Manual da OCDE para governos neoliberais
por Rui Viana Pereira
A OCDE
[1]
publicou ao longo da década de 1990 uma série de cadernos
onde estuda casos concretos de aplicação de medidas de
antipopulares em vários países da América Latina,
África e Ásia. Em 1996 sai o
Caderno de Política Económica
n.º 13, intitulado "A Viabilidade da Política de
Ajustamento"
[2]
, da autoria de Christian Morrisson, que assenta em estudos de casos de sucesso
(ou de fracasso) na aplicação de políticas neoliberais.
Note-se que os termos "neoliberal" e "austeridade" jamais
são mencionados, mas na realidade é disso mesmo que a
publicação trata: como governar com medidas antipopulares,
neoliberais, de austeridade, sofrendo um mínimo de custos
políticos. Foi escrito antes de rebentar a crise financeira mundial de
2007-2008 e assenta no estudo de vários países
periféricos, mas continua actual e vivo, tanto nos países
periféricos como nos países centrais.
Como qualquer bom manual, "A Viabilidade da Política de
Ajustamento" é autoexplicativo e dispensa comentários. Ajuda
a sintetizar o rumo da governação nos últimos 25 anos e
só por isso é merecedor de atenção, desde que
não nos esqueçamos dos objectivos que serve: melhorar o
desempenho da governação neoliberal e das medidas de austeridade.
[3]
"O Centro de Desenvolvimento procura, nas suas actividades de
investigação, identificar e analisar os problemas que irão
levantar-se a médio prazo e cujas implicações dizem
respeito tanto aos países Membros da OCDE como aos países
não membros, apontando linhas de acção para facilitar a
elaboração das políticas adequadas." (Morrisson,
"A Viabilidade da Política de Ajustamento", 1996, p. 3, sempre
com referência à edição francesa deste caderno)
"As políticas de estabilização económica e de
ajustamento podem provocar convulsões sociais ou até pôr em
perigo a estabilidade dos países. Neste Caderno de política
económica são analisadas as consequências políticas
de tais programas." (p. 3)
[A nossa investigação] "permitiu definir e precisar as
características de um programa de estabilização
politicamente optimizado que minimize os custos políticos para
alcançar um determinado resultado económico." (p. 3)
Mais adiante, a propósito do equilíbrio macroeconómico,
nomeadamente a balança de pagamentos:
"Graças ao impulso dado por organizações
internacionais, as medidas de estabilização passaram a ser
completadas por medidas de ajustamento estrutural, como sejam a
redução dos direitos alfandegários, a
desregulamentação dos mercados financeiros ou a supressão
das distorções nos preços agrícolas. Esta
distinção entre a estabilização e o ajustamento
estrutural é politicamente importante." (p. 5)
"De facto, um
programa de estabilização
tem um carácter de urgência e inclui necessariamente muitas
medidas impopulares, uma vez que reduz brutalmente os rendimentos e os consumos
das famílias, ao diminuir os salários dos funcionários
públicos, os subsídios ou o emprego na construção
civil. Em contrapartida, as
medidas de ajustamento estrutural
podem ser faseadas ao longo de vários anos e cada medida gera ao
mesmo tempo ganhadores e perdedores, de forma que o governo pode apoiar-se
facilmente numa coligação de beneficiários para defender a
sua política." (p. 5, sublinhados meus)
"A aplicação de programas de ajustamento em dezenas de
países durante os anos 1980 evidenciou que a dimensão
política do ajustamento tinha sido negligenciada. [
] Foi por isso
necessário reconhecer que o sucesso económico do ajustamento
depende da viabilidade política. Um programa interrompido por greves
redunda em fracasso; um programa aplicado à custa de uma
repressão que provoca centenas de mortos é igualmente um
fracasso." (p. 6)
"É evidente que a supressão dos subsídios a um
produto consumido apenas pelas famílias pobres, com o objectivo de obter
um ganho orçamental modesto, simboliza o tipo de medidas ineficazes,
tendo em conta os seus custos." (p. 7)
"Os problemas políticos levantados pelas [medidas de ajustamento
estrutural] são muito diferentes dos que derivam de um programa de
estabilização. As reformas estruturais arrastam-se no tempo e as
suas consequências fazem-se sentir com algum atraso. Estas reformas
não provocam um 'efeito de choque', como sucede com uma subida
de preços na ordem dos 50 % para os produtos alimentares.
Além disso, a maior parte das reformas atinge certos grupos mas ao mesmo
tempo beneficia outros, de forma que é sempre possível recorrer a
uma coligação dos grupos ganhadores contra os grupos
perdedores." (p. 18)
Os actores em jogo num programa de ajustamento estrutural, segundo os cadernos
políticos da OCDE
Christian Morrisson define assim os factores em jogo: "o governo, os
grupos sociais, os agentes económicos (tanto os produtores como os
consumidores) e o exterior (organizações internacionais ou
países doadores)" (p. 8).
[4]
No caso português os grupos exteriores são o FMI, a
Comissão Europeia, o Banco Central Europeu (BCE) e os mecanismos de
"ajuda" e "estabilidade" económica e financeira
europeus (MEE, FEEF, etc.)
[5]
, que representam directamente os interesses do capital financeiro.
Quanto aos agentes sociais em jogo, o manual avisa que
"As populações urbanas podem, mais facilmente do que as
populações rurais, pôr em marcha acções
colectivas. Entre as populações urbanas, certos assalariados
têm maior poder de negociação, caso trabalhem em sectores
chave, como a energia ou os transportes, uma vez que podem bloquear a
actividade económica." (p. 8-9)
"As reacções variam muito, consoante o tipo de medidas. As
que suscitam maiores manifestações são aquelas que afectam
toda a população, ou seja, as subidas de preços, qualquer
que seja a sua origem (cortes nos subsídios, subida de impostos
indirectos ou desvalorização)." (p. 11) "Estas subidas
causam geralmente menos greves, o que não surpreende, já que em
muitos países a maioria da população urbana trabalha em
pequenas empresas ou no sector informal, onde não é
possível fazer greve sem perder o emprego. Por outro lado, as greves
são movimentos categoriais por natureza, o que explica a
correlação entre as restrições orçamentais
que afectam os funcionários públicos e as greves. Estas
restrições implicam frequentemente diminuições
salariais, quando não despedimentos nos serviços e empresas
públicas: uma vez que os assalariados estão organizados e
frequentemente têm o emprego garantido, podem fazer greve." (p. 11)
"Deve-se subir primeiro os preços dos produtos intermédios,
como foi feito em Marrocos em 1983-1984, e não os dos produtos de base
consumidos pelas famílias pobres. Quando se quer subir os preços
dos produtos de base, deve-se aplicar sucessivos aumentos moderados (menos de
20 %) e escalonados no tempo." (p. 27)
"Nada mais perigoso do que tomar medidas globais para resolver um problema
macroeconómico. Por exemplo, quando se reduzem os salários dos
funcionários públicos, deve-se baixar num determinado sector,
congelar (em valor nominal) noutro sector, e até aumentá-los em
sectores politicamente cruciais." (p. 31)
"Para reduzir o défice orçamental, uma forte
redução do investimento público ou uma
diminuição do funcionamento não comportam riscos
políticos. Quando se diminuem as despesas de funcionamento, é
preciso ter o cuidado de não diminuir a
quantidade
do serviço, mas a
qualidade
pode baixar. [
] As famílias reagirão violentamente a
uma recusa de inscrição das suas crianças na escola, mas
não a uma baixa gradual da qualidade do ensino [
] O processo deve
ser feito passo a passo, primeiro numa escola mas não na escola ao lado,
de forma a evitar o descontentamento geral da população."
(p. 30)
Os exemplos que acabo de dar são uma pequena amostra do vasto leque de
recomendações úteis a um governo que pretende seguir um
programa de austeridade. Sintetizando algumas das regras propostas por
Morrisson, um governo neoliberal que quer levar por diante um programa de
austeridade sem correr riscos políticos graves deve:
-
apoiar o encerramento de unidades produtivas de determinados sectores
económicos, provocando um desemprego massivo e acabando de vez com a
capacidade de organização, mobilização e greve dos
assalariados desses sectores (os desempregados não podem fazer greve e
ao fim de pouco tempo dispersam); esta iniciativa é especialmente
importante nos sectores onde os trabalhadores têm um historial e uma
organização muito fortes (casos típicos em Portugal: a
privatização dos correios; a privatização dos
transportes aéreos; o desmantelamento dos operários da Lisnave);
-
concessionar os serviços do Estado, isto é, extingui-los e
substituí-los por serviços privatizados; desta forma desaparecem
os assalariados do Estado com vínculo estável,
substituídos por assalariados precários;
-
empurrar os trabalhadores mais antigos para a reforma antecipada;
substituí-los por trabalhadores com vínculos precários, a
ganharem menos de metade dos trabalhadores recém-reformados e sem
experiência de luta;
-
nunca tomar medidas globais que afectem directamente a totalidade da
população ou as camadas mais pobres; proceder a aumentos de
preços escalonados ao longo do tempo e se necessário não
tocar nos preços e subsídios de certos produtos
indispensáveis às camadas mais pobres, quando estas têm um
peso significativo no conjunto da população; dar bodos aos
pobres, para arranjar aliados;
-
dividir para reinar: no caso dos funcionários públicos, por
exemplo, não cair no erro de atacar todos em conjunto e de uma assentada
só; prejudicar um sector, se necessário beneficiando outro
sector, de forma a manter sempre uma reserva de aliados.
Recorde-se que os governos anteriores à entrada da Troika em Portugal
estavam a seguir precisamente este caminho. Assim, por exemplo, a
privatização de sectores chave da economia nacional (energia,
combustíveis, transportes, serviços públicos) estava em
curso adiantado; a divisão do campo dos assalariados já estava a
ser minuciosamente levada a cabo (desempregados contra reformados, assalariados
do sector privado contra funcionários públicos, pais contra
professores, etc.).
Se examinarmos a forma como o governo de Passos Coelho avançou com
reformas à bruta e por atacado, provocando protestos generalizados das
populações de norte a sul de Portugal,
manifestações de enormes dimensões e umas quantas greves,
percebemos que muito provavelmente ele não é leitor
assíduo do manual de Morrisson. É certo que o governo de Passos
Coelho conseguiu aplicar o programa de austeridade que se tinha proposto (ou
seja, o objectivo principal foi alcançado), mas o preço
político pago foi muito elevado: os dois partidos da
coligação no poder não conseguiram obter maioria nas
eleições parlamentares seguintes e o séquito de Passos
Coelho foi arredado do poder, tanto no Estado como dentro do partido.
Morrisson chama-nos a atenção para o caso paradigmático do
governo marroquino, cujo tom foi marcado por um discurso do rei sob o mote
"sim à austeridade, não à
pauperização". Recorrendo a uma campanha mediática
muito bem concebida e a medidas políticas pontuais que satisfaziam
algumas reivindicações populares, as autoridades marroquinas
conseguiram aplicar um vasto pacote de medidas de austeridade, escalonadas no
tempo, praticamente sem oposição popular.
"Os cinco estudos do Centro de Desenvolvimento confirmam o interesse
político de certas medidas de estabilização: uma
política monetária restritiva, cortes brutais no investimento
público ou a redução das despesas de funcionamento
não acarretam qualquer risco para o governo. Isto não significa
que essas medidas não tenham consequências económicas ou
sociais negativas: a queda dos investimentos públicos desacelera o
crescimento durante anos e atira para o desemprego milhares de operários
da construção civil, sem subsídio. Mas nós estamos
a pensar aqui em função de um único critério:
minimizar o risco de distúrbios." (p. 16)
A importância atribuída no documento ao sector da
construção civil tem razão de ser e é patente no
caso português: havia o risco de os patrões e os assalariados
deste sector, que têm um enorme peso no conjunto da força de
trabalho portuguesa, criarem uma barreira à aplicação do
pacote de "políticas de ajustamento". Uma das
soluções adoptadas para amenizar o perigo de
oposição consistiu em deslocar uma parte dos trabalhadores da
construção para tarefas como a poda industrial das árvores
nas estradas e jardins públicos, ajardinamentos, etc. em plena
época de contenção das despesas públicas, o Governo
e as autarquias abriram os cordões à bolsa para manterem
empregados alguns operários da construção, alimentando a
esperança dos restantes. O resultado foi desastroso do ponto de vista
estético e técnico, mas, apesar dos prejuízos causados
à natureza e aos espaços públicos, apesar de nada disto
ter impedido o aumento brutal de desempregados, o objectivo visado foi
atingido: não se ergueu por parte do sector da construção
(nem do lado dos patrões nem do lado dos assalariados) um movimento de
protesto capaz de travar o programa de austeridade em curso.
"A experiência dos cinco países [estudados] mostra, em
última análise, que o sucesso político de um programa de
estabilização depende de dois factores políticos: o apoio
de uma coligação favorável e a estabilidade das
instituições." (p. 17)
"Um governo dificilmente consegue estabilizar contra a vontade da
opinião pública no seu conjunto. Tem de procurar o apoio de uma
parte da opinião, se necessário penalizando mais certos grupos.
Neste sentido, um programa que afecte de forma igual todos os grupos (isto
é, que seja neutro do ponto de vista social) é mais
difícil de aplicar do que um programa discriminatório que obriga
certos grupos a suportarem o ajustamento, ao mesmo tempo que poupa outros
grupos, para que estes apoiem o governo." (p. 17)
Um caso paradigmático é o da liberalização das
trocas internacionais, que encontra geralmente a oposição dos
partidos de esquerda e nalguns casos dos partidos de extrema direita. Protestam
contra essas medidas os industriais dos sectores económicos protegidos,
juntamente com os respectivos assalariados; protestam os altos
funcionários e as entidades públicas e privadas ligadas ao
sistema de despacho alfandegário; protestam os partidos de esquerda, por
verem nessas medidas a antecâmara da perda total de autonomia e soberania
(económica, política e judicial); protestam alguns partidos de
extrema direita, por razões pouco recomendáveis ligadas a ideais
nacionalistas. Em contrapartida, a liberalização e
desregulamentação do comércio além-fronteiras pode
ser apoiada pela grande massa de consumidores (na expectativa de adquirirem os
produtos importados a mais baixo preço), pelos pequenos e médios
industriais exportadores (que apenas vêem os lucros imediatos, sendo
incapazes de prever a sua própria extinção a longo prazo,
por efeito de uma concorrência transnacional desregulada), por uma enorme
massa de pequenos produtores que esperam vir a ter acesso a bens
intermédios de produção mais baratos. No conjunto da
sociedade tem sido muito difícil gerar uma mobilização
suficientemente forte para forçar os governos a porem de lado os acordos
de livre comércio.
Como Morrisson sublinha noutro passo, a população nunca reage ao
anúncio de cortes; os protestos vigorosos ocorrem 3 a 6 meses
após a introdução das medidas, o que dá ao governo
uma folga para se precaver com contra-medidas que lhe permitam anular os
protestos na raiz ou desviá-los noutro sentido.
Os relatórios da OCDE preocupam-se também com o facto de, por
regra, as medidas neoliberais provocarem um aumento da pobreza e das
desigualdades nomeadamente de género, de acesso à
saúde, ao ensino, à cultura, etc. e surpreende-nos
tratando regularmente nos seus cadernos políticos os temas da igualdade
e da justiça sociais (sempre do ponto de vista da
governação neoliberal, entenda-se), avisando que estes temas
devem receber o máximo de atenção, a fim de minimizar os
custos políticos.
"[...] a experiência mostra que muitas vezes é tanto mais
difícil aplicar politicamente um programa de
estabilização, quanto maior for a desigualdade de
rendimentos." (p. 22-23)
"Quando um governo chega ao poder num momento em que os
desequilíbrios macroeconómicos se desenvolvem, beneficia de um
curto período (quatro a cinco meses) durante o qual a opinião
pública o apoia e lhe permite atirar para cima dos seus predecessores a
impopularidade do ajustamento" (p. 24). "Isto pressupõe uma
boa estratégia de comunicação, sendo esta uma arma
importante no combate político. É preciso, desde a chegada ao
poder e se preciso for exagerando, insistir na gravidade dos
desequilíbrios, sublinhar as responsabilidades dos predecessores e o
papel dos factores exógenos desfavoráveis, em vez de alimentar um
discurso político optimista e apresentar a verdade tal qual ela
é. Em contrapartida, a partir do momento em que o programa de
estabilização foi aplicado, o governo pode adoptar um discurso
mais optimista, para restabelecer a confiança (factor positivo para a
retoma), atribuindo sempre a si mesmo o mérito dos primeiros
benefícios do ajustamento" (p. 25).
"É inevitável que a oposição tire partido da
situação para desenvolver um vasto movimento de descontentamento,
e não é possível aplicar um programa de
estabilização sem lesar os interesses dos assalariados do sector
público e parapúblico, dos consumidores urbanos, dos assalariados
e chefes de empresa do sector moderno. Mas é preciso evitar que este
movimento se estenda a toda a população urbana, recorrendo para
isso a acções discriminatórias que atraiam o apoio de
diversos grupos, a fim de constituir uma coligação oposta"
(p. 25).
Uma das consequências dos conselhos fornecidos pelos cadernos
políticos da OCDE é a progressiva passagem, no quadro da
segurança social, de uma lógica universalista (garantir a todos,
sem distinção, o máximo de bem-estar e de serviços
qualificados) para uma lógica assistencialista (acudir aos indigentes e
aguardar que as restantes camadas da população se desenrasquem
sozinhas).
No caso da função pública e das empresas públicas e
parapúblicas, a redução de salários e postos de
trabalho, que figura entre as principais "medidas dos programas de
estabilização", é em princípio "menos
perigosa do que a subida de preços no consumidor"
(combustíveis, electricidade, água, alimentos, impostos
indirectos, etc.): "suscita mais greves que manifestações e
afecta mais as classes médias do que as pobres [
]
A greve dos professores não é, em si mesma, um entrave para o
governo, mas é indirectamente perigosa, como já se comprovou, por
libertar a juventude para se manifestar
" (p. 29).
Segundo Morrisson, as "reformas estruturais" são menos
problemáticas e geram menos riscos políticos:
"[...] as reformas estruturais não têm geralmente o
carácter de urgência das medidas de estabilização.
Por isso o governo pode escaloná-las ao longo do tempo e evitar assim
uma coligação de descontentes, como a que ocorre quando
são tomadas simultaneamente numerosas medidas impopulares de
estabilização [...]" (p. 32)
"[...] desde que sejam feitas concessões estratégicas, um
governo pode, procedendo de forma gradual e com medidas sectoriais (e
não globais), reduzir consideravelmente as cargas salariais.
O essencial é evitar um movimento de greve geral no sector
público, que poria em causa um objectivo essencial do programa de
estabilização: a redução do défice
orçamental
." (p. 30, sublinhados meus)
"[...] a reforma mais frequentemente necessária e a mais perigosa
é a das empresas públicas, quer se trate de as reorganizar, quer
de as privatizar. Esta reforma é muito difícil, porque os
assalariados do sector estão geralmente bem organizados e controlam
domínios estratégicos. [
] É aconselhável
tomar algumas precauções. Antes do mais, esta reforma não
deve coincidir com um programa de estabilização, pois a
aliança de opositores seria muito perigosa, com a
conjugação de manifestações de massa e greves em
sectores chave." (p. 33)
"A primeira conclusão é que muitas das medidas tomadas antes
do ajustamento podem ser muito eficazes para diminuir os riscos
políticos no momento da crise. Ao reduzir as desigualdades de rendimento
e as corporações [note-se que Morrisson evita mencionar os
sindicatos, preferindo usar o termo "corporações"],
aumenta-se a flexibilidade de uma sociedade e as suas capacidades de
adaptação às medidas de estabilização.
[
] todas as análises de casos concretos chegam à mesma
conclusão: o melhor meio de minimizar os custos económicos,
sociais e políticos do ajustamento consiste em ajustar antes da crise
financeira." (p. 37)
Outro aspecto tratado no caderno de Morrisson é o apoio das
instituições internacionais e a sua utilização nos
equilíbrios de força políticos:
"[como o governo] já não pode, em princípio, fazer
concessões a partir do momento em que assumiu compromissos com o FMI,
pode responder aos seus opositores dizendo que o acordo assinado com o FMI
é imperativo, goste-se ou não." (p. 22)
O manual de governação da OCDE e o caso português
De maneira geral, os governos portugueses têm executado os seus programas
de austeridade com sucesso, do ponto de vista da OCDE.
É assim que, por exemplo, durante três anos consecutivos o governo
de António Costa consegue não ceder às
reivindicações dos profissionais do ensino e da saúde, e
ao mesmo tempo agravar a debilitação do ensino e da
investigação científica, que já vinha de
trás.
[6]
O Governo actual não protesta quando os seus aliados à esquerda
reivindicam a autoria de medidas como a redução dos cortes aos
pensionistas, a reposição do horário de trabalho dos
funcionários públicos, o aumento do salário mínimo,
a distribuição gratuita de manuais escolares, etc. pelo
contrário, elogia a sua contribuição para a boa
governação. O primeiro-ministro António Costa sabe que uma
disputa nesse campo anularia o esforço para constituir alianças
pacificadoras e poria em risco todas as demais medidas. O ministro das
Finanças sabe que, depois da catástrofe social provocada pelo
governo de Passos Coelho e pela Troika, não pode parafrasear Hassan II,
dizendo "sim à austeridade, não à
pauperização"; tem de trocar a palavra
"austeridade" por "contenção
orçamental", que vai dar no mesmo mas soa muito diferente; pode
até ir mais longe no trocadilho e dizer "sim à
contenção orçamental, não à
austeridade"!
No entanto, a mestria de que o Governo do PS ao longo de três anos deu
mostras teve um tropeço aparente: no momento em que escrevo estas
linhas
está em curso uma greve geral da função pública, o
que, além de ser uma raridade assinalável na história dos
movimentos sociais portugueses, exemplifica um dos erros graves apontados no
estudo de Morrisson. Resta saber se estamos perante uma mudança de rumo
do governo, se este foi um deslize pontual, ou se estamos na proximidade de
nova crise financeira ou de um agravamento do défice da balança
de pagamentos, estando este governo a antecipar precauções e
medidas de fundo, como aconselha o estudo de Morrisson.
Conclusão
O caderno de política económica da OCDE intitulado "A
Viabilidade da Política de Ajustamento", da autoria de Christian
Morrisson, ajuda-nos a compreender e desmontar os esquemas de
governação neoliberal das últimas duas décadas.
À luz das suas recomendações, tudo o que poderia parecer
à primeira vista um conjunto desconexo e até contraditório
de medidas revela-se afinal um plano bem articulado, escalonado no tempo e no
espaço, para reduzir o investimento público, baixar os
salários, desmantelar uma grande parte do aparelho social do Estado,
trocar a lógica universalista por uma lógica assistencial,
reduzir à expressão mínima ou anódina a
oposição popular, construir alianças que minizem os custos
políticos, desregular a finança e o comércio
internacional,
Ajuda também a prever os perigos de estabelecer
alianças com um governo cujo programa, na prática, é
claramente neoliberal.
Por outro lado, o caderno de Morrisson deve ser lido com a máxima
cautela, pois nunca desvenda os pressupostos em que assenta: o projecto
neoliberal, a austeridade, a dívida pública e outros mecanismos
de apoio às rendas permanentes pagas pelo Estado ao capital privado, o
desequilíbrio crescente das políticas fiscais,
É um
manual
kitsch
, na medida em que toda a desgraça resultante da aplicação
das medidas propostas é elidida, restando apenas um retrato cor-de-rosa
da realidade.
Notas
1.
A Organização para Cooperação e Desenvolvimento
Económico (OCDE) reúne 36 países pertencentes do mundo da
"democracia representativa". Tem por missão apoiar o
negócio privado e ajudar os governos a proteger os interesses do capital
privado. Engloba diversos departamentos de estudo e investigação,
publicando regularmente relatórios e estudos com âmbito
estatístico, sociológico, económico ou político.
Emite recomendações para empresários, economistas e
governos. Do rigor científico das suas publicações depende
em grande parte o bom andamento dos negócios privados, sejam eles locais
ou transnacionais, por isso as publicações da OCDE são uma
importante fonte de informação, ainda que sejam orientados tendo
em vista os interesses do Capital e não das populações em
geral.
2.
As versões
em inglês
e
em francês
de "A Viabilidade da Política de Ajustamento"
estão disponíveis na
Biblioteca digital da OCDE
. Guardamos na nossa biblioteca digital uma cópia destes documentos,
para o caso de eles virem um dia a desaparecer das páginas
públicas do sítio da OCDE.
3.
Este artigo foi inspirado e parcialmente decalcado de um artigo de
Éric Toussaint sobre o mesmo tema: "Comment appliquer des
politiques antipopulaires d'austérité", 17/04/2017.
4.
Os estudos da OCDE concluíram que, por regra, a
aplicação de medidas neoliberais e a manutenção da
estabilidade política é mais eficaz e segura em regime
democrático do que em regime autoritário.
5.
O nome destas instituições financeiras tem variado ao longo
dos últimos anos, mas todas elas mantêm em comum o essencial:
são fundos de investimento financeiro privado; mas assumem um viso
"oficial", por serem perfilhadas ou associadas dos
órgãos europeus de poder. Foi este o caso do fundo financeiro que
contratou um empréstimo a Portugal em 2011; esse fundo, apesar de estar
constituído como sociedade privada com sede no Luxemburgo (como é
explicitamente declarado no contrato oficial de endividamento do Estado
português), tem sido confundido na comunicação social com
uma instituição oficial da União Europeia.
6.
Parto do princípio que o meu leitor está bem informado acerca
do curso da governação em Portugal, dispensando-me de alongar
este texto com a especificação pormenorizada do rol de medidas
neoliberais actualmente em curso. Entretanto, a título de exemplo e
ainda a propósito da reforma estrutural do ensino, recordemos que no
início deste ano lectivo várias escolas não abriram portas
por falta de pessoal ou de meios, deixando as crianças sem aulas e os
pais sem saber o que lhes fazer na hora de irem trabalhar. Note-se que esta
manobra de desmantelamento é executada em rigorosa conformidade com
todos os ensinamentos de Christian Morrisson: uma escola é encerrada por
falta de condições, a escola ao lado funciona em moldes normais,
impedindo assim a formação de movimentos regionais ou nacionais
de pais revoltados (no próximo ano lectivo calhará a vez a outras
escolas, até que, paulatinamente, todo o país tenha sido
depauperado a nível escolar); os alunos podem requisitar manuais
gratuitos e têm agora melhores regras de alimentação nas
cantinas escolares, mas... muitos deles não podem ter aulas nem comer na
cantina porque a escola não tem condições para abrir. O
mesmo sucede no sector da saúde, dos transportes públicos, etc.
a reforma dos serviços é profunda, é nefasta, mas
avança de forma escalonada no tempo e no espaço, impedindo a
formação de movimentos capazes de abalar a estabilidade do
Governo ou do regime.
Fontes e referências:
"A Viabilidade da Política de Ajustamento",
em inglês
ou
em francês
, de Christian Morrisson, ed.
Biblioteca digital da OCDE
, 1996.
O presente artigo foi inspirado e em parte decalcado de Éric Toussaint,
"
Comment appliquer des politiques antipopulaires d'austérité
", 17/04/2017.
O original encontra-se em
cadpp.org/manual-ocde-para-governos-neoliberais
Este artigo encontra-se em
http://resistir.info/
.
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