Desfazer o sofrimento
por Sandra Monteiro
No final de Novembro foi apresentado no Fórum Gulbenkian de Saúde
Mental um estudo coordenado pelo médico José Caldas de Almeida,
presidente do Lisbon Institute of Global Mental Health
[1]
, que divulgou dados aterradores, mas não propriamente surpreendentes,
sobre a evolução da saúde mental dos portugueses entre
2008 e 2015. Os dados referem-se, em particular, à prevalência de
duas patologias: as perturbações depressivas e as
perturbações de ansiedade. O Fórum deste ano foi dedicado
ao tema "Crises Socioeconómicas e Saúde Mental: da
Investigação à Acção" e os resultados
do estudo são, de facto, ilustrativos do peso que os chamados
"determinantes sociais da saúde" têm na
criação de populações saudáveis ou doentes.
Em causa estão factores económicos e sociais que interferem na
distribuição dos rendimentos, na criação de
bem-estar ou de pobreza, na privação ou no acesso a bens
essenciais (alimentação, habitação,
educação, segurança ou cuidados médicos).
O estudo, ao analisar as evoluções na saúde mental
ocorridas neste período que coincide com a eclosão da
crise financeira internacional e com a aplicação a Portugal de
destruidores programas de austeridade , regista um significativo
agravamento das depressões e das perturbações de
ansiedade. Note-se que isto acontece num país que já em 2008
tinha uma prevalência de doença mental superior à
média europeia (e em crise desde o início do século,
curiosamente). Se em 2008 correspondia a 19,8% a parte da
população afectada, em 2015 este valor disparou, atingindo os
31,2%
[2]
. Tudo piorou, entre novos casos e agravamentos dos já diagnosticados:
nos "problemas ligeiros" o aumento foi de 13,6% para 16,8%, nos
"problemas moderados" foi de 4,4% para 7,6%, e nos "problemas
graves" de 1,8% para 6,8%. As causas são as expectáveis no
contexto das políticas com que os neoliberais responderam à
crise: a doença surge relacionada com a diminuição dos
rendimentos (salários e pensões), com a dificuldade em aceder a
bens essenciais e em pagar as despesas.
Este é um dos retratos mais eloquentes das políticas de
austeridade como construção do sofrimento na vida das pessoas
comuns. De um sofrimento que se vai generalizando e intensificando e que
vai demorar muito tempo até ser revertido. Para o combater, os autores
do estudo apontam, como lhes compete, medidas de reforço na área
da saúde e de uma assistência médica (que não pode
limitar-se à prescrição de fármacos,
antidepressivos e ansiolíticos) dirigida para os grupos mais afectados,
dos idosos aos jovens, e com especial atenção às
situações familiares mais desestruturadas, o que implica apostar
em serviços integrados e de proximidade.
Mas desfazer o sofrimento que os números da doença mental revelam
(e ainda se aguardam os dados dos suicídios ou do consumo do
álcool) não é tarefa apenas para os profissionais da
saúde. Fazê-lo exige, justamente, mudanças de
políticas em todos os determinantes sociais e económicos que
estão a montante da doença. Parte desse esforço
começou a ser feito com a actual solução governativa. A
reversão dos cortes de salários e pensões, a actual
tendência de aumento do emprego e as iniciativas, prometidas pelo
executivo para 2017, de atacar o quadro de precariedade em que tantos
profissionais trabalham há anos na função pública,
são medidas que vão nesse sentido.
Correm, porém, o risco de não serem suficientes para suscitar as
melhorias necessárias. Grande parte do sofrimento diário que
atira as pessoas para a depressão e para a ansiedade começa no
trabalho e estende-se ao conjunto da vida. No trabalho e, por maioria de
razão, no desemprego. Sobretudo quando este último não
é protegido por prestações sociais como o subsídio
de desemprego, como acontece com grande dos desempregados, numa
substituição das lógicas do Estado-providência pelas
da sociedade-providência (ou até da
família-providência), fenómeno tanto mais
inaceitável quanto impõe uma verdadeira lotaria da classe em que
se nasceu, da família em que se nasceu.
Do que acontece no mundo do trabalho, tão corroído nos
últimos anos do quase desaparecimento da
contratação colectiva à tendência para
substituição do salário médio pelo salário
mínimo
[3]
decorre grande parte do que vai determinar o sofrimento quotidiano e o
medo do futuro. Do salário depende o poder de compra no presente e a
pensão que se receberá quando não se puder trabalhar (se
bem que a indexação desta ao aumento da esperança de vida
permita ter dúvidas sobre se esse dia algum dia chegará
).
Do salário, mas também da estabilidade do contrato de trabalho,
depende a possibilidade de accionar uma baixa na doença, de fazer
férias, de concretizar o desejo da maternidade e da paternidade, de
prestar assistência aos pais quando eles chegam à velhice ou
estão doentes, de ajudar os filhos quando estão desempregados ou
subempregados.
No trabalho, os trabalhadores são forçados a contactar com os
danos causados pelo discurso hegemónico dos últimos anos: por
muito que se empenhem, são eles os acusados de tudo o que vai mal
(metamorfose laboral da narrativa do "gastar acima das
possibilidades"); são eles os "ingratos" que deviam
aceitar tudo o que os explora ao limite, tudo o que os degrada profissional e
humanamente, porque, apesar de tudo, "ainda" têm um emprego
quando outros não têm, "ainda" têm uma
remuneração que podia ser pior, "ainda" têm a
compreensão paternalista de um patrão (ou um subchefe de qualquer
categoria) que até "aceita" que ele vá a uma consulta
médica, desde que fique até mais tarde a fazer o lhe compete,
tenha de ir buscar o filho à escola ou não.
No trabalho, os trabalhadores são forçados a lidar também
com os danos causados pelas práticas que o sistema impôs:
crescentemente, o trabalhador é pressionado para encontrar as formas de
financiar o seu posto de trabalho, se não no presente, pelo menos para
ter a perspectiva de o manter no momento da renovação (para
já não falar do momento de progressão na carreira,
verdadeiro capítulo de metafísica na actual filosofia do
emprego). Se não o fizer, a ameaça do desemprego lá
estará, como poderoso agente de formatação da sua
actuação diária
e como poderoso agente depressor e
ansiogénico. Ironia das ironias, esta experiência, que é
vivida por cada um de forma muito individual agruras da extrema
degradação da actuação colectiva (sindical,
associativa) , surge aos trabalhadores como o mundo novo do
empreendedorismo para toda a vida quando, na realidade, o que está a
operar-se é um movimento global de transferência e
concentração de riqueza a que o seu comportamento individual
é tão alheio quanto o empenhamento dos Estados em cumprir
défices e outras metas.
É da construção de solidariedades no mundo do trabalho, do
emprego ao desemprego, que vai depender grande parte do que a seguir pode ser
construído para desfazer o sofrimento de uma parte tão imensa da
população portuguesa. Diminuir a violência a que os
trabalhadores estão diariamente sujeitos, e a que acrescem os problemas
de rendimentos, prestações sociais e pensões, implica
responder à atomização dos indivíduos pela
sociedade neoliberal com estratégias de acção colectiva e
com políticas que garantam emprego de qualidade, com direitos, e um
Estado social robusto. Menos do que isto e vamos ter, nos próximos anos,
um país perigosamente deprimido, ansioso e assustado com o futuro. Um
país doente.
9/Dezembro/2016
Notas
[1] "Economic Crises and Mental Health in Portugal; Preliminary Results of
the National Mental Health Survey Follow-Up",
www.lisboninstitutegmh.org
.
[2] Ver Romana Borja-Santos, "Um terço da população
já sofre de ansiedade ou depressão",
Público
, 25 de Novembro de 2016.
[3] Ver Catarina Almeida Pereira, Carvalho da Silva: "Salário
mínimo nacional pode transformar-se no salário
nacional",
Jornal de Negócios,
15 de Fevereiro de 2016.
O original encontra-se em
pt.mondediplo.com/spip.php?article1144
Este artigo encontra-se em
http://resistir.info/
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