na repressão
popular e na protecção servil dos poderosos com dinheiro.
Nestor Kohan: Como recorda hoje a revolução do 25 de Abril de
1974?
General Vasco Gonçalves: A revolução que se estendeu
entre Abril de 1974 e Novembro de 1975 foi o momento mais importante da minha
vida, do ponto de vista pessoal. Participar na revolução foi a
maior alegria que me foi dado viver. Penso em muitas coisas, no quotidiano, na
vontade das pessoas, no espírito reivindicativo e de luta...
NK: Como foi o processo revolucionário?
Gen. Vasco Gonçalves: A partir do levantamento contra o fascismo em
Abril de 1974, a nossa revolução vai aprofundando as suas
conquistas, modificando as últimas estruturas que caracterizam o
sistema. À medida que se sucedem as transformações, a
luta de classes vai-se agudizando. Penso que naquela situação
não estávamos preparados, não tínhamos um grau de
maturação política e social capaz de defender e consolidar
a revolução. Não tínhamos esse grau de
maturação. Nos primeiros tempos, nos primeiros meses houve um
grande entusiasmo popular. Depois, à medida que as conquistas se foram
aprofundando, começaram as nacionalizações e
expropriações, a reforma agrária, a força dos
trabalhadores foi subindo. Os trabalhadores conquistaram muito do ponto de
vista político e social, nas relações de trabalho, nas
relações entre patrões e assalariados e isso fez com que
se agravassem muitas coisas. Fundamentalmente agudizou-se a luta de classes.
NK: Que falhou no processo revolucionário? Por que não pode
consolidar-se e triunfar?
Gen. Vasco Gonçalves: Em Portugal não houve de facto
forças suficientes porque nas massas populares dominou predominantemente
o espírito pequeno burguês tradicional, o medo das
transformações, o medo do comunismo, a acusação de
que nós queríamos levar o país para o comunismo... todas
essas mensagens reaccionárias e propagandísticas tiveram certa
receptividade na nossa população. Portanto o Movimento das
Forças Armadas foi dividido. Houve militares que se puseram contra as
conquistas da revolução, em lugar de as defender. Os
próprios vencedores do golpe contra revolucionário do 25 de
Novembro de 1975, que foi feito contra os militares situados mais à
esquerda, contra os militares progressistas e revolucionários um
golpe que foi protagonizado por uma fracção de militares que
tinha participado no levantamento de 25 de Abril de 1974 paradoxalmente,
aceitavam conquistas do socialismo. Alguns destes militares que protagonizaram
o golpe de direita de 1975 estavam convencidos que nós, os militares de
esquerda, queríamos implantar uma nova ditadura em Portugal, que agora
seria uma ditadura comunista. Na verdade esta crença provinha de
propaganda da reacção. Assim se dividiu o MFA e a própria
população. Então, até mesmo os vencedores do golpe
contra revolucionário de fins de 1975 aprovaram uma lei constitucional
que dizia que a missão das Forças Armadas era garantir a via
pacífica e pluralista para a democracia e o socialismo. O
preâmbulo da Constituição da República também
se propunha "abrir o caminho para uma sociedade socialista, no respeito
pela vontade do povo português, tendo em vista a construção
de um país mais livre, mais justo e mais fraterno". Precisamente o
que nós queríamos! Eles, os militares que nos derrotaram,
estavam convencidos que nós íamos implantar uma nova ditadura,
agora comunista, e fizeram então essa lei em defesa do socialismo.
Estiveram contra nós, contra camaradas militares, contra os que apoiavam
as reivindicações populares e queriam precisamente consolidar
essas reivindicações que haviam sido alcançadas.
NK: Fala de propaganda reaccionária e anticomunista destinada a dividir
o processo político. Nós, latino americanos, conhecemos muito bem
isso. A CIA estava activa em Portugal?
Gen. Vasco Gonçalves: A CIA estava activa! Sim! Juntamente com a CIA
estavam activos os serviços de inteligência britânicos.
Quanto à CIA é bem conhecido o caso do ex-embaixador norte-
americano em Portugal no tempo da revolução, Frank Carlucci, que
depois da sua acção em Portugal foi promovido nos Estados Unidos
a vice-director da CIA. Também são bem conhecidos os elogios
mútuos que trocaram Mário Soares, secretário-geral do
Partido Socialista e apoio civil da contra- revolução, e Frank
Carlucci. Soares chegou a enaltecer recente e publicamente o grande papel
deste homem da CIA na "instauração da democracia em
Portugal"... Depois dessas declarações que mais se pode
acrescentar?...
NK: A CIA também estava infiltrada nas Forças Armadas?
Gen. Vasco Gonçalves: É minha convicção que sim.
No entanto, as condições que vivemos em Portugal não foram
as mesmas que se viveram no Chile em 1973, onde a CIA tinha maior
influência. Em Portugal, a burguesia, encabeçada pelo PS e pelo
PSD, conseguiu dividir o MFA e os próprios trabalhadores. A
contra-revolução foi feita por uma via quase pacífica, ao
contrário do que aconteceu no Chile.
NK: Qual é então o balanço?
Gen. Vasco Gonçalves: Na hora de fazer um balanço das causas
pelas quais fomos derrotados, eu penso que a sobrevivência e
permanência da ideologia pequeno-burguesa e burguesa entre a maioria das
massas trabalhadoras e entre a maioria dos militares possibilitaram que a
direita e a direcção do Partido Socialista golpeassem a
direcção da revolução. Deste modo a
direcção do Partido Socialista esforçou-se por definir os
militares revolucionários e o Movimento das Forças Armadas (MFA)
como comunistas. Diziam-nos que éramos todos comunistas, para assim
poderem acusar-nos, isolar-nos e afastar-nos. Isso foi o que a
direcção do Partido Socialista conseguiu. De aí em
diante, desde 1976 até aos nossos dias, Portugal foi e é
governado pela direita.
NK: O senhor então era comunista?
Gen. Vasco Gonçalves: Eu então era marxista e continuo a
sê-lo.
NK: Como se formou? Como chegou ao marxismo dentro das Forças Armadas?
Gen. Vasco Gonçalves: Nos tempos de estudante.
NK: O que estudava?
Gen. Vasco Gonçalves: Estava na Faculdade de Ciências. Estudava
engenharia militar.
NK: Era uma universidade civil?
Gen. Vasco Gonçalves: Sim, era uma universidade civil. Para entrar na
escola militar estudei num curso de engenharia que se cursava durante
três anos na Faculdade de Ciências. Ali afeiçoei-me a
amigos, que eram estudantes, e a outro grande amigo, um professor que me levou
a compreender as relações sociais.
NK: Eram muitos os estudantes marxistas?
Gen. Vasco Gonçalves: Não, na realidade não eram muitos.
Na época tudo era censurado. Faltava-nos a liberdade. Essa profunda
falta de liberdade do nosso povo deu sentido ao levantamento militar e à
revolta popular contra a ditadura e contra a falta de liberdade, contra as
posições patronais, contra a exploração dos
trabalhadores. Então, o Partido Comunista tinha uma grande
influência sobre a população. Era praticamente o
único partido organizado que lutava contra o regime fascista.
[2]
O Partido Comunista contava com uma considerável influência entre
os trabalhadores das fábricas. Nesse momento os trabalhadores
portugueses eram principalmente agrícolas, porque Portugal era
essencialmente um país agrícola. Isso influiu para que
predominasse, entre a maioria dos trabalhadores, a ideologia pequeno-burguesa e
até burguesa, quase tradicional. Portugal tinha uma influência
muito forte da Igreja e pesava muito a tradição. A debilidade no
desenvolvimento capitalista de Portugal e o seu atraso do ponto de vista
industrial contribui para explicar que entre os trabalhadores predominasse, de
facto, a ideologia da classe dominante. Como sabe, as ideias dominantes
são as ideias da classe dominante. A população lutava
contra o fascismo. Começou então a guerra colonial, que teve uma
grande influência na maturação da consciência
política de um determinado número de militares que protagonizaram
o levantamento do 25 de Abril de 1974.
NK: Quanto durou a guerra de Portugal nas suas colónias?
Gen. Vasco Gonçalves: A guerra durou 13 anos, desde 1961 até
1974. Durante a guerra colonial os militares foram compreendendo que essa
guerra não tinha solução pela via das armas. O problema
colonial tinha de ser resolvido reconhecendo o direito dos povos à
autonomia e à independência.
NK: Quais eram as guerras coloniais de Portugal?
Gen. Vasco Gonçalves: A guerra colonial desenvolveu-se em África:
em Angola, em Moçambique e na Guiné-Bissau. A partir de 1964
havia três frentes simultâneas. Nessas três colónias
havia três campanhas militares.
NK: Participou nas guerras coloniais?
Gen. Vasco Gonçalves: Sim, participei.
NK: Onde?
Gen. Vasco Gonçalves: Estive em Angola e em Moçambique.
NK: Nessa época a França educava os seus militares na doutrina da
guerra contra-revolucionária, que aplicou na Argélia e Indochina.
Os Estados Unidos fizeram-no também no Vietnam. Na América
Latina essa doutrina da guerra contra-revolucionária difundiu-se muito,
graças à França e aos Estados Unidos. Aos senhores
também os educaram nesse tipo de guerra contra-revolucionária?
Gen. Vasco Gonçalves: Quando começou a guerra colonial vieram ao
nosso país oficiais do exército francês na Argélia.
Eles falavam-nos de operações. Não era um ensino ou uma
instrução formal. Davam conferências sobre a guerra de
Argélia, sobre as operações militares e sobre o modo de
enfrentar os guerrilheiros.
NK: Em que ano esses instrutores deram as suas conferências?
Gen. Vasco Gonçalves: Eu calculo que tenha sido em 1961, 1962 e 1963.
Foi no
princípio da guerra colonial. Nessas conferências falavam do
ponto de vista operacional militar, do ponto de vista das
operações anti-guerrilha e também do ponto de vista da
acção psico-social: Como conquistar as populações
quando havia movimentos de libertação, movimentos de guerrilha
anti-colonial? Como conquistar as ideias das populações? Isso
era chamado "acção psico-social".
NK: Como compreendiam os militares portugueses as guerras coloniais e a
resistência dos povos oprimidos?
Gen. Vasco Gonçalves: Os militares portugueses foram compreendendo que a
solução não podia ser militar, que a guerra não se
ganharia. Além disso o mal estar nas colónias conduziu à
politização. Quero dizer que os movimentos de
libertação das colónias portuguesas deram uma grande
contribuição para a própria libertação do
fascismo e do colonialismo em Portugal. Os militares portugueses foram
reconhecendo que cada luta de cada um destes povos era uma luta justa. Em
contrapartida, a nossa guerra, do ponto de vista de Portugal, era uma guerra
injusta. A guerra colonial não era uma guerra sentida nem querida pelas
próprias massas portuguesas. Do ponto de vista moral os militares
estavam cada vez mais desmotivados na guerra colonial. Também por isso
entre os oficiais e os quadros militares permanentes surgiu o descontentamento
e a oposição contra a guerra colonial. Entre eles, uma minoria
constituiu o Movimento das Forças Armadas (MFA). Isto significa que uma
coisa é o Movimento das Forças Armadas e outra coisa são
as Forças Armadas. O MFA era constituído por uma pequena parte
dos oficiais de carreira e quadros permanentes que elegeram como
profissão a vida militar. As Forças Armadas também eram
constituídas pelos milicianos, os quais, depois de passarem pelo
serviço militar obrigatório, voltavam à vida civil. Estes
últimos só eventualmente eram militares.
NK: Que importância teve a existência destes milicianos?
Gen. Vasco Gonçalves: A participação de milicianos nas
nossas forças era cada vez maior porque não se podia manter
três frentes de batalha ao mesmo tempo. Essa grande
participação de milicianos conduziu também à
consciencialização dos quadros permanentes e dos oficiais de
carreira. Essa foi a sua importância. Além da luta dos povos
coloniais e do descontentamento dos militares portugueses, existia uma grande
efervescência no movimento estudantil. Tudo isto confluiu.
NK: O Movimento das Forças Armadas (MFA) só agrupava os militares
e quadros permanentes ou também incluía os milicianos?
Gen. Vasco Gonçalves: Incluía ambos. Foi a própria
guerra colonial que conduziu a que os quadros permanentes contactassem
imediatamente os quadros milicianos. Como ambos os grupos tinham a mesma vida,
corriam os mesmos riscos na guerra, isso influiu para que houvesse um
intercâmbio de ideias e opiniões entre os quadros profissionais
permanentes e os militares milicianos. Eles, os milicianos, estavam melhor
preparados politicamente que nós, os militares profissionais, porque nas
universidades civis havia uma discussão ideológica,
política e social que não existia nas escolas militares. Por
essa razão os militares milicianos estavam melhor preparados
ideologicamente. Isso conduziu à criação de melhores
condições de maturação na
consciencialização política dos militares e quadros
permanentes.
NK: O Movimento das Forças Armadas (MFA) tinha uma
orientação marxista?
Gen. Vasco Gonçalves: Não, de maneira nenhuma. O MFA não
era um movimento revolucionário. Era um movimento que pretendia
pôr fim à guerra colonial e resolver o problema da
independência das colónias portuguesas que era, na verdade, a
causa da guerra colonial. O fascismo e o colonialismo não podiam
conceder a autonomia e a independência aos povos coloniais. O que
nós pretendíamos era encontrar uma solução
política para a guerra colonial. E a única solução
política consistia no reconhecimento do direito à autonomia e
à independência de todos os povos coloniais. Esse era o nosso
objectivo fundamental. Nesse objectivo a grande maioria dos militares estava de
acordo, e os mais audazes, os mais activos, os que tiveram mais coragem para
tentar alcançar esse objectivo foram os que constituíram o
Movimento das Forças Armadas (MFA).
NK: Quantos eram os que integravam o MFA?
Gen. Vasco Gonçalves: Cerca de 300 ou 400 militares, aproximadamente,
enquanto o conjunto de oficiais permanentes das Forças Armadas era um
total de 7.000 ou 8.000.
NK: O MFA actuava na clandestinidade?
Gen. Vasco Gonçalves: Sim, éramos clandestinos. Nesse momento o
governo fascista já estava muito desgastado e em Portugal havia uma
grande contestação contra o fascismo entre as massas populares e
trabalhadoras. Por isso as reivindicações do Movimento tiveram
uma grande receptividade.
NK: Em que ano nasceu o MFA?
Gen. Vasco Gonçalves: Em 1973. O ditador Salazar já tinha
morrido e o seu sucessor pretendia fazer uma política que aparentemente
era mais "suave", pretendia dar uma cara mais "liberal" ao
fascismo. A nossa situação agravava-se dia a dia. A
situação na guerra colonial piorava a cada momento. Pouco a
pouco o Movimento das Forças Armadas foi colocando as suas
reivindicações a céu aberto. As reuniões de
discussão do Movimento sobre o futuro das Forças Armadas e de
Portugal não eram abertas porque existia uma polícia
política fascista chamada PIDE, que também estava metida dentro
das Forças Armadas. Chegou-se, então, a uma
situação na qual o governo já não tinha poder
suficiente para impor a sua vontade e nós, os oficiais, já
não estávamos dispostos a aceitar todas as ordens.
Começavam a existir as condições subjectivas
necessárias e imprescindíveis para uma revolução.
NK: Está a pensar na análise de Lenine sobre uma
situação revolucionária?
Gen. Vasco Gonçalves: Naturalmente. Estou a pensar exactamente nisso.
Portanto, as múltiplas circunstâncias iam conformando as
condições subjectivas para o triunfo da revolução.
NK: Como foi a ligação entre a ascensão das massas
trabalhadoras e a própria dinâmica das Forças Armadas (MFA)?
Gen. Vasco Gonçalves: Na altura as Forças Armadas em Portugal
não tinham um objectivo de revolução social,
queríamos uma democracia política, melhores
condições de vida para os trabalhadores, melhores
condições para o desenvolvimento da cultura em Portugal... No
conjunto, como Movimento repito e sublinho as palavras "como
Movimento" não estava entre os nossos objectivos fazer uma
revolução socialista. Depois, com o avanço do movimento
popular e das reivindicações populares, e com o impulso da
justeza destas reivindicações, a luta de classes levou-nos ao
projecto da transição para o socialismo. Uma vez, um intelectual
brasileiro disse que nunca tinha visto no mundo um movimento popular nas ruas
como o que tinha visto em Portugal. Um movimento nas ruas com as suas
reivindicações... existia a enorme influência entre os
trabalhadores do Partido Comunista, que era o único partido organizado
politicamente que tinha combatido o fascismo. Uma influência que se
estendia aos trabalhadores rurais. Deste modo foi-se desenvolvendo um processo
de reivindicações populares, que eram justas e que foram
consideradas justas pelos próprios militares. Era assim natural que
esse processo desembocasse, pelo seu próprio desenvolvimento, numa luta
pelo socialismo. Aqueles militares que estavam verdadeiramente identificados
com os interesses populares e com a razão das massas trabalhadoras
dominaram as relações de força dentro do Movimento das
Forças Armadas (MFA). Este último era um movimento
unitário. Tinha como base a necessidade da solução
política do problema colonial. Nisso estávamos todos de acordo,
desde a direita até à esquerda, e isso levou-nos à
conclusão de que para solucionar o problema colonial era
necessário derrubar o governo fascista. A princípio, entre os
nossos camaradas militares, muitos pensavam que se podia impor ao governo
fascista outra solução para o problema colonial, sem necessidade
de o derrubar, mas isso não resultou. Mas logo desde a
formação do Movimento das Forças Armadas, desde o
Verão de 1973 até Abril de 1974, foram amadurecendo as ideias dos
militares. Isto permitiu amadurecer as condições subjectivas, as
condições ideológicas, as condições do
factor subjectivo para derrubar o governo fascista. Nós
concluímos que com aquele governo não era possível chegar
a uma solução política do problema colonial. Tornava-se
necessário derrubar, deitar abaixo o governo fascista para,
então, solucionar o problema colonial negociando com os movimentos de
libertação, como por exemplo o Movimento Popular de
Libertação de Angola (MPLA). O governo fascista-colonialista foi
derrubado pelo Movimento das Forças Armadas e logo nesse momento houve
um vigoroso levantamento popular e nacional.
O impulso das massas populares
e dos trabalhadores, exigindo um empenhamento social e político mais
alargado e profundo do que o inicialmente previsto pelo Movimento das
Forças Armadas fez que a relação de forças dentro
do Movimento fosse favorável aos militares que mais se identificavam com
as aspirações, as reivindicações, os interesses
populares e imprimiu uma dimensão revolucionária ao golpe
militar. Foi nestas condições que surgiu a aliança
Povo-MFA, que foi o motor da revolução. Nessa
acção popular tiveram um papel destacado o Partido Comunista,
outras forças progressistas e o movimento sindical. O MFA era dirigido
por uma Comissão Coordenadora e constituiu uma Junta de
Salvação Nacional que era formada por oficiais generais que, na
sua maioria eram gente de direita, mas que, também, estavam de acordo
com a solução do problema colonial por via pacífica e
através de uma solução política.
NK: A esquerda do Movimento das Forças Armadas (MFA) tinha por objectivo
o projecto da revolução socialista?
Gen. Vasco Gonçalves: Nesse momento ainda não. Havia algumas
pessoas que tinham ideias e mais conhecimentos sobre o socialismo e o marxismo,
mas pensavam que não havia condições em Portugal para
fazer uma revolução socialista. Mas ao longo do processo
revolucionário surgiu uma via de transição para o
socialismo, através da realização das diversas e
sucessivas conquistas populares. Por exemplo, a nacionalização da
banca, a nacionalização dos seguros, a
nacionalização dos principais sectores básicos da
produção industrial, a nacionalização das
principais empresas de transporte e comunicações, a reforma
agrária baseada em unidades colectivas de produção, o
controlo operário, os direitos cívicos, sindicais, laborais e
políticos dos trabalhadores. Todas estas conquistas e direitos foram-se
alcançando e foram modificando as estruturas económicas. Quando
se nacionalizam a banca e as finanças, os seguros e os sectores
básicos da produção, começa-se a caminhar por uma
via de transição para o socialismo. A via de
transição para o socialismo foi surgindo ao longo deste processo
de lutas de classe. O que importa destacar é que, o que surge como um
golpe e um levantamento militar contra o fascismo e o colonialismo vai-se
transformando numa revolução social.
NK: Ao descrever aquele processo revolucionário, do qual agora se
cumprem 30 anos, destaca a perspectiva do socialismo. No entanto, hoje em dia,
três décadas depois, alguns teóricos propõem
recomeçar o projecto do socialismo por uma "terceira via". A
partir da sua experiência política, que opinião tem da
"terceira via"?
Gen. Vasco Gonçalves: Penso que hoje não há espaço
para uma "terceira via". A experiência do passado e do
presente demonstra-nos que a "terceira via" caminha sempre para a
direita, caminha sempre num rumo reformista do capital, para a ideia de uma
suposta "reforma do capital". Não se trata de alcançar
um capitalismo reformado sem superar o capitalismo. O capitalismo não
é reformável, porque as relações sociais nas quais
se baseia, e sem as quais não pode sobreviver, são
intrinsecamente injustas e de exploração do homem pelo homem. A
"terceira via" não persegue conquistas profundas nas
estruturas económicas e sociais. Basta olhar a Inglaterra, a
França e a Alemanha para corroborá-lo. Jospin em França,
Schroeder na Alemanha e Blair na Grã-Bretanha adoptaram na
prática políticas neoliberais e de privatizações.
Todos os que pretendem colocar-se entre o capitalismo e o socialismo, no final
acabam por adoptar políticas neoliberais.
NK: Tendo em conta os processos políticos em que participou, que pensa
da situação que actualmente vive a Venezuela com a
liderança de Hugo Chavez?
Gen. Vasco Gonçalves: Penso que também ali se produziu uma
aliança entre o povo pobre e as Forças Armadas nas
específicas condições geográficas,
económicas e políticas da Venezuela e da América Latina.
Ali também se está a fazer a tentativa de uma via pacífica
e pluralista para o socialismo. O governo do presidente Hugo Chavez
está a partir de um processo institucional, mas está de facto a
fazer uma revolução.
NK: Alguns teóricos recomendam ao presidente Hugo Chavez seguir o
caminho da "terceira via". Na sua opinião é
viável na Venezuela uma "terceira via".
Gen. Vasco Gonçalves: Penso que na Venezuela se está a
desenvolver algo bem distinto de uma "terceira via". Ali não
há "terceira via" mas o desenvolvimento, de facto, de um
processo institucional, através das instituições e do voto
popular para a revolução e para o socialismo, não para a
"terceira via". Isto é o que eu penso. Para que isso se
consiga, é necessário que as Forças Armadas apoiem as
reivindicações populares, sociais e políticas. Dentro das
Forças Armadas os sectores mais progressistas têm
predomínio nas relações de força. Quando houve um
golpe contra Chavez e o prenderam, quem o libertou? A acção
popular e uma fracção das Forças Armadas que estava do seu
lado. Na Venezuela há camadas com bases sociais de apoio entre a
população civil. Apoio entre os militares e os civis. Creio que
a Venezuela se está a transformar, por uma via pacífica e
pluralista, através de um processo de caminho para a
revolução e o socialismo. Digo "via pacífica e
pluralista" porque na Venezuela não há presos
políticos, não há partidos políticos proibidos nem
nada disso. Nem sequer os golpistas foram presos. Não é verdade?
NK: Sim é verdade. Mas a via pacífica para o socialismo, para
lhe dar um exemplo, não teve graves consequências no fracasso da
experiência do Chile em 1973? Não se corre esse perigo?
Gen. Vasco Gonçalves: Sim, Chile, claro que sim! Por isso mesmo
ninguém pode dizer que está consolidada a via pacífica e
institucional de transição para o socialismo na Venezuela.
Não penso que a Venezuela não possa sofrer ou padecer com
problemas de contra-revolução; problemas de
intervenção dos Estados Unidos, problemas de
manipulação das massas populares. Penso que o que se está
a passar na Venezuela não exclui que haja grandes ameaças para a
democratização, a revolução e o futuro caminho para
o socialismo. Na Venezuela também há um processo. A mim
dá-me a impressão que esse processo tem cada vez mais apoio
popular. Isso verificou-se no recente processo do referendo
revogatório. A maioria de apoio a Chavez aumentou. Por isso, quem
está de fora como eu, tem a impressão que esta
revolução na Venezuela avança, que tem cada vez mais apoio
social. Passam-se coisas que também sucederam em Portugal como a
acção dos militares entre a população, as campanhas
de dinamização cultural do povo feita pelos militares. Na
Venezuela o governo está ocupado em grandes tarefas sociais que
têm que ver com a melhoria da vida das populações, com a
melhoria das infraestruturas e o problema do acesso popular a estas, das
organizações, da instrução, da saúde
pública, etc. Na Venezuela os militares estão muito empenhados
nisso. Nós, em Portugal, também nos esforçámos
fortemente nesse sentido.
NK: Hugo Chavez e a Venezuela receberam um apoio maciço por parte de
Fidel Castro e do povo cubano. Que opinião tem da
revolução cubana?
Gen. Vasco Gonçalves: Penso que a revolução cubana
é um exemplo de que é possível resistir, quando existe
vontade política para isso e o apoio das massas. Cuba demonstra que a
resistência ao imperialismo, a resistência aos Estados Unidos e ao
resto dos países imperialistas, é possível. Claro que
isso exige sacrifícios. Isso obriga a ter muita consciência
política e muita consciência social. Penso que a
revolução cubana é um exemplo para todo o mundo, para
todos nós. Tanto Cuba como a Venezuela são exemplos para todos
aqueles que querem um mundo melhor. Eu, como português, estou
profundamente agradecido à revolução cubana e não
tenho a menor dúvida de que Cuba é um exemplo para todo o mundo.
Um exemplo de que é possível resistir ao avanço do sistema
capitalista e à sua globalização e, inclusivamente, ao
poder militar mais poderoso de toda a história, porque a
"mão invisível" da globalização
não é a de Adam Smith mas a força militar dos Estados
Unidos e, numa forma subsidiária, da Nato. A revolução
cubana demonstra que a política neoliberal não é uma
fatalidade nem inelutável. Tenho plena confiança que a
revolução cubana não baixará os braços e
continuará resistindo.
NK: Como militar e tendo em conta o seu grau de general, qual é a sua
opinião sobre militares como o general Videla, sobre Pinochet, sobre
Stroessner?
Gen. Vasco Gonçalves: Naturalmente que esses militares são uns
criminosos. Tenho a pior impressão de todos eles. Não tenho a
menor dúvida de que são uns criminosos e uns assassinos.
Criminosos de guerra! Assassinos! Não os podemos conceber de maneira
que não seja como autênticos assassinos.
Notas
[1] Depreciativo de civil (nota do tradutor).
[2]
O Partido Socialista é recente, formou-se em 1973 e fora de Portugal,
na Alemanha Ocidental (nota de N. K.).
[*]
Filósofo, professor da Universidade Madres de la Plaza de Mayo, Argentina
O original desta entrevista encontra-se em
http://www.rebelion.org/noticia.php?id=6742
. Traduzido por JPG.
Esta entrevista encontra-se em
http://resistir.info
.
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