Graças a algum tipo de acaso genético, não tenho medo de
falar em público; na verdade, encaro isso como um desafio divertido de
como transmitir minhas ideias ao público, sobretudo num segundo idioma
o russo. Como alguém que trabalha nos media russos desde
há algum tempo, muitas vezes pedem-me para discutir a influência
do media e a guerra de informação. Os intelectuais russos da
variedade patriótica podem ver que seu país precisa de um
exército forte para se tornar novamente poderoso e respeitado. Eles
também podem ver que os media de notícias são um aspecto
importante do
Soft Power
que tecem narrativas para competir contra os media (ocidentais) dominantes.
Mas quando menciono a importância do entretenimento como um aspecto do
Soft Power,
começam sempre os sorrisos e os risos. Nenhum auto-intitulado
intelectual russo pode aceitar o facto de que o entretenimento afecta
profundamente nosso subconsciente e é a negação nacional
da Rússia desse facto que impede o país de se tornar uma
superpotência.
De muitos modos, quer seja um mapa de
Hard Power
militar, ou a
tecnologia da indústria do Soft Power
ou outras maneiras de avaliar, o mundo em que vivemos actualmente tem os
EUA/NATO no topo com uma projecção de poder quase global. Os
chineses vêm em segundo lugar, com controle total sobre a
influência no seu próprio território mas com pouco efeito
além das suas fronteiras. E a Rússia num distante terceiro lugar
com alguma influência estrangeira inclusive, fortalezas [externas] no seu
antigo território. Utilizando estes três grandes actores
geopolíticos (com a Rússia sendo a possuidora de uma distante
medalha de bronze), vemos uma imagem do mundo que reflecte a realidade em que
vivemos. Mas quando se trata de entretenimento, a Rússia é
essencialmente um não actor vassalo.
Grosso modo, e sem levar em conta as diferenças de valor da moeda, das
10
principais nações produtoras de filmes mais lucrativas da Terra
seis fazem parte do Ocidente, somando aproximadamente US$740 mil
milhões na venda mundial de ingressos. Não é de
surpreender que a maior parte disso venha dos Estados Unidos. E, como seria de
esperar, logo atrás dos anglo-saxões estão os chineses no
seu status habitual de medalha de prata.
A Rússia, contudo, está em 15º lugar nos lucros mundiais com
a venda de ingressos e este facto mostra um enorme buraco na defesa russa e em
quaisquer perspectivas para o desenvolvimento futuro.
Quanto ao perigo de não ter uma poderosa indústria nacional de
entretenimento, um colega egípcio certa vez contou-me algo em que
realmente acertou em cheio
"Mesmo sob a influência de Hollywood desde o berço até
a tumba, 95% dos jovens permanecem no contexto cultural da sua
nação nativa, eles podem vestir-se à ocidental, mas
continuam a ser egípcios no seu íntimo. No entanto, 5% da
população de jovens nacionais tornam-se "americanos" e
passam a servir um mestre estrangeiro e estes 5% são a massa
crítica necessária para iniciar qualquer revolução
colorida".
E isto é o perigo para a Rússia: não ter meios de
projectar uma visão civilizacional, alguém está
constantemente a projectar a sua própria dentro da Rússia e, com
o tempo, dada a opção entre ideias e não-ideias, os jovens
aderirão a algum tipo de ideias mesmo que sejam estrangeiras e
alienígenas. Algo em que acreditar é melhor que nada.
No curto prazo, é a falta de qualquer tipo de "Sonho russo" ou
"projecto para um novo século russo" que em certa medida
provoca pequenos movimentos de protesto em todo o país. O governo nada
tem espiritualmente ou ideologicamente para à oferecer sua
própria população e muito menos a estrangeiros e isso
é uma enorme fraqueza. Os jovens ouvem que não são livres,
e a liberdade soa bem, e como não há uma contra-visão de
liberdade, sua ideia de liberdade é a que o Ocidente diz que ela
é.
Toda criança na Terra foi doutrinada nos valores liberais da Guerra nas
Estrelas/Disney, todo a gente já viu algum desenho animado (pelo menos
quando criança) e o Facebook está cheio de clipes de filmes tolos
de Bollywood, mas praticamente ninguém assistiu a qualquer
espécie de filme russo quando olhamos as coisas globalmente. O
Japão vassalo e a Índia, dominada pela pobreza, estão
anos-luz à frente da indústria de entretenimento da Rússia.
As ideias de "Democracia iliberal", "Multipolaridade" e a
"4ª Teoria Política" estão no cerne do discurso
intelectual russo de hoje e têm um admirável potencial
ideológico. Contudo, estas ideias não têm
relações públicas ou meios de compartilhá-las como
uma visão para as massas. Os estrangeiros quase nunca conseguem
descrever o "sonho americano" em palavras, mas pode-se ver que eles
têm um conceito em mente, graças a todos os filmes que assistiram.
A visão de mundo do liberalismo tem tido uma promoção
planetária absolutamente titânica graças a Hollywood, ao
passo que a Rússia tem suas ideias discutidas em mesas-redondas por
grupos de reflexão, os quais acreditam estarem a fazer mudanças
escrevendo montes de documentos para compartilharem entre si. O surpreendente
é que não vejam absolutamente nada de errado com este
método e que zombem de mim, quando eles próprios consomem todo o
lixo que a Netflix oferece diariamente.
A Rússia tem munição cultural/intelectual para se defender
ideologicamente e promover uma visão que a levará outra vez a ser
uma superpotência. O problema é que carece completamente de
qualquer tipo de "arma" (media de entretenimento) para por a
munição em uso. Mas por que isto é assim? Por que a
Rússia é incapaz de produzir um filme com êxito
internacional significativo?
-
O governo e os tipos que riem de mim por dizer que o entretenimento é
uma parte importante da defesa nacional vêem o mundo de uma perspectiva
tecnocrática. Mísseis nucleares e sua
"influência" são fáceis de entender para
tecnocratas, a validade de fazer um filme que lance a alma russa sobre o mundo
para atrair "5% da juventude" de vários países é
demasiado abstracto para a sua compreensão. Não são
pessoas criativas, não são pessoas com uma visão,
são contadores de feijões que existem para manter o barco
à tona. A ideia deles é encontrar um conjunto de leis para
optimizar quantas pessoas consomem álcool, não fornecer-lhes uma
razão ideológica para não beber.
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Os russos não acreditam que o subconsciente precise ser tratado. Todas
as mensagens para estrangeiros devem ser feitas oficialmente através dos
media profissionais. Este ponto de vista está em contraste directo com o
modo como a publicidade e o marketing apelam a emoções. Os russos
recusam-se a apelar para o subconsciente através dos media de
entretenimento emocional.
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A indústria cinematográfica russa é uma rede fechada
repleta de liberais que odeiam a Rússia e tudo o que é russo, que
prefere lançar filmes de arte para receber aplausos de uma sala cheia de
degenerados viciados em drogas que entregam troféus em Cannes a
invés de se por em contacto com a vida de milhões ou de pessoas
normais por todo o mundo.
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A Rússia não tem uma ideologia/visão de mundo canonizada
ou parcialmente canonizada para projectar. Não há um "sonho
russo" ou "visão russa" formulado. Apesar do facto de que
criar este tipo de projecto ideológico poderia ser concluído nuns
poucos meses de trabalho e com financiamento muito limitado do ponto de vista
governamental.
Nações poderosas projectam uma poderosa visão cultural. A
Rússia sempre permanecerá, como disse Obama como "uma
potência regional", na medida em que for incapaz de produzir media
de entretenimento que mostre uma Visão ou Sonho russo. O verdadeiro
sinal de uma grande potência no século XXI é sua capacidade
para produzir entretenimento que contenha visão cultural. Se não
puder fazer filmes e videogames acerca da sua cultura, então a sua
cultura provavelmente não é adequada para sobreviver num mundo
globalizado.
Só posso esperar que, depois de ser ridicularizado durante uma
década por poderosos homens engravatados acerca do valor do
entretenimento para a defesa, um deles acorde e perceba que estou certo. Assim,
talvez me dê a oportunidade e o financiamento para corrigir isso. Mas
infelizmente acho que posso ter de enfrentar mais algumas décadas de
ridículo pois a Rússia está satisfeita em continuar a ser
um vassalo do entretenimento de Hollywood/Washington.
[*]
Jornalista.
O original encontra-se em
www.strategic-culture.org/...
Este artigo encontra-se em
http://resistir.info/
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