“Reconstrução” do Iraque:
ensaio de neocolonialismo neoliberal

por Rui Namorado Rosa

hiena A Guerra do Golfo foi preparada longa e friamente para servir interesses fundamentais do imperialismo, em que se incluem a apropriação unilateral de recursos energéticos de interesse mundial e o estabelecimento de bases militares de valor geoestratégico. Esta guerra foi depois imposta aos povos dos países da coligação agressora sob falsos argumentos, que arruínam a credibilidade de poderosos estados governados por poderes políticos só formalmente democráticos. Esta guerra ameaça gravemente os valores de equilíbrio e confiança, conquistados e incorporados na legalidade internacional ao longo do século XX, desrespeitando-os e procurando substitui-los por novos valores, estes de hegemonia mundial, dissimulados em termos como “estados pária”, “guerra preventiva”, “construção democrática”, etc. Na realidade, desde a Primeira Guerra do Golfo, passando pela Guerra nos Balcãs, até à presente Segunda Guerra do Golfo, o que está em curso é o estabelecimento de uma nova ordem ou, melhor, desordem internacional, uma variante neoliberal do neocolonialismo, conforme com a ideologia e os interesses desumanos do imperialismo. Projecto que está a confrontar crescente oposição da parte da opinião pública nos países agressores e de crescente resistência da parte dos povos agredidos e espoliados.

O capitalismo necessita de crescimento sustentado da produção económica para não que não colapse, ainda que seja à custa de valores humanos e dos interesses dos povos. A guerra, ao destruir para reconstruir, serve também essa função de alimentar a acumulação de capital pelos seus proprietários. A actual Guerra no Iraque procura certamente usurpar recursos naturais valiosos, mas também escoar a produção da indústria armamentista e, ainda, abrir um vasto “mercado” para as indústrias da reconstrução.

Os principais fornecedores militares dos EUA e também principais beneficiários de fundos para investigação e desenvolvimento para a “defesa” são destacadamente a Lockheed Martin e a Boeing. A Lockheed Martin promoveu persistentemente a guerra que iria ser desencadeada no Iraque em 2003; para o efeito, a sua administração patrocina organismos de pressão política e ideológica que são agentes dos seus interesses e que procuram mentalizar a opinião pública (Center for Security Policy, Project for the New American Century e Committee of Liberation of Iraque) ; por outro lado, a sua administração faz-se representada em organismos através dos quais defende o alargamento da NATO a novos estados membros bem como o alargamento do seu âmbito da intervenção (New Atlantic Initiative, Project on Transitional Democracies e US Committee to Expand NATO) , por essa via assegurando a expansão e o acesso a novos “mercados” de armamentos. Carlyle Group é também um dos principais fornecedores militares dos EUA, sobretudo de veículos blindados e de combate terrestres e armamentos navais; Frank Carlucci, que foi director adjunto da CIA e secretário da Defesa, é seu administrador e James Baker, que foi secretário do Tesouro e secretário de Estado, é conselheiro deste Grupo; em Maio de 2001, o antigo primeiro-ministro britânico John Major assumiu o cargo de presidente de Carlyle Europe, caso que documenta a relação íntima entre os complexos militar-industriais dos dois lados do Atlântico. [ http://globalsecurity.org/military/industry/ ].

Cinco grandes corporações de “reconstrução” instalaram-se no Iraque logo após a ocupação pelas forças da “coligação”. Entre estas, as mais importantes são Bechtel Group e Halliburton, que detém contratos já adjudicados ainda antes do ultimato norte-americano que ditaria o início desta guerra. George Schultz (antigo secretário de Estado da Defesa) é administrador da Bechtel e preside ao Committee of Liberation of Iraque (financiado pela Lockheed Martin). A Halliburton teve Dick Cheney como administrador desde o fim da primeira Guerra do Golfo (durante a qual foi secretário da Defesa) até fins de 2000 (quando veio a ser designado Vice-Presidente dos EUA) [ http://www.reseauvoltaire.net/article9340.html ]. A Halliburton era sobretudo conhecida como líder mundial de serviços petrolíferos mas, posteriormente, ganhou proeminência na prestação de serviços militares; em 1997, (através da sua divisão Brown & Root) foi a beneficiária da privatização dos estaleiros britânicos de Davenport, com seus submarinos nucleares; desde então tem acumulado contratos para construção ou manutenção de aquartelamentos, aprovisionamento de tropas, transporte de armamentos para campos de batalha, contratação e treino de “soldados”, etc. para as forças armadas dos EUA e RU; é desde o início da “guerra ao terrorismo” o principal adjudicatário das bases norte-americanas em todo o mundo [ The World According to Halliburton , Michael Scherer, Mother Jones , July/August 2003, 24-25: ].

A aliança entre a Lockheed Martin e a Bechtel e demais corporações citadas, cimentada pelo pontificado de figuras chave que ora actuam como políticos ora actuam como administradores, tipifica uma nova etapa de desenvolvimento do complexo militar-industrial, etapa esta caracterizada pela promoção do “negócio” da guerra que depois pretende justificar e promove o “negócio” da paz (a presumida “reconstrução”). A segunda Guerra do Golfo pretenderia consagrar esta nova estratégia capitalista, já ensaiada nos Balcãs.

Na fase actual, o imperialismo fomenta até mesmo a privatização das próprias forças armadas, o que está conforme à concepção neoliberal de esvaziamento da autoridade pública do Estado e de completa liberalização da organização económica e social das nações.

Corpos de mercenários não são novidade e têm actuado em diferentes quadros de guerra desde a Antiguidade; os povos da América Latina têm sofrido uma longa história de opressão política às mãos de milícias “para-militares”, como acontece actualmente na Colômbia, em que tais milícias combatem ao lado das tropas governamentais contra o exército revolucionário do povo. Na primeira Guerra do Golfo haveria 2% de mercenários; na guerra na Bósnia haveria 10%; presentemente há muitos milhares de norte-americanos, britânicos, chilenos, sul-africanos, filipinos, bósnios, etc na guerra no Iraque. Empresas de segurança privada têm uma presença crescente ao serviço de entidades civis e sobretudo militares e cobrem uma gama crescentemente diversificada de “serviços”; é uma importante “indústria” emergente que factura muitos milhões de dólares.

Presentemente no Iraque, as forças da coligação ocupante estão a recorrer em proporção inusitada aos serviços de mais de uma dúzia de empresas militares ou de segurança privadas para protecção pessoal (autoridades provisórias, “reconstrutores” estrangeiros) de instalações (aeroporto de Bagdade, campos petrolíferos), treino militar (designadamente em vista da reconstituição de forças policiais e armadas iraquianas) ou “tarefas especiais”. Entre essas empresas contam-se Vinnell Corp. (subsidiária da grande corporação armamentista Northrop Grumman), Custer Battles, Erinys, Global Risk, DynCorp, Pilgrims, Blackwater , Meteoric Tactical Solutions, etc. [ http://washingtontimes.com/world/20031006-122420-5426r.htm ; http://www.alternet.org/story.html?StoryID=18193 ]. Trata-se de um outsourcing de “serviços” especiais bem em consonância com a fúria privatizadora do neoliberalismo. Como tal corresponde à oferta de novas oportunidades de negócios, num ramo agora florescente. Trata-se também de uma via de reduzir o protagonismo e a exposição das forças militares regulares e de internacionalizar as forças militares sem contudo envolver tropas estrangeiras; é ainda uma maneira de reduzir as baixas militares, pois que as forças de segurança contratadas são classificadas como civis! (ver o relato do assassinato de “civis” norte-americanos em Fallujah em 31 de Março: http://www.blackwaterusa.com/ ). Mas, por outro lado, as forças mercenárias (bem remuneradas, livres de códigos morais, quando não disciplinares, e irresponsáveis perante o povo) contribuem para agravar as relações de conflito no terreno, suscitando quer desconfiança ou mesmo contida hostilidade das forças regulares ocupantes quer rejeição e aberta hostilidade por parte das populações civis e dos iraquianos forçados a alistar-se nas novas forças policiais e militares.

A actual Guerra no Iraque procura evidentemente usurpar recursos naturais valiosos, mas também escoar a enorme produção da indústria armamentista e oferecer um vasto “mercado” às ambiciosas indústrias da “reconstrução”. Por outro lado oferece uma oportunidade excepcional à consolidação de um novo ramo industrial emergente – os “serviços de segurança”. Tudo a favor da acumulação de capital privado, necessariamente a expensas de todos os povos.

8 de Abril de 2004.

Este artigo encontra-se em http://resistir.info .
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