Como funcionam os Hospitais SA: a mercantilização e privatização da saúde é ali inevitável
por Eugénio Rosa
Na 2ª semana de Janeiro de 2004 os órgãos de
comunicação social divulgaram com espanto e
indignação que Hospitais SA podem privilegiar
doentes vindos das seguradoras. E referiram o caso do Centro Hospitalar
do Alto do Minho que compreende os Hospitais de Viana do Castelo e de Ponte
Lima que andaria a contactar companhias de seguro oferecendo um
atendimento mais atempado, célere e personalizado. Na mesma
altura a Ordem Médicos e a Associação dos Administradores
Hospitalares protestavam contra tal procedimento considerando que ele violava a
Constituição da República na medida em que os doentes
privados teriam prioridade em relação aos do Serviço
Nacional de Saúde. Igualmente vários partidos políticos
exigiram a presença do ministro da Saúde na Assembleia da
República para prestar explicações.
Como os dados do quadro I mostram com clareza, quando um Hospital SA ultrapassa o objectivo de produção, no lugar de ser premiado, é fortemente penalizado. Recebe apenas 30% do preço estabelecido por cada internamento realizado a mais, 31% do preço estabelecido por cada consulta externa feita a mais, e apenas 55% do preço estabelecido por cada hospital de dia realizado acima da meta de produção estabelecida para o ano em referência. Mas o absurdo desta situação não fica por aqui. Como também mostram os dados do quadro I, o Hospital SA recebe mais por não fazer do que por realizar mais produção. Assim, por cada Internamento que faça abaixo da meta de produção do ano recebe 1.256 euros, enquanto por cada internamento que realize acima da meta de produção receberá apenas 638 euros, ou seja, cerca de metade. Em relação a consultas externas, por cada consulta produzida a menos o Hospital SA recebe 36 euros, enquanto que por cada consulta produzida acima da meta de produção receberá apenas 28 euros. E o que pretende o governo quando estabelece um quadro de funcionamento e de financiamento desta natureza? Apenas o seguinte: (1) Impedir que os Hospitais SA prestem serviços de saúde à população servida pelo Serviço Nacional de Saúde acima da chamada produção contratada que é imposta pelo governo a esses hospitais tendo em conta objectivos financeiros e orçamentais, porque se ultrapassarem essa produção serão fortemente penalizados (receberão apenas uma parte dos custos, tendo de suportar a parcela mais importante, que no caso do internamento e das consultas ronda os 70%; (2) Pressionar os Hospitais SA para que produzam mesmo menos que o estabelecido para o ano, pois assim por cada unidade não produzida receberão mais do que receberiam por produzir uma unidade a mais acima da meta de produção; (3) Libertar capacidade de produção para assim criar as condições necessárias para que a mercantilização da saúde se possa desenvolver de uma forma rápida no nosso País utilizando meios adquiridos com fundos públicos e limitando assim o acesso à saúde a muitos portugueses por razões económicas, em clara violação do artº 64% da Constituição da Republica, que estabelece que esse direito deverá ser assegurado a todos os portugueses de uma forma tendencialmente gratuita. COMO SERÃO PAGOS OS HOSPITAIS SA EM 2004 E o que é que está previsto para 2004? De acordo com o Relatório do Orçamento de Estado para 2004, os Hospitais SA serão financiados com base num contrato-programa plurianual celebrado entre o Ministério da Saúde e o Hospital; e será utilizada uma tabela de preços com base na qual o SNS pagará a esses hospitais; e essa tabela de preços foi calculada com base nas produções contratadas, com uma margem de 10%. Acima desse patamar é pago apenas o custo marginal (pág. 28, Relatório do OE para 2004). Trocando isto por miúdos, como se costuma dizer, o que é que significa o que está escrito no Relatório do OE de 2004? Precisamente o seguinte:- O Ministério da Saúde, através da chamada Unidade de Missão, negociará com cada um dos Hospitais SA um contrato plurianual que terá um objectivo de produção (nº de consultas, nº de internamentos, e nº de hospitais de dia) que o hospital terá de realizar (a chamada produção contratada) pelo qual receberá um determinado valor (o valor contratado). Se executar mais do que 10% que a produção contratada, por cada prestação de saúde realizada a mais a utentes do Serviço Nacional de Saúde, ele receberá apenas o chamado custo marginal, ou seja, 30% do preço estabelecido para o acto de saúde se for um internamento, 31% se for uma consulta externa, e 55% se for um hospital de dia. A restante parcela de custos que diz respeito nomeadamente a instalações, a equipamentos, etc, terão de ser suportados pelo próprio Hospital SA, o que os obrigaria a procurar receitas fora do SNS, portanto através de prestação de serviços de saúde a privados.. Embora o Relatório do Orçamento de 2004 nada diga o que acontece quando os Hospitais SA produzem menos que a produção contratada é de prever, à semelhança do que sucedeu em 2003, que eles sejam premiados. Talvez isto ajude a explicar a celebre poupança que consta da propaganda paga pelo Ministério da Saúde que saiu em todos os jornais relativa aos Resultados do 1º Ano de Empresarialização Hospitais SA OUTROS CASOS QUE CONFIRMAM A MERCANTILIZAÇÃO CRESCENTE DA SAÚDE NOS HOSPITAIS SA Á medida que passa o tempo e que o quadro jurídico exposto anteriormente e o tipo de gestão a ele associado se vai implementando, multiplicam-se os casos concretos de mercantilização e privatização da saúde nos Hospitais SA que vêm a publico. Os órgãos de comunicação social e profissionais da saúde referem-se quase todos os dias a novos casos. Assim, a Visão numa reportagem publicada em 20/Nov/2003 sobre os Hospitais SA relatava o seguinte: O Hospital de Viseu é uma carta fora do baralho. A administração demitiu-se quando viu que o contrato lhe destinava bem menos do que os 78 milhões de euros do ano passado. Mesmo incluindo todas as receitas, ficarão com menos 25% do que desejaria para manter a qualidade do hospital. Internamente, a situação de aperto obrigaria a cortar em tudo, desde serviços, à produção e mesmo ao hospital. A nova administração é presidida por Clara Lima, uma inspectora das Finanças. No Hospital Garcia da Horta em Almada, um Hospital também SA, o contrato programa não prevê qualquer verba para investimento. Agora, há que puxar pela imaginação, afirma o presidente da administração. O Sporting instalou um centro de estágio na Academia do Alcochete. Pois ele decidiu procurar aquele clube para lhe propor que faça no Garcia da Orta os exames de ressonância magnética que precise. Mas casos como este de mercantilização crescente da saúde nos Hospitais SA multiplicam-se empurrados pelo garrote da lógica económica e financeira imposto a estes hospitais. Mas as consequências daquela lógica tomam também outras formas, algumas delas até chocantes. Por ex., no Hospital de S. Teotónio de Viseu o Departamento de Psiquiatria vinha realizando uma actividade pioneira no apoio domiciliário/comunitário de mais de 400 doentes crónicos, reduzindo assim o número de camas necessárias, evitando ter doentes crónicos residentes e reinternamentos e recursos a urgência, fazendo prevenção e educação para a saúde e melhorando a qualidade de vida dos doentes, o que deve ser o objectivo fundamental de qualquer política verdadeira de saúde. No entanto, o chamado Grupo de Missão informou a anterior administração do hospital que essa actividade não seria financiada o que levará à sua extinção. No Hospital de Beja, é voz corrente entre os profissionais que no serviço de medicina, por ex., para poupar até se reduziu o número de vezes de substituição de fraldas a acamados; e os louvores neste hospital são dados fundamentalmente aos que conseguem reduzir custos e não aos que prestassem serviços de qualidade. É NECESSÁRIO MUDAR PARA INVERTER A MERCANTILIZAÇÃO CRESCENTE DA SAÚDE NOS HOSPITAIS SA Uma coisa são os contratos programa, ou seja, a fixação de objectivos de prestações de saúde, com base na qual as entidades de saúde são financiadas, e a responsabilização pelo seu cumprimento; e outra coisa bem diferente é a lógica económica e financeira dura que se está a impor aos Hospitais SA com o objectivo claro de transformar o bem saúde numa mercadoria, só acessível a quem a possa pagar em clara violação da Constituição, e também com o objectivo de privatizar um numero crescente de serviços desses hospitais. E não é possível mudar a forma de funcionamento destes Hospitais SA sem antes mudar o quadro jurídico e financeiro que lhe foi imposto. Efectivamente, enquanto for permitido a estes hospitais comercializar os serviços de saúde que prestam, procurando clientes privados para obter melhor preço; enquanto, forem fortemente penalizados quando ultrapassam as metas de produção, e premiados quando as não atinjam; enquanto se fomentar a degradação da qualidade nos serviços de saúde como forma de aumentar a margem e os resultados financeiros como decorre dos próprios contratos programa; enquanto não se dotar estes hospitais dos meios financeiros adequados de forma que não sejam obrigados a cometer as perversões anteriores; tudo isto acompanhado pela negociação e assinatura de contratos programas com cada um dos hospitais baseados em princípios de eficácia, eficiência e de responsabilização, e no fim de cada ano numa avaliação efectiva do executado com consequências práticas e imediatas para todas as partes envolvidas, então o direito à saúde garantido pela Constituição da República a todos os portugueses está em perigo, e pode-se transformar crescentemente num direito meramente formal. Finalmente, agradecemos a todos os leitores que enviem, por um lado, as suas opiniões mesmo criticas sobre este pequeno estudo para o melhorarmos e, por outro lado, casos de mercantilização da saúde que eventualmente tenham tido conhecimento para que assim se possa acompanhar de uma forma mais completa o que se está a passar no nosso país num sector que é fundamental para todos os portugueses, para o endereço edr@netcabo.pt .
Loures, 10 de Janeiro de 2004
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