A última proposta do governo para a Segurança Social é ainda pior para os trabalhadores e reformados do que a primeira

por Eugénio Rosa [*]

Durante muitos meses o governo de Sócrates, em particular o seu ministro do Trabalho e da Segurança Social, afirmou que não iria nem aumentar a idade de reforma nem introduzir um tecto salarial nos descontos para a Segurança Social (o chamado "plafonamento"), ou seja, que não iria promover os fundos de pensões privados à custa do desvio de receitas da Segurança Social.

No entanto, no último documento que apresentou, em 19 de Junho de 2006, com o título "Análise da sustentabilidade de longo prazo da Segurança Social, o governo dá o dito por não dito pois introduz mecanismos que levam, por um lado, ao aumento da idade de reforma e, por outro lado, à promoção de fundos de pensões geridos por privados. E como isto já não fosse suficiente revelou que é sua intenção violar um principio fundamental de qualquer Estado de direito – a segurança jurídica – pois pretende alterar, para pior e retroactivamente, o decreto-lei que regula o cálculo das pensões de reforma.

E, como se mostrará neste estudo através da análise objectiva do último documento entregue pelo governo aos parceiros sociais, e já divulgado pela comunicação social, tudo isso teria como consequência pensões ainda mais baixas, perda continua do poder de compra das pensões, insegurança e instabilidade no futuro para os trabalhadores e reformados.

REDUÇÃO CONTINUA E SIGNGIFICATIVA DO VALOR DAS PENSÕES

O valor das pensões em Portugal é dos mais baixos de toda a União Europeia. De acordo com dados divulgados pelo próprio governo, em 2005, cerca de 85% dos reformados do Regime Geral recebiam pensões inferiores ao salário mínimo nacional. Mesmo aqueles que se reformaram em 2005, cerca de 74% foram com pensões inferiores também ao salário mínimo nacional.

No entanto, este governo considera que esta situação não é grave, nem deve ser alterada rapidamente. A prová-lo estão as propostas que acabou de apresentar com um duplo objectivo, a saber: (1) Reduzir significativamente as pensões dos trabalhadores que se reformarem no futuro; (2) Reduzir o poder de compra das baixas pensões de reforma que estão a ser pagas.

Para atingir aqueles dois objectivos, o governo pretende aprovar três medidas. São elas: (1) Acelerar, com retroactividade, a entrada em vigor da formula de cálculo das pensões com base em toda a carreira contributiva; (2) Introduzir um factor a que chama, eufemisticamente, "factor de sustentabilidade" quando mais correcto seria chamar "factor de sustentabilidade dos lucros à custa da redução das pensões" pois os sacrifícios que a sua aplicação determinaria cairiam exclusivamente sobre os trabalhadores poupando as empresas de qualquer esforço; (3) Impor aumentos de pensões inferiores ao aumento de preços verificado.

Como iremos mostrar a conjugação destas três medidas (este governo não fica satisfeito apenas com uma) determinaria reduções nas pensões de reforma muito significativas, podendo-se mesmo dizer socialmente intoleráveis.

A ACELERAÇÃO DA ENTRADA EM VIGOR DA FORMULA DE CÁLCULO DA PENSÃO COM BASE EM TODA A CARREIRA CONTRIBUTIVA DETERMINARIA DIMINUIÇÃO DAS PENSÕES

Contrariamente ao que muitos diziam ou pensavam, o cálculo da pensão com base em toda a carreira contributiva determinará, no caso concreto português, que um número crescente de trabalhadores receberão pensões mais baixas quando se reformarem.

Dados constantes do quadro seguinte, que foram fornecidos pelo próprio governo, mostram claramente isso.

Tabela 1.

Para compreender os dados do quadro anterior é preciso ter presente o seguinte. De acordo com o artº 13 do Decreto-Lei 35/2002, a pensão de reforma dos trabalhadores que se reformarem até 2017 será calculada de três formas, a saber: (1) Com base nas remunerações dos 10 melhores anos dos últimos 15 anos anteriores à data da reforma, que é o sistema antigo; (2) Com base em toda a carreira contributiva; (3) Com base na aplicação proporcional (média ponderada) de duas pensões referentes a dois períodos: um até 31/12/2001, calculada com base na formula antiga (10 melhores dos últimos 15); outra, referente ao período posterior a 31/12/2005, calculada com base em toda a carreira contributiva. Portanto, a pensão é calculada destas três formas e depois é escolhida a mais elevada.

Apesar de a lei estabelecer que este regime de transição vigoraria até 2017, e portanto existir um compromisso expresso de um governo também PS o cumprir, este governo pretende dar o dito por não dito, e alterar esta lei, passando a vigorar, a partir de 01/01/2007, apenas uma formula de cálculo da pensão: a última, ou seja, com base na aplicação proporcional. E retroactivamente, ou seja, os períodos considerados não seriam "até 01/01/2007 e após 01/01/2007", mas sim "até 31/12/2001 e após 31/12/2001. A aplicação da formula proporcional determinaria, como mostram os dados constantes do quadro I, por um lado, uma redução crescente do valor da pensão (se tivesse sido aplicada esta formula proporcional, em 2003, a redução média teria sido de -0,5%, enquanto em 2005 seria já de -1,4%, portanto quase o triplo) e, por outro lado, que um número crescente de trabalhadores teria tal redução (em 2003, seriam 37,4%, enquanto em 2005 já seriam atingidos por redução da pensão 39,7% dos trabalhadores que se reformaram).

De acordo com dados também fornecidos pelo Ministério do Trabalho e da Segurança Social, a redução da pensão, só devido a esta medida, seria continua indo de -1,1% no período 2002-2006, e atingindo -8% em 2020, e -12% em 2030.

No entanto, o governo não fica satisfeito apenas com esta redução, por isso tenciona aplicar outra medida, a que, enganadoramente, pois tem o mesmo objectivo, chama "factor de sustentabilidade"

O FACTOR DE SUSTENTABILIDADE DOS LUCROS À CUSTA DA REDUÇÃO DAS PENSÕES

O que significa na prática este "factor de sustentabilidade do governo"? O seguinte: Depois de ser calculada o valor da pensão da forma que se explicou anteriormente, esse valor, já reduzido, seria ainda diminuído multiplicando-o por uma percentagem que se obtém com base na seguinte divisão: "Esperança de Vida aos 65 anos em 2006 a dividir pela Esperança de Vida aos 65 anos no ano em que o trabalhador se reformasse".

Para tornar tudo isto mais claro, admita-se que o valor da pensão obtido foi 450 euros. O governo afirma que a esperança de vida aos 65 anos aumentaria um ano em cada 10 anos. Como a esperança de vida aos 65 anos, em 2006, deverá rondar os 18 anos, daqui a dez anos seria de 19 anos porque aumentaria um ano; daqui a 20 seria de 20 anos porque aumentaria dois anos, etc. E o valor do chamado "factor de sustentabilidade do governo", a multiplicar pelos 450 euros, obtém-se dividindo a esperança de vida em 2006 – 18 anos – sucessivamente por 19, 20 , etc. Os resultados que se obtêm constam do quadro seguinte:

Tabela 2.

Portanto, um trabalhador que se reformasse em 2016, veria o valor da sua pensão de reforma diminuir em -5% devido à aplicação do factor de sustentabilidade do governo; se se reformasse em 2026, a redução já seria de -10%; em 2036 de -14%; em 2046 seria já de -18%, etc. . E isto admitindo que o governo não agravasse ainda mais este factor, porque depois de introduzido seria então fácil alterá-lo para pior.

Para se poder ficar com uma ideia mais clara das consequências da aplicação deste "factor de sustentabilidade do governo", que é melhor chamar "factor de sustentabilidade dos lucros à custa da redução das pensões" porque este esforço que se está a exigir é apenas aos trabalhadores poupando os patrões, apresenta-se no quadro seguinte os resultados da sua aplicação a uma pensão de reforma de 450 euros.

Tabela 3.

O aumento da esperança de vida aos 65 anos em quatro anos, determinaria que uma pensão de 450 euros ficasse reduzida apenas a 386 euros. E como se sabe, o aumento da esperança de vida é bastante aleatório e, neste caso ainda mais, porque ficaria dependente das previsões, muito falíveis, de uma chamada "comissão técnica independente". Entre 1998/99 e 2003/2004, a esperança de vida aos 65 anos em Portugal aumentou, segundo o INE, nos homens de 15 para 15,9 anos e, nas mulheres, de 18,5 para 19,3 anos. Desta forma seria introduzido no sistema de Segurança Social pública um factor aleatório o que determinaria, à semelhança do que sucede com fundos de pensões que estão dependentes dos resultados da bolsa (neste caso a bolsa seria "o aumento da esperança de vida aos 65 anos"), uma grande incerteza para o trabalhador sobre o valor da pensão que receberia quando se reformasse.


O AUMENTO DAS PENSÕES PARA REFORMADOS NÃO GARANTIRIA A MANUTENÇÃO DO PODER DE COMPRA DA PENSÃO

Mas o governo ainda não está satisfeito com a diminuição das pensões que as duas medidas anteriores determinariam para os trabalhadores. Por isso, na sua proposta acrescentou mais uma medida, que é a seguinte: (1) Enquanto a taxa de crescimento económico (PIB) fosse inferior a 2% (para 2006, está previsto um crescimento de apenas 1%), as pensões de reforma seriam aumentadas apenas o seguinte: (a) Pensões inferiores a 1,5 Salário Mínimo Nacional (SMN) o aumento seria apenas igual à taxa de inflação do ano anterior; (b) Pensões superiores 1,5 SMN, o aumento seria inferior à taxa de inflação em -0,5%, portanto perderiam poder de compra; (2) Quando a taxa de crescimento económico fosse igual ou superior a 2%: (a) Pensões inferiores a 1,5 SMN o aumento seria igual à taxa de inflação do ano anterior mais 0,5%; (b) Pensões superiores a 1,5 SMN o aumento seria apenas igual à taxa de inflação do ano anterior.

Em resumo, todos os reformados com pensões superiores a 1,5 Salário Mínimo Nacional o poder de compra das suas pensões nunca mais aumentaria, estando mesmo sujeita a diminuição pois o aumento seria sempre igual ou inferior ao aumento de preços verificado no ano anterior. Os reformados com pensões inferiores a 1,5 Salário Mínimo Nacional o poder de compra das suas pensões ou não aumentaria (cresceriam de acordo com a taxa de inflação do ano anterior) ou aumentaria de uma forma insignificante (taxa de inflação do anos anterior + 0,5%). No fundo, seria a condenação da esmagadora maioria dos reformados à continuação de uma vida de miséria.

A SOLUÇÃO QUE O GOVERNO DEFENDE PARA A BAIXA DAS PENSÕES:
Que os trabalhadores descontem para Fundos de Pensões geridos por privados


As três medidas referidas anteriormente aplicar-se-iam a todos os trabalhadores e a todos os reformados fosse qual fosse o valor das suas pensões de reforma. Portanto, são medidas que se aplicariam de uma forma indiscriminada a todos os reformados, sem ter mesmo em conta o valor das suas pensões. Também se aplicariam a todos os trabalhadores da Administração Pública que entraram para a função pública depois de 1993, e que são já mais de 300.000. É natural também que o governo procure aplicar aos restantes trabalhadores da Administração Pública, os que entraram antes de 1993, se não encontrar uma forte resistência.

Perante a baixa significativa das pensões que a conjugação destas três medidas inevitavelmente determinaria o governo, sem qualquer despudor, acena com a seguinte "solução salvadora": "a criação de um novo regime complementar público de contas individuais (ou seja, de fundos de pensões), assente nos princípios de contribuição definida (portanto, semelhante aos PPR, sabe-se o que se paga, mas não se sabe o que se vai receber, tudo dependendo da bolsa), a ser financiado pelas contribuições voluntárias dos beneficiários da Segurança Social (ou seja, exclusivamente pelos trabalhadores), devendo a sua gestão vir a ser parcial ou totalmente contratualizada com o sector privado". A juntar está o fomento dos chamados Fundos de Pensões de base profissional, a serem criados pelas empresas, através da concessão de elevados benefícios fiscais. É desta forma que o governo pretende fomentar o desenvolvimento dos fundos de pensões à custa dos trabalhadores, tanto reivindicados pelos bancos e seguradoras que controlam a maioria das sociedades gestoras de fundos de pensões. Não é de estranhar que os representantes dos patrões tenham manifestado já e publicamente a sua grande satisfação com as propostas do governo.

22/Junho/2006

[*] Economista, edr@mail.telepac.pt

Este artigo encontra-se em http://resistir.info/ .
23/Jun/06