Como funcionam os Hospitais SA:

— a mercantilização e privatização da saúde é ali inevitável

por Eugénio Rosa

Na 2ª semana de Janeiro de 2004 os órgãos de comunicação social divulgaram com “espanto e indignação “ que “Hospitais SA podem privilegiar doentes vindos das seguradoras”. E referiram o caso do Centro Hospitalar do Alto do Minho que compreende os Hospitais de Viana do Castelo e de Ponte Lima que andaria a contactar companhias de seguro oferecendo “um atendimento mais atempado, célere e personalizado”. Na mesma altura a Ordem Médicos e a Associação dos Administradores Hospitalares protestavam contra tal procedimento considerando que ele violava a Constituição da República na medida em que os doentes privados teriam prioridade em relação aos do Serviço Nacional de Saúde. Igualmente vários partidos políticos exigiram a presença do ministro da Saúde na Assembleia da República para prestar explicações.

No entanto, para quem tenha acompanhado e estudado as medidas tomadas pelo actual governo no campo da saúde, nomeadamente as que se relacionam com os chamados Hospitais SA, que são já 31, certamente o caso referido anteriormente não provoca qualquer surpresa.

E isto porque já teria concluído que os utentes do SNS, nos Hospitais SA, acabariam inevitavelmente por serem discriminados em relação aos utentes dos serviços privados de saúde e dos chamados subsistemas (SMAS, ADSE, etc), devido à lógica económica e financeira imposta pelo governo a esses hospitais assim como a disposições contidas nos vários instrumentos jurídicos que regulam o seu funcionamento. É precisamente isso que vamos procurar explicar e provar neste pequeno estudo.

HOSPITAIS SA ENDIVIDADOS À NASCENÇA

Os chamados Hospitais SA foram criados, cada um deles, com um capital inicial de apenas 29.930.000 de euros, ou seja, cerca de 6 milhões de contos.

No entanto, na mesma altura foram transferidos para esses hospitais as dívidas que eles tinham acumulado ao longo dos anos, ou seja, enquanto não eram Hospitais SA, o que determinou, relativamente a quase todos, que aquele reduzido capital inicial – 29,9 milhões de euros – acabasse por ser rapidamente absorvido no pagamento dessas dívidas, ficando esses hospitais sem os meios financeiros necessários ao seu funcionamento, e passando a acumularem dividas que o Estado se recusa a suportar.

Por exemplo, de acordo com notícias publicadas no Jornal de Negócios de 30/Out/2003, só 17 Hospitais SA deviam já 156 milhões de euros a 48 laboratórios farmacêuticos no fim de Setembro de 2003, sendo 101 milhões de euros a mais de 90 dias, e os fornecedores ameaçavam, se aquelas dividas não fossem pagas ou se o Estado não as garantisse, cortar os fornecimentos àqueles hospitais.

Por outro lado, de acordo com a lei que criou estes hospitais, eles teriam “até ao fim de 2003, de realizar a avaliação dos seus bens, sendo o valor do capital social alterado de acordo com o necessário”.

Como muitos deles possuem patrimónios valiosos adquirido com fundos públicos (por ex., terrenos, instalações, etc), o que se pretende é aumentar significativamente, com base numa simples operação contabilística, o capital social desses hospitais, sem haver qualquer entrada de dinheiro, para assim já se poderem endividar junto à banca.

E isto porque de acordo também com os seus estatutos, “ o endividamento do hospital não pode ser superior a 30% do capital social”, portanto aumentando artificialmente esse capital já se pode aumentar o endividamento.

Desta forma, com uma única cajadada pretende-se alcançar dois objectivos: - Por um lado, criam-se as condições para que os Hospitais SA recorram ao endividamento libertando assim o Orçamento do Estado das suas obrigações financeiras e ajudando o governo a cumprir desta “forma habilidosa” a obsessão do défice dos 3%; por outro lado, criam-se os mecanismos económicos e financeiros que acabam por justificar e “obrigar” esses hospitais a entrar no campo da comercialização dos serviços de saúde pelo melhor preço, pois se o não fizerem a banca apoderar-se-á do seu património mais valioso.

E esta intenção é tão clara que a própria lei, que transformou os 34 hospitais públicos em 31 hospitais SA, estabelece que estes podem “explorar os serviços e efectuar as operações civis e comerciais relacionadas directa ou indirectamente, no todo ou em parte, com o seu objecto”, que é a saúde.

Isto significa que estes hospitais poderão legalmente vender serviços de saúde a clientes que não pertençam ao Serviço Nacional de Saúde. É evidente que para os captar e para poderem fixar preços mais elevados do que aqueles que são pagos pelo SNS é necessário que esses hospitais criem “um atendimento mais atempado, célere e personalizado”, discriminando os utentes do Serviço Nacional. É a própria lógica económica e financeira dura que o governo introduziu nestes hospitais que leva inevitavelmente a isso.

Pensar que é possível ter estes hospitais, que são sociedades anónimas (SA quer dizer precisamente sociedade anónima, e é necessário que não seja esquecido) a funcionar de acordo com o interesse público é tomar os desejos pela realidade.

E não se pense que será uma entidade reguladora que conseguirá inverter esta lógica económica e financista agravada por uma envolvente em que as restrições orçamentais se transformaram em deusa toda poderosa. Para concluir isso, basta ter presente o papel das entidades reguladoras que existem em outros sectores da actividade económica do País e que nada têm conseguido fazer para impedir a pratica de preços que são dos mais elevados em toda a UE15 como acontece no da electricidade.

OS HOSPITAIS SA GANHAM MAIS SE PRODUZIREM MENOS,
E SÃO FORTEMENTE PENALIZADOS QUANDO PRODUZIREM MAIS


Os contratos programas que o Ministério da Saúde, através da chamada Unidade de Missão, está a impor aos Hospitais SA fomenta a mercantilização, a privatização da saúde e a discriminação dos utentes do Serviço Nacional de Saúde.

Para provar isso vai-se analisar os pontos mais importantes de um desses contratos programa: -- o de um hospital SA da região de Lisboa assinado em 2003. Os contratos impostos aos outros hospitais são naturalmente semelhantes até porque este tem o título — “CONTRATO PROGRAMA PARA OS HOSPITAIS SA”.— que mostra que é um contrato tipo normalizado que se aplica a todos os Hospitais SA, embora depois adaptando-o às características concretas de cada um deles.

De acordo com a cláusula segunda desse contrato, o Hospital obriga-se a “produzir” 76.800 prestações de saúde (5.800 Altas/Internamentos, 69.700 Consultas Externas e 1.400 Outras) pelas quais receberá cerca de 35 milhões de euros. No entanto, esta produção respeita “apenas aos beneficiários do Serviço Nacional de Saúde”, pois os chamados subsistemas públicos e privados são “outro negócio” que não têm quaisquer limites.

De acordo com a cláusula oitava do contrato programa (Revisão dos valores), se o hospital realizar menos internamentos e consultas externas do que as constantes do contrato programa, aos 35 milhões de euros serão deduzidas as seguintes importâncias calculadas da seguinte forma: (1) Por cada internamento realizado a menos será descontado 41% do preço estabelecido para aquele acto de saúde, ou seja, 873 euros recebendo o hospital a restante parcela que é 1.256,44 euros; (2) Por cada consulta externa realizada a menos será descontado 41% no preço estabelecido por este acto de saúde, ou seja, 25,19 euros recebendo no entanto o hospital a restante parcela que são 36,26 euros, etc.

Em resumo, até à produção contratada ou acordada, mesmo que a não realize totalmente, o Hospital SA receberá por cada internamento não realizado 1256,44 euros, e por cada consulta não realizada 36,19 euros, ou seja, em qualquer um dos casos mais do que é descontado.

E se a sua produção for superior à contratada ou acordado, por ex., até a 10% – De acordo com a mesma clausula do contrato programa o Hospital receberá por cada internamento realizado a mais apenas 30% do preço estabelecido para essa prestação de saúde, ou seja, apenas 638,83 euros, e por cada consulta realizada acima da meta de produção receberá apenas 31% do preço fixado para esse acto de saúde, ou seja, 19,05 euros.

Embora pareça absurdo isto consta do contrato que o governo está a impor aos Hospitais SA.

Mas coloquemos num quadro tudo aquilo que se acabou de referir para que fique mais claro para o leitor, porque depois serão mais facilmente compreensíveis as consequências inevitáveis da lógica económica e financeira que o governo está a impor aos Hospitais SA.

Quadro I – Preços pagos pelo Serviço Nacional de Saúde (SNS) aos Hospitais SA quando a sua produção não coincidir com a meta contratada

DESIGNAÇÃO Internamento Consulta externa Hospital de dia
Quando não atingem a meta de produção acordada:
Preço pago pelo Estado (SNS) por cada unidade não realizada até à produção contratada
1.256 euros que é igual a 59% do preço estabelecido 36 euros que é igual a 59% do preço estabelecido Igual a 38% do preço estabelecido
Quando ultrapassam a meta de produção acordada:
Preço pago pelo Estado (SNS) por cada unidade realizada acima da produção contratada
638 euros que é igual a 30% do preço estabelecido 28 euros que é igual a 31% do preço estabelecido Igual a 55% do preço estabelecido

Como os dados do quadro I mostram com clareza, quando um Hospital SA ultrapassa o objectivo de produção, no lugar de ser premiado, é fortemente penalizado. Recebe apenas 30% do preço estabelecido por cada internamento realizado a mais, 31% do preço estabelecido por cada consulta externa feita a mais, e apenas 55% do preço estabelecido por cada hospital de dia realizado acima da meta de produção estabelecida para o ano em referência.

Mas o absurdo desta situação não fica por aqui. Como também mostram os dados do quadro I, o Hospital SA recebe mais por não fazer do que por realizar mais produção. Assim, por cada “Internamento” que faça abaixo da meta de produção do ano recebe 1.256 euros, enquanto por cada internamento que realize acima da meta de produção receberá apenas 638 euros, ou seja, cerca de metade. Em relação a consultas externas, por cada consulta produzida a menos o Hospital SA recebe 36 euros, enquanto que por cada consulta produzida acima da meta de produção receberá apenas 28 euros.

E o que pretende o governo quando estabelece um quadro de funcionamento e de financiamento desta natureza? Apenas o seguinte:
(1) Impedir que os Hospitais SA prestem serviços de saúde à população servida pelo Serviço Nacional de Saúde acima da chamada produção contratada que é imposta pelo governo a esses hospitais tendo em conta objectivos financeiros e orçamentais, porque se ultrapassarem essa produção serão fortemente penalizados (receberão apenas uma parte dos custos, tendo de suportar a parcela mais importante, que no caso do internamento e das consultas ronda os 70%;
(2) Pressionar os Hospitais SA para que produzam mesmo menos que o estabelecido para o ano, pois assim por cada unidade não produzida receberão mais do que receberiam por produzir uma unidade a mais acima da meta de produção;
(3) Libertar capacidade de produção para assim criar as condições necessárias para que a mercantilização da saúde se possa desenvolver de uma forma rápida no nosso País utilizando meios adquiridos com fundos públicos e limitando assim o acesso à saúde a muitos portugueses por razões económicas, em clara violação do artº 64% da Constituição da Republica, que estabelece que esse direito deverá ser assegurado a todos os portugueses de uma forma “tendencialmente gratuita”.

COMO SERÃO PAGOS OS HOSPITAIS SA EM 2004

E o que é que está previsto para 2004? De acordo com o Relatório do Orçamento de Estado para 2004, “os Hospitais SA serão financiados com base num contrato-programa plurianual celebrado entre o Ministério da Saúde e o Hospital; e será utilizada uma tabela de preços com base na qual o SNS pagará a esses hospitais; e essa “tabela de preços foi calculada com base nas produções contratadas, com uma margem de 10%. Acima desse patamar é pago apenas o custo marginal” (pág. 28, Relatório do OE para 2004).

Trocando isto por miúdos, como se costuma dizer, o que é que significa o que está escrito no Relatório do OE de 2004? – Precisamente o seguinte:- O Ministério da Saúde, através da chamada Unidade de Missão, negociará com cada um dos Hospitais SA um contrato plurianual que terá um objectivo de produção (nº de consultas, nº de internamentos, e nº de hospitais de dia) que o hospital terá de realizar (a chamada produção contratada) pelo qual receberá um determinado valor (o valor contratado).

Se executar mais do que 10% que a produção contratada, por cada prestação de saúde realizada a mais a utentes do Serviço Nacional de Saúde, ele receberá “apenas o chamado custo marginal”, ou seja, 30% do preço estabelecido para o acto de saúde se for um internamento, 31% se for uma consulta externa, e 55% se for um hospital de dia. A restante parcela de custos que diz respeito nomeadamente a instalações, a equipamentos, etc, terão de ser suportados pelo próprio Hospital SA, o que os obrigaria a procurar receitas fora do SNS, portanto através de prestação de serviços de saúde a privados..

Embora o Relatório do Orçamento de 2004 nada diga o que acontece quando os Hospitais SA produzem menos que a produção contratada é de prever, à semelhança do que sucedeu em 2003, que eles sejam premiados. Talvez isto ajude a explicar a celebre poupança que consta da propaganda paga pelo Ministério da Saúde que saiu em todos os jornais relativa aos “Resultados do 1º Ano de Empresarialização – Hospitais SA”

OUTROS CASOS QUE CONFIRMAM A MERCANTILIZAÇÃO CRESCENTE DA SAÚDE NOS HOSPITAIS SA

Á medida que passa o tempo e que o quadro jurídico exposto anteriormente e o tipo de gestão a ele associado se vai implementando, multiplicam-se os casos concretos de mercantilização e privatização da saúde nos Hospitais SA que vêm a publico.

Os órgãos de comunicação social e profissionais da saúde referem-se quase todos os dias a novos casos.

Assim, a Visão numa reportagem publicada em 20/Nov/2003 sobre os Hospitais SA relatava o seguinte: “ O Hospital de Viseu é uma carta fora do baralho. A administração demitiu-se quando viu que o contrato lhe destinava bem menos do que os 78 milhões de euros do ano passado. Mesmo incluindo todas as receitas, ficarão com menos 25% do que desejaria para manter a qualidade do hospital. Internamente, a situação de aperto obrigaria a cortar em tudo, desde serviços, à produção e mesmo ao hospital. A nova administração é presidida por Clara Lima, uma inspectora das Finanças”.

No Hospital Garcia da Horta em Almada, um Hospital também SA, “o contrato programa não prevê qualquer verba para investimento. Agora, há que puxar pela imaginação, afirma o presidente da administração. O Sporting instalou um centro de estágio na Academia do Alcochete. Pois ele decidiu procurar aquele clube para lhe propor que faça no Garcia da Orta os exames de ressonância magnética que precise”.

Mas casos como este de mercantilização crescente da saúde nos Hospitais SA multiplicam-se empurrados pelo garrote da lógica económica e financeira imposto a estes hospitais.

Mas as consequências daquela lógica tomam também outras formas, algumas delas até chocantes.

Por ex., no Hospital de S. Teotónio de Viseu o Departamento de Psiquiatria vinha realizando uma actividade pioneira no apoio domiciliário/comunitário de mais de 400 doentes crónicos, reduzindo assim o número de camas necessárias, evitando ter doentes crónicos residentes e reinternamentos e recursos a urgência, fazendo prevenção e educação para a saúde e melhorando a qualidade de vida dos doentes, o que deve ser o objectivo fundamental de qualquer política verdadeira de saúde. No entanto, o chamado Grupo de Missão informou a anterior administração do hospital que essa actividade não seria financiada o que levará à sua extinção. No Hospital de Beja, é voz corrente entre os profissionais que no serviço de medicina, por ex., para poupar até se reduziu o número de vezes de substituição de fraldas a acamados; e os louvores neste hospital são dados fundamentalmente aos que conseguem reduzir custos e não aos que prestassem serviços de qualidade.

É NECESSÁRIO MUDAR PARA INVERTER A MERCANTILIZAÇÃO CRESCENTE DA SAÚDE NOS HOSPITAIS SA

Uma coisa são os contratos programa, ou seja, a fixação de objectivos de prestações de saúde, com base na qual as entidades de saúde são financiadas, e a responsabilização pelo seu cumprimento; e outra coisa bem diferente é a lógica económica e financeira dura que se está a impor aos Hospitais SA com o objectivo claro de transformar o bem saúde numa mercadoria, só acessível a quem a possa pagar em clara violação da Constituição, e também com o objectivo de privatizar um numero crescente de serviços desses hospitais.

E não é possível mudar a forma de funcionamento destes Hospitais SA sem antes mudar o quadro jurídico e financeiro que lhe foi imposto.

Efectivamente, enquanto for permitido a estes hospitais comercializar os serviços de saúde que prestam, procurando clientes privados para obter melhor preço; enquanto, forem fortemente penalizados quando ultrapassam as metas de produção, e premiados quando as não atinjam; enquanto se fomentar a degradação da qualidade nos serviços de saúde como forma de aumentar a margem e os resultados financeiros como decorre dos próprios contratos programa; enquanto não se dotar estes hospitais dos meios financeiros adequados de forma que não sejam obrigados a cometer as perversões anteriores; tudo isto acompanhado pela negociação e assinatura de contratos programas com cada um dos hospitais baseados em princípios de eficácia, eficiência e de responsabilização, e no fim de cada ano numa avaliação efectiva do executado com consequências práticas e imediatas para todas as partes envolvidas, então o direito à saúde garantido pela Constituição da República a todos os portugueses está em perigo, e pode-se transformar crescentemente num direito meramente formal.

Finalmente, agradecemos a todos os leitores que enviem, por um lado, as suas opiniões mesmo criticas sobre este pequeno estudo para o melhorarmos e, por outro lado, casos de mercantilização da saúde que eventualmente tenham tido conhecimento para que assim se possa acompanhar de uma forma mais completa o que se está a passar no nosso país num sector que é fundamental para todos os portugueses, para o endereço edr@netcabo.pt .

Loures, 10 de Janeiro de 2004
  • Resolução do CM que cria Hospitais SA .

    Este artigo encontra-se em http://resistir.info .
  • 14/Jan/04