Desfazer o sofrimento

por Sandra Monteiro

'A sala das agitadas', Telemaco Signorini, 1865, óleo sobre tela. No final de Novembro foi apresentado no Fórum Gulbenkian de Saúde Mental um estudo coordenado pelo médico José Caldas de Almeida, presidente do Lisbon Institute of Global Mental Health [1] , que divulgou dados aterradores, mas não propriamente surpreendentes, sobre a evolução da saúde mental dos portugueses entre 2008 e 2015. Os dados referem-se, em particular, à prevalência de duas patologias: as perturbações depressivas e as perturbações de ansiedade. O Fórum deste ano foi dedicado ao tema "Crises Socioeconómicas e Saúde Mental: da Investigação à Acção" e os resultados do estudo são, de facto, ilustrativos do peso que os chamados "determinantes sociais da saúde" têm na criação de populações saudáveis ou doentes. Em causa estão factores económicos e sociais que interferem na distribuição dos rendimentos, na criação de bem-estar ou de pobreza, na privação ou no acesso a bens essenciais (alimentação, habitação, educação, segurança ou cuidados médicos).

O estudo, ao analisar as evoluções na saúde mental ocorridas neste período – que coincide com a eclosão da crise financeira internacional e com a aplicação a Portugal de destruidores programas de austeridade –, regista um significativo agravamento das depressões e das perturbações de ansiedade. Note-se que isto acontece num país que já em 2008 tinha uma prevalência de doença mental superior à média europeia (e em crise desde o início do século, curiosamente). Se em 2008 correspondia a 19,8% a parte da população afectada, em 2015 este valor disparou, atingindo os 31,2% [2] . Tudo piorou, entre novos casos e agravamentos dos já diagnosticados: nos "problemas ligeiros" o aumento foi de 13,6% para 16,8%, nos "problemas moderados" foi de 4,4% para 7,6%, e nos "problemas graves" de 1,8% para 6,8%. As causas são as expectáveis no contexto das políticas com que os neoliberais responderam à crise: a doença surge relacionada com a diminuição dos rendimentos (salários e pensões), com a dificuldade em aceder a bens essenciais e em pagar as despesas.

Este é um dos retratos mais eloquentes das políticas de austeridade como construção do sofrimento na vida das pessoas comuns. De um sofrimento que se vai generalizando e intensificando – e que vai demorar muito tempo até ser revertido. Para o combater, os autores do estudo apontam, como lhes compete, medidas de reforço na área da saúde e de uma assistência médica (que não pode limitar-se à prescrição de fármacos, antidepressivos e ansiolíticos) dirigida para os grupos mais afectados, dos idosos aos jovens, e com especial atenção às situações familiares mais desestruturadas, o que implica apostar em serviços integrados e de proximidade.

Mas desfazer o sofrimento que os números da doença mental revelam (e ainda se aguardam os dados dos suicídios ou do consumo do álcool) não é tarefa apenas para os profissionais da saúde. Fazê-lo exige, justamente, mudanças de políticas em todos os determinantes sociais e económicos que estão a montante da doença. Parte desse esforço começou a ser feito com a actual solução governativa. A reversão dos cortes de salários e pensões, a actual tendência de aumento do emprego e as iniciativas, prometidas pelo executivo para 2017, de atacar o quadro de precariedade em que tantos profissionais trabalham há anos na função pública, são medidas que vão nesse sentido.

Correm, porém, o risco de não serem suficientes para suscitar as melhorias necessárias. Grande parte do sofrimento diário que atira as pessoas para a depressão e para a ansiedade começa no trabalho e estende-se ao conjunto da vida. No trabalho e, por maioria de razão, no desemprego. Sobretudo quando este último não é protegido por prestações sociais como o subsídio de desemprego, como acontece com grande dos desempregados, numa substituição das lógicas do Estado-providência pelas da sociedade-providência (ou até da família-providência), fenómeno tanto mais inaceitável quanto impõe uma verdadeira lotaria da classe em que se nasceu, da família em que se nasceu.

Do que acontece no mundo do trabalho, tão corroído nos últimos anos – do quase desaparecimento da contratação colectiva à tendência para substituição do salário médio pelo salário mínimo [3] – decorre grande parte do que vai determinar o sofrimento quotidiano e o medo do futuro. Do salário depende o poder de compra no presente e a pensão que se receberá quando não se puder trabalhar (se bem que a indexação desta ao aumento da esperança de vida permita ter dúvidas sobre se esse dia algum dia chegará…). Do salário, mas também da estabilidade do contrato de trabalho, depende a possibilidade de accionar uma baixa na doença, de fazer férias, de concretizar o desejo da maternidade e da paternidade, de prestar assistência aos pais quando eles chegam à velhice ou estão doentes, de ajudar os filhos quando estão desempregados ou subempregados.

No trabalho, os trabalhadores são forçados a contactar com os danos causados pelo discurso hegemónico dos últimos anos: por muito que se empenhem, são eles os acusados de tudo o que vai mal (metamorfose laboral da narrativa do "gastar acima das possibilidades"); são eles os "ingratos" que deviam aceitar tudo o que os explora ao limite, tudo o que os degrada profissional e humanamente, porque, apesar de tudo, "ainda" têm um emprego quando outros não têm, "ainda" têm uma remuneração que podia ser pior, "ainda" têm a compreensão paternalista de um patrão (ou um subchefe de qualquer categoria) que até "aceita" que ele vá a uma consulta médica, desde que fique até mais tarde a fazer o lhe compete, tenha de ir buscar o filho à escola ou não.

No trabalho, os trabalhadores são forçados a lidar também com os danos causados pelas práticas que o sistema impôs: crescentemente, o trabalhador é pressionado para encontrar as formas de financiar o seu posto de trabalho, se não no presente, pelo menos para ter a perspectiva de o manter no momento da renovação (para já não falar do momento de progressão na carreira, verdadeiro capítulo de metafísica na actual filosofia do emprego). Se não o fizer, a ameaça do desemprego lá estará, como poderoso agente de formatação da sua actuação diária… e como poderoso agente depressor e ansiogénico. Ironia das ironias, esta experiência, que é vivida por cada um de forma muito individual – agruras da extrema degradação da actuação colectiva (sindical, associativa) –, surge aos trabalhadores como o mundo novo do empreendedorismo para toda a vida quando, na realidade, o que está a operar-se é um movimento global de transferência e concentração de riqueza a que o seu comportamento individual é tão alheio quanto o empenhamento dos Estados em cumprir défices e outras metas.

É da construção de solidariedades no mundo do trabalho, do emprego ao desemprego, que vai depender grande parte do que a seguir pode ser construído para desfazer o sofrimento de uma parte tão imensa da população portuguesa. Diminuir a violência a que os trabalhadores estão diariamente sujeitos, e a que acrescem os problemas de rendimentos, prestações sociais e pensões, implica responder à atomização dos indivíduos pela sociedade neoliberal com estratégias de acção colectiva e com políticas que garantam emprego de qualidade, com direitos, e um Estado social robusto. Menos do que isto e vamos ter, nos próximos anos, um país perigosamente deprimido, ansioso e assustado com o futuro. Um país doente.

9/Dezembro/2016

Notas
[1] "Economic Crises and Mental Health in Portugal; Preliminary Results of the National Mental Health Survey Follow-Up", www.lisboninstitutegmh.org .
[2] Ver Romana Borja-Santos, "Um terço da população já sofre de ansiedade ou depressão", Público , 25 de Novembro de 2016.
[3] Ver Catarina Almeida Pereira, Carvalho da Silva: "Salário mínimo nacional pode transformar-se no salário nacional", Jornal de Negócios, 15 de Fevereiro de 2016.


O original encontra-se em pt.mondediplo.com/spip.php?article1144

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01/Dez/16