Acerca da guerra e da paz
por Sergey Lavrov
[*]
entrevistado por Vyacheslav Nikonov e Dimitri Simes
[**]
Vyacheslav Nikonov:
Cada vez se ouve mais a palavra "guerra". Os políticos
dos EUA e da NATO, e sobretudo os militares ucranianos, não se
coíbem de a dizer. Sente mais razões hoje para estar preocupado
do que anteriormente?
Sergey Lavrov:
Sim e não. Por um lado, o confronto bateu no fundo. Por outro lado, e
apesar disso, ainda há a esperança de nos portarmos como adultos
e de percebermos os riscos associados a uma maior escalada das tensões.
No entanto, os nossos colegas ocidentais introduziram a palavra
"guerra" no uso diplomático e internacional. "A guerra
híbrida desencadeada pela Rússia" é uma
descrição muito popular daquilo que o Ocidente considera ser o
principal acontecimento na vida internacional. Mas eu ainda acredito que
prevalecerá o bom senso.
Vyacheslav Nikonov:
Ultimamente, os Estados Unidos aumentaram o grau de confronto para
proporções nunca dantes vistas. O presidente Joe Biden disse que
o presidente Vladimir Putin é um "assassino". Mandámos
regressar o embaixador russo nos Estados Unidos, Anatoly Antonov.
Sergey Lavrov:
Foi convidado para consultas.
Vyacheslav Nikonov:
Daí a pergunta: Como vão ser agora as nossas
relações? Quanto tempo durará esta pausa? Quando é
que Anatoly Antonov regressará a Washington?
Sergey Lavrov:
O que ouvimos o presidente Biden dizer na sua entrevista à ABC
é inadmissível e sem precedentes. Contudo, devemos ver sempre as
ações reais por detrás da retórica e elas
começaram muito antes desta entrevista, durante a
administração de Barack Obama. Continuaram durante a
administração de Trump, apesar do facto de o 45.º Presidente
se ter pronunciado publicamente a favor de manter as boas
relações com a Rússia, com quem ele estava disposto a
"dar-se bem", coisa que não lhe fora permitido fazer. Falo da
degradação consistente das infraestruturas de dissuasão
nas esferas estratégicas político-militares.
O Tratado ABM
[1]
há muito que foi abandonado. O presidente Putin já referiu mais
de uma vez como, em resposta à sua observação de que
George W. Bush estava a fazer um erro e não havia necessidade de agravar
as relações, o então presidente dos EUA dissera que aquilo
não era dirigido contra a Rússia. Alegadamente, podemos dar
quaisquer passos que sejam necessários em resposta ao facto de os EUA
terem abandonado o Tratado ABM. Alegadamente, os americanos também
não considerarão essas ações dirigidas contra eles.
Mas depois começaram a instalar sistemas antimísseis na Europa
que é a terceira área de posição de defesa contra
mísseis. Anunciaram que essa instalação era feita
exclusivamente a pensar no Irão. As nossas tentativas de acordar um
formato de transparência mereceu o apoio na visita a Moscovo da
Secretária de Estado dos EUA Condoleezza Rice e do Secretário da
Defesa dos EUA Robert Gates, mas posteriormente foram rejeitadas. Temos hoje
uma área de defesa antimísseis na Europa. Hoje já
ninguém diz que é contra o Irão. Está nitidamente a
ser instalada enquanto projeto global concebido para conter a Rússia e a
China. Estão em marcha os mesmos processos na região
Ásia-Pacífico. Ninguém está a tentar fingir que
isso está a ser feito contra a Coreia do Norte.
Trata-se de um sistema global destinado a apoiar as aspirações
dos EUA ao domínio total, incluindo nas esferas
estratégico-militares e nucleares.
Dimitri Simes também pode divulgar a sua análise do que se tem
dito e escrito nos Estados Unidos sobre esta questão. Está a ser
dado um curso permanente para a instalação de mísseis de
alcance intermediário e curto na região
Ásia-Pacífico.
O Tratado INF
[2]
foi posto de lado pelos americanos com base em pretextos rebuscados. A
opção não foi nossa. Nas suas mensagens especiais, o
presidente Vladimir Putin sugeriu um acordo, numa base voluntária e
mesmo na ausência do Tratado INF, numa moratória mútua com
medidas de verificação correspondente na região de
Kaliningrado, onde os americanos suspeitavam que os nossos mísseis
Iskander estavam a violar as restrições impostas pelo tratado,
agora defunto, e nas bases dos EUA na Polónia e na Roménia, onde
as unidades MK-41
[3]
são desenvolvidas pelo fabricante, Lockheed Martin,
enquanto equipamento com dupla finalidade.
Para reforçar, esta retórica é escandalosa e
inaceitável. Contudo, o presidente Putin reagiu-lhe diplomática e
educadamente. Infelizmente, não houve resposta à nossa proposta
de falar ao vivo e de pôr os pontos nos is nos alfabetos russo e
inglês. Tudo isso há muito que anda de mão dada com um
acúmulo material nas infraestruturas de confrontação, que
também inclui o incansável avanço para leste das
instalações militares da NATO, a transformação duma
presença rotativa numa presença permanente nas nossas fronteiras
nos estados bálticos, na Noruega e na Polónia. Portanto, tudo
isto é muito mais grave do que simples retórica.
Vyacheslav Nikonov:
Quando é que o embaixador Antonov voltará a Washington?
Sergey Lavrov:
Isso depende da decisão do presidente Putin. O embaixador Antonov
está atualmente em consultas no Ministério dos Negócios
Estrangeiros. Reuniu-se com os membros das comissões de
relações internacionais na Duma estatal e no Conselho da
Federação da Assembleia Federal. Também já teve
conversações com o gabinete presidencial executivo.
É importante que analisemos o atual estado das nossas
relações, que não chegaram a este ponto de um dia para o
outro e não são apenas por causa desta entrevista, mas têm
sido assim de há uns anos para cá. O facto de ser usada uma
linguagem inadequada durante a entrevista do presidente Biden à ABC
mostra a urgência de realizar uma análise abrangente. Isso
não significa que tenhamos sido meros observadores e não tenhamos
chegado a conclusões nos anos passados. Mas chegou agora a altura para
as generalizações.
Dimitri Simes [*]:
Agora que estou em Moscovo, depois de um ano em Washington, vejo um
profundo contraste entre as declarações dos líderes dos
dois países. Penso que concordará comigo que, quando os
funcionários em Washington falam de relações com a
Rússia, o seu padrão é simples e compreensível:
"A Rússia é um adversário". Por vezes, os
congressistas são mais rudes e chamam-lhe "um inimigo".
Contudo, os líderes políticos da administração
ainda lhe chamam "um adversário". Permitem a
cooperação com a Rússia nalgumas questões que
são importantes para os EUA, mas, na generalidade, sublinham que,
militarmente, a Rússia é "o adversário número
um", enquanto politicamente não é apenas um país com
opiniões inaceitáveis mas é um estado que "tenta
espalhar regimes autoritários pelo mundo inteiro", que "se
opõe à democracia" e "corrói as
fundações dos EUA enquanto tal".
Quando o oiço a si e ao presidente da Rússia Vladimir Putin,
tenho a impressão de que em Moscovo a imagem é mais complicada e
tem mais matizes. Pensa que os EUA são hoje o adversário da
Rússia?
Sergey Lavrov:
Não vou analisar o vocabulário de
"adversário", "inimigo", "competidor" ou
"rival". Todas estas palavras são manipuladas tanto nas
declarações oficiais como nas não oficiais. Li no outro
dia que o Secretário de Estado dos EUA, Antony Blinken disse que, apesar
de todas as diferenças com a Rússia e a China, os EUA não
têm nada contra estes países. Quanto ao que os EUA estão a
fazer, é simplesmente "promover a democracia" e "defender
os direitos humanos". Não sei até que ponto podemos levar a
sério esta descrição da política dos EUA em
relação a Moscovo e a Pequim. Porém, se querem promover a
democracia, a prática tem de justificar a teoria.
George W. Bush anunciou que a democracia foi instaurada no Iraque em maio de
2003. A bordo de um porta-aviões, declarou que a
libertação do Iraque do seu regime totalitário estava
terminada e tinha sido instaurada a democracia no país. Estas
elucubrações não significam nada. Basta referir o
resultado final da guerra desencadeada pelos EUA centenas de milhares de
pessoas afetadas. Também devemos recordar que o "governo" do
famoso Paul Bremer resultou no nascimento do ISIS, a que se juntaram
rapidamente os membros do Partido Baath, os empregados dos serviços
secretos de Saddam Hussein, que tinham perdido os seus postos de trabalho.
Precisavam de sustentar as famílias. O ISIS não surgiu por causa
de diferenças ideológicas. Aproveitando os erros dos EUA, os
radicais usaram ativamente este facto. Foi esta a democracia instaurada no
Iraque.
A "democracia" na Líbia foi instaurada com bombas, greves e o
assassínio de Muammar Gaddafi que foi acompanhado pelo grito de
admiração de Hillary Clinton. O resultado é este: a
Líbia é um buraco negro; os fluxos de refugiados na
direção do norte estão a criar problemas à
União Europeia que não sabe o que fazer com eles; as armas
ilegais e os terroristas estão a passar clandestinamente através
da Líbia com destino ao sul, provocando o sofrimento na região do
Saara-Sael.
Não quero descrever o que os americanos sentem em relação
à Federação Russa. Se a descrição de
nós como "adversários", "inimigos",
"rivais" ou "competidores" se baseia no desejo de nos
acusarem quanto às consequências da sua política
irresponsável, dificilmente podemos ter uma conversa a sério com
eles.
Dmitri Simes:
Acho que, quando os funcionários em Washington, a
administração de Joseph Biden ou o Congresso, chamam
adversário à Rússia com insistência, não
consideram que se trata de simples retórica. Nem devem pensar que se
destina apenas a consumo doméstico. A administração Biden
diz que os EUA não têm uma política consistente para com a
Rússia e que o antigo presidente dos EUA, Donald Trump, deixou a
Rússia "fazer tudo o que o governo russo de Vladimir Putin
queria". Agora há um novo xerife que está disposto a falar
da forma que considera adequado sem se importar muito com a forma como Moscovo
vai interpretar isso; e se Moscovo não gostar, tanto melhor. Claro que
isto não está a ser feito para provocar descontentamento, mas
para mostrar que a Rússia está finalmente a perceber que
não pode continuar a portar-se desse modo. Há alguma
hipótese de esta nova política da administração
Biden obrigar a Rússia a mostrar uma nova flexibilidade?
Sergey Lavrov:
A política que mencionou, que é fomentada da forma que estamos
hoje a
assistir, não tem possibilidade de ter êxito. Isto não
é uma coisa nova: Joseph Biden apareceu, começou a usar
sanções contra a Rússia, endurecendo a retórica e
exercendo uma pressão genérica em todos os aspetos. Isto
está a acontecer há muitos anos. As sanções
começaram com a administração de Barack Obama e,
historicamente, ainda antes disso. Tal como muitas outras
restrições, aumentaram exageradamente e basearam-se na ideologia
a partir de 2013, ainda antes dos acontecimentos na Ucrânia.
Dimitri Simes:
O que eles dizem, e sabe isso melhor do que eu, é que esta
política não foi aplicada com consistência suficiente, que
não foi suficientemente enérgica e que agora, com os aliados da
NATO, vão passar a lidar com a Rússia a sério para nos
mostrar que temos de mudar o nosso comportamento não só no que se
refere à política externa, mas também à nossa
política interna.
Sergey Lavrov:
Dimitri, você é uma pessoa experiente, conhece os Estados
Unidos melhor do que eu. O que é que eles nos podem fazer mais? Que
analista decidiu provar que é praticável uma maior pressão
sobre a Rússia? Até que ponto conhecem a História? Estas
perguntas são para si.
Dimitri Simes:
Senhor ministro, deve saber que eu não sou um fervoroso apoiante
da administração Biden.
Sergey Lavrov:
Estou a fazer-lhe estas perguntas enquanto observador e especialista
independente.
Dimitri Simes:
Na minha opinião, a administração Biden ainda tem
uma séria suficiente de instrumentos que pode usar contra a
Rússia, incluindo novas sanções, a promoção
de infraestruturas da NATO na Europa, uma pressão mais
"harmoniosa" sobre a Rússia em conjunto com os seus aliados, o
avanço da política dos EUA não tão perto da
tradicional Velha Europa (refiro-me à Grã-Bretanha e, em
especial, à França e à Alemanha) mas mais perto da
Polónia, e, por fim, o fornecimento de armas letais à
Ucrânia. Pensa-se hoje em Washington que é muito importante
mostrar à Rússia que a sua atual política na Ucrânia
não tem futuro e que, se a Rússia não mudar de
comportamento, "pagará o preço".
Sergey Lavrov:
As minhas opiniões sobre os atuais desenvolvimentos vão de
um
exercício sobre o absurdo a uma brincadeira perigosa com
fósforos. Deve saber que passou a ser moda usar exemplos da vida
ordinária para descrever evoluções atuais. Todos
nós brincámos na rua quando éramos crianças.
Miúdos de diferentes idades e com diferentes tipos de
educação familiar brincavam nos mesmos locais. Na verdade,
vivíamos todos como uma grande família. Havia dois ou três
rapazes maus em cada rua; humilhavam os outros miúdos, batiam-lhes,
obrigavam-nos a limpar-lhes as botas e roubavam-lhes o dinheiro, as poucas
moedas que as mães lhes davam para comprar uma empada ou o pequeno
almoço na escola. Dois, três ou quatro anos depois, aqueles
miúdos cresciam e podiam reagir. Nós não precisamos de
crescer. Não queremos confrontos.
O presidente Putin disse mais de uma vez, inclusive depois da famigerada
entrevista do presidente Biden à ABC, que estamos preparados para
trabalhar com os Estados Unidos no interesse do nosso povo e no interesse da
estabilidade mundial e da segurança internacional. Se os Estados Unidos
estão dispostos a pôr em perigo os interesses da estabilidade
global e da coexistência mundial, até aqui pacífica, penso
que não encontrará muitos aliados para esse objetivo. É
verdade que a União Europeia rapidamente apanhou a boleia e jurou
fidelidade. Considero sem precedentes as declarações feitas
durante a cimeira virtual da União Europeia com Joe Biden. Nunca ouvi
tais juras de fidelidade. As coisas que disseram em público revelaram a
sua total ignorância da História da criação das
Nações Unidas e de muitos outros acontecimentos. Tenho a certeza
de que os políticos sérios ainda há alguns nos
Estados Unidos veem não só a futilidade como o absurdo
desta política. Tanto quanto sei, outro dia 27
organizações políticas nos Estados Unidos exigiram
publicamente que a administração Biden alterasse a
retórica e a essência da abordagem dos EUA nas
relações com a Rússia.
Vyacheslav Nikonov:
Não é provável que isso aconteça. Acho que o
seu exemplo com os "durões" em cada rua é demasiado
suave. Os Estados Unidos já ultrapassaram a ética da rua, que
sempre foi respeitada. Vemos isso acontecer na Ucrânia. O presidente
Biden é um dos que criaram a Ucrânia moderna, a política
ucraniana e a guerra em Donbass. Acho que leva a situação muito a
peito e vai tentar mantê-la no atual estado de tensão. Até
que ponto é perigosa a situação na Ucrânia à
luz das entregas de armas americanas em curso, das decisões adotadas no
Conselho Supremo da Ucrânia na terça-feira, e as
declarações feitas pelos militares ucranianos, que estão a
falar abertamente duma guerra? Onde nos situamos na frente ucraniana?
Sergey Lavrov:
Há muita especulação sobre os documentos que o Conselho
Supremo aprovou e que o presidente Zelensky assinou. Até que ponto isso
reflete a política real? Será consistente com o objetivo de
resolver o problema interno do presidente Zelensky de não aceitar
avaliações? Não sei o que é isto: se um
bluff
ou planos concretos. Segundo as informações publicadas nos
media,
os militares, na sua maioria, têm a noção dos
prejuízos que qualquer ação para provocar um conflito
aceso pode causar.
Tenho a maior esperança de que isso não vai ser fomentado pelos
políticos que, por seu turno, serão incitados pelo Ocidente,
liderado pelos EUA. De novo, vemos a verdade reafirmada, conforme apresentada
por muitos analistas e cientistas políticos, incluindo Zbigniew
Brzezinski. Olham para a Ucrânia numa perspetiva geopolítica:
acham que, enquanto país ligado à Rússia, a Ucrânia
faz da Rússia um grande estado; e que, sem a Ucrânia, a
Rússia não tem significado global. Deixo isto à
consideração dos que professam essas ideias, à sua
imparcialidade e capacidade de avaliar a Rússia moderna. Tal como disse
o presidente Vladimir Putin há pouco tempo e estas palavras
continuam relevantes os que tentam provocar uma nova guerra em Donbass
vão destruir a Ucrânia.
Vyacheslav Nikonov:
A diplomacia dos EUA e do Ocidente conseguiram uma coisa: colocaram a
Rússia e a China no mesmo barco. Com efeito, já nos
tornámos parceiros estratégicos nas ações,
não apenas nas palavras. O senhor acaba de regressar da China.
Certamente, vai lá mais do que uma vez por ano. Durante esta viagem,
sentiu alguma coisa de novo na liderança chinesa, que recentemente
sofreu ataques rudes e sem precedentes dos americanos? Até que ponto
são fortes as ligações que estão a ser
instituídas entre a Rússia e a China? A que altura se encontra a
fasquia que podemos alcançar ou já alcançámos na
nossa relação?
Sergey Lavrov:
Tal como os russos, os chineses são uma nação orgulhosa.
Podem ser mais pacientes, historicamente. O código genético
nacional da nação chinesa gira em torno de um futuro
histórico. Nunca se limitam aos ciclos eleitorais de 4 ou 5 anos. Olham
para mais longe: "uma grande viagem começa com um pequeno
passo" e muitas outras máximas usadas pelos líderes chineses
mostram que apreciam um objetivo que não está na linha do
horizonte, mas para além da linha do horizonte. Isto também se
aplica para a reunificação dos territórios chineses
gradualmente e sem pressa, mas deliberada e persistentemente. Os que falam com
a China e a Rússia sem o devido respeito ou olham para nós do
alto, ou nos insultam são políticos e estrategas sem valor. Se
fazem isso para mostrar como são duros para as próximas
eleições parlamentares dentro de anos, paciência.
Winston Churchill disse que "a democracia é a pior forma de
governo, tirando todas as outras." Está em curso um grande debate
sobre qual é a forma mais eficaz. A infeção do
coronavírus exacerbou esse debate. Até que ponto as democracias
ocidentais se mostraram capazes de se opor a este mal absoluto e até que
ponto os países com um governo centralizado, forte e
"autoritário" tiveram êxito. A História
será o juiz. Temos de esperar para ver os resultados.
Queremos cooperar, nunca acusámos ninguém de nada, nem
montámos uma campanha dos
media
contra quem quer que seja, apesar de sermos acusados de o fazer. Logo que o
presidente Putin anunciou a criação duma vacina, propôs
instituir uma cooperação internacional. Deve lembrar-se do que
foi dito sobre o Sputnik V. A princípio, disseram que não era
verdade, depois que era propaganda e o único objetivo era promover os
interesses políticos da Rússia no mundo. Vemos aqui o mesmo
efeito. A 30 de março, Vladimir Putin encetou conversações
com a chanceler alemã Angela Merkel e o presidente francês
Emmanuel Macron. Pressentimos um empenho mais realista de cooperar do que de
tentarem envolver-se na "discriminação de vacina" ou
"propaganda da vacina".
Voltando ao cerne da questão, em geral, ninguém devia ser
grosseiro com as outras pessoas. Mas, em vez disso, o que vemos é um
diálogo num tom condescendente para com grandes
civilizações como a Rússia e a China. Dizem-nos o que
devemos fazer. Se queremos dizer qualquer coisa, pedem-nos para "os
deixarmos em paz". Foi o caso em Anchorage, quando a discussão
chegou aos direitos humanos. Antony Blinken disse que há muitas
violações nos Estados Unidos, mas a tendência era clara
eles iam resolver isso sozinhos e já estão a
fazê-lo. No entanto, em Xinjiang Uygur, em Hong Kong e no Tibete, para
referir alguns, as coisas foram abordadas de forma diferente. Não se
trata apenas de falta de competências diplomáticas. É uma
coisa muito mais profunda. Na China, pressenti que esta nação
paciente, que defende sempre os seus interesses e mostra a
disposição de encontrar um compromisso, se encontrava num
impasse. No dia seguinte, o porta-voz do Ministro das Relações
Exteriores da China fez um comentário relevante. Não me lembro de
alguma vez acontecer uma coisa destas.
No que se refere a estarmos a ser empurrados para os braços da China ou
a China estar a ser empurrada para os nossos braços, todos se lembram
das palavras de Henry Kissinger de que os Estados Unidos deviam ter melhores
relações com a China do que as relações entre a
China e a Rússia, e vice-versa. Ele via este processo histórico e
sabia qual o caminho que podia tomar. Muitos estão hoje a escrever que
os Estados Unidos estão a fazer um enorme erro estratégico,
fazendo esforços contra a Rússia e a China ao mesmo tempo,
catalisando assim a nossa aproximação. Moscovo e Pequim
não estão a aliar-se contra ninguém. Durante a minha
visita à China, o Ministro das Relações Exteriores Wang Yi
e eu adotámos uma Declaração Conjunta sobre Determinadas
Questões de Governo Global nas Condições Modernas, em que
sublinhávamos ser inaceitável violar a lei internacional ou
substitui-la por quaisquer normas secretamente redigidas, de
interferência nos assuntos internos de outros países e, de modo
geral, tudo o que contrariasse a Carta das Nações Unidas.
Não há ali quaisquer ameaças. Os documentos assinados
pelos líderes da Rússia e da China realçam sempre o facto
de que a interação estratégica bilateral e a parceria
multifacetada não são dirigidas contra ninguém, mas
concentram-se exclusivamente nos interesses dos nossos povos e países.
Têm por base um conjunto de claros e objetivos interesses sobrepostos.
Procuramos um equilíbrio de interesses, e há muitas áreas
em que isso já se conseguiu e está a ser usado em
benefício de todos nós.
Vyacheslav Nikonov:
Reparou nalguma mudança na posição da China? É
claro que Pequim está numa situação muito rígida.
Até que ponto está a China disposta a ir no seu confronto com os
Estados Unidos? É óbvio que agora estão a reagir
asperamente. Estão a ser instituídas sanções contra
Pequim e, por isso, Pequim reage com contra-sanções, não
só em relação aos EUA mas também aos seus aliados,
que também estão a aderir às sanções. A
Europa juntou-se a este confronto. Estamos preparados para sincronizar a nossa
política com a China, por exemplo, nas nossas
contra-sanções, como fizemos com a Bielorrússia? Temos uma
estratégia comum para contrariar a pressão crescente da
"aliança" de democracias?
Sergey Lavrov:
Há uma estratégia geral e acabei de a referir. Juntamente com a
Declaração assinada durante a minha visita à China,
adotámos no ano passado uma abrangente Declaração de
Líderes. Agora estamos a preparar o próximo documento, que vai
ser assinado pelo presidente russo Vladimir Putin e pelo presidente
chinês Xi Jinping, e dedicado ao 20.º aniversário do Tratado
de Boa Vizinhança e Cooperação Amigável. O nosso
tratado estratégico vai ser renovado.
Estes documentos especificam a nossa linha de conduta. Não estamos a
planear, e não vamos planear, quaisquer esquemas para retaliar o que nos
estão a fazer. Penso que não vamos sincronizar as nossas
reações com quaisquer novas sanções contra a China
e a Rússia.
O nosso nível de cooperação continua a crescer
qualitativamente.
Você referiu-se há pouco a alianças militares. Há
por aí a especulação popular de que a Rússia e a
China podem fazer uma aliança militar. Primeiro, um dos documentos
assinado ao mais alto nível sublinhou que as nossas
relações
não
são uma aliança militar e não estamos interessados nesse
objetivo. Consideramos a NATO como um exemplo duma aliança militar no
sentido tradicional, e sabemos que não precisamos duma aliança
dessas. A NATO obviamente respirou de alívio depois de a
administração Biden ter substituído Donald Trump. Toda a
gente ficou satisfeita por ter alguém que lhe diga o que fazer. Emmanuel
Macron ainda tenta de vez em quando, mas em vão, referir a autonomia da
iniciativa estratégica da União Europeia, mas mais ninguém
na Europa quer discutir isso. Acabou, o patrão chegou.
Esse tipo de aliança é uma aliança de Guerra Fria. Prefiro
pensar em termos da era moderna em que está a aumentar a
multipolaridade. Neste sentido, a nossa relação com a China
é totalmente diferente da relação duma aliança
militar tradicional. Em certo sentido, talvez ainda seja mais estreita.
Vyacheslav Nikonov:
Vai ser criada a "aliança de democracias". Isso é
óbvio
embora haja cada vez menos pessoas na Rússia que ainda acreditem que se
trata da democracia. Nas eleições, na atitude para com a
liberdade dos
media
e as oportunidades para exprimir opiniões contrárias, os EUA
têm tornado muito claro que têm grandes problemas com a democracia.
A Europa também dá exemplos que nos forçam a duvidar dos
seus esforços para promover um forte projeto democrático. Afinal,
ainda mantém uma posição de interveniente às ordens
de um "big boss".
Vladimir Putin fez uma reunião com Emmanuel Macron e Angela Merkel por
videoconferência a 30 de março deste ano. A propósito, sem
Vladimir Zelensky. Este é o formato normando menos a Ucrânia, que
provocou uma reação amarga de Kiev.
Analisaram uma ampla gama de problemas. Entretanto, o senhor disse mais de uma
vez que as nossas relações com a União Europeia
estão congeladas ou simplesmente não existem. Significa que nos
mantemos em contacto ou que esse contacto é possível com membros
individuais da União Europeia. mas não com a União
Europeia como um todo?
Sergey Lavrov:
É isso mesmo e isso também foi mencionado durante as
conversações de 30 de março, e durante as
conversações de Vladimir Putin com o presidente do Conselho
Europeu, Charles Michel. Admiramo-nos que esta afirmação ofenda a
União Europeia. Trata-se apenas de um facto objetivo.
Levou anos a desenvolver relações entre Moscovo e a União
Europeia. Na altura em que se deu o golpe de estado na Ucrânia, essas
relações incluíam: cimeiras duas vezes por ano;
reuniões anuais de todos os membros do governo russo com todos os
membros da Comissão Europeia; cerca de 17 diálogos setoriais
sobre diversas questões, da energia aos direitos humanos; e quatro
espaços comuns com base nas resoluções da cimeira
Rússia-UE, cada um dos quais com o seu próprio itinerário.
Estávamos a realizar conversações sobre viagens com
isenção de visto. É sintomático que a União
Europeia as tenha abandonado em 2013, muito antes da crise na Ucrânia.
Como alguns dos nossos colegas nos disseram, quando se chegou à
decisão de assinar o acordo proposto, a agressiva minoria
russofóbica opôs-se terminantemente: a Rússia não
pode receber o estatuto de viagens com isenção de visto para a
União Europeia antes de a Geórgia, a Ucrânia e a Moldova o
receberem. É este o cenário geral. O que a União Europeia
fez depois disso, travando todos os canais de diálogo sistemático
foi uma erupção de emoção. Deitaram-nos as culpas
porque os golpistas insultaram o Ocidente ao deitarem fora o documento assinado
por Yanukovich e pela oposição no dia anterior, isso apesar de a
Alemanha, a França e a Polónia terem aprovado este documento. As
primeiras ações das novas autoridades foram eliminar a
língua russa da vida diária e expulsar os russos da Crimeia.
Quando os falantes de russo e os russos na Ucrânia se opuseram a isto e
pediram que os deixassem em paz, foi desencadeada contra eles uma alegada
"operação terrorista".
Com efeito, a União Europeia impôs sanções contra
nós e cortou todos os canais de comunicação porque
nós levantámos a voz em defesa dos cidadãos russos e dos
habitantes de etnia russa na Ucrânia, em Donbass e na Crimeia. Tentamos
analisar problemas com eles quando começam a fazer queixas contra
nós. Provavelmente eles percebem isso; espero que ainda sejam
políticos experientes. Mas se compreendem isso mas não querem
considerá-lo na sua prática política, significa que
estão a ser culpados de russofobia ou não podem fazer nada quanto
à agressiva minoria russofóbica na União Europeia.
Dimitri Simes:
Eu penso que, quando falamos sobre a União Europeia, é
importante olhar para o que é a União Europeia e até que
ponto se alterou em comparação com o que costumava ser e com o
que supostamente seria quando foi fundada. A União Europeia foi
concebida sobretudo como uma organização para
cooperação económica.
No início, não foi considerado nenhuma componente
política. Tratava-se de a União Europeia contribuir para a
integração económica da Europa. Até se referiu a
possibilidade de a Rússia desempenhar qualquer papel associado nesse
processo. Mas depois disseram que a União Europeia também devia
ter alguns valores comuns. A princípio, a ideia era que esses valores
comuns seriam o cimento da própria União Europeia. Depois surgiu
uma nova ideia em Varsóvia que era aceitável para esses valores
europeus (visto que eram realmente universais): propagá-los a outras
regiões, assim como à Rússia, para que os respeitassem ou
mesmo lhes obedecessem. Quando olho para a abordagem dos Estados Unidos
à Ucrânia, o conflito em Donbass e as exigências de devolver
a Crimeia a Kiev, parece-me que a União Europeia está a tornar-se
numa organização missionária. Quando lidamos com cruzados,
provavelmente não vale a pena tentar entendermo-nos com eles ou apelar
à sua lógica e consciência. Não acha que a
União Europeia se acantonou num local onde há oportunidades
limitadas para as parcerias e um grande potencial para um confronto? Ou estou a
ser demasiado pessimista?
Sergey Lavrov:
Não, concordo inteiramente consigo. Isto é um estilo
missionário repreendendo os outros enquanto projetam a sua
superioridade. É importante ver esta tendência, porque já
provocou problemas à Europa repetidas vezes.
É este o caso, neste momento. Instituída como a Comunidade do
Carvão e do Aço, a Comunidade Económica Europeia de
então- se olharem para a União Europeia de hoje, olhem para os
seus valores, já estão a atacar os seus próprios membros,
como a Polónia e a Hungria, só porque estes países
têm tradições culturais e religiosas um pouco diferentes.
Você disse que começou na Polónia. Eu já me esqueci
quem começou isso
Dimitri Simes:
Eu ouvi-o pela primeira vez a delegados polacos numa conferência.
Sergey Lavrov:
Agora a Polónia está a enfrentar as consequências das
suas ideias, não só no exterior da União Europeia, mas
dentro da própria organização.
Quando alguém tenta impor quaisquer valores à Rússia,
relacionados, como eles acham, com a democracia e os direitos humanos, temos
esta reação muito específica: todos os valores universais
estão contidos na Declaração Universal dos Direitos
Humanos, de 1948, que todos assinaram. Quaisquer valores inventados agora, que
tentem impor-nos a nós ou a outros países, não são
universais. Não foram acordados por toda a comunidade internacional.
Mesmo dentro da União Europeia, olhem para estas
manifestações de protesto nas tuas! Há uns anos, houve
manifestações em França em defesa da família
tradicional, dos conceitos de "mãe", "pai" e
"filhos". Isto é profundo. Brincar com valores tradicionais
é perigoso.
Quanto à União Europeia ter em tempos convidado a Rússia
para membro associado, nunca concordámos em assinar um documento de
associação. Agora está a acontecer o mesmo em
relação aos países da Parceria Oriental a
Arménia, a Ucrânia e a Moldávia. Quanto as
relações da Rússia com a União Europeia, que
Bruxelas destruiu, só restou uma coisa o documento básico
em termos de comércio e investimento. Foi de facto o tema de
negociação entre a Comissão de Bruxelas e a
Federação Russa. É um documento que se mantém
válido. Cooperamos com países individuais, mas não com a
União Europeia, porque foram esses os termos acordados, e a sua
implementação prática passa por canais bilaterais. A
única coisa que a União Europeia está hoje a fazer neste
aspeto é impor sanções e proibir os seus membros de
cumprir determinadas partes deste acordo porque querem "punir a
Rússia". Ou seja, não há outros laços.
Dizem-nos que estamos deliberadamente a descarrilar quanto às nossas
relações (embora os factos sejam simplesmente ultrajantes), a
tentar mudar os nossos laços com a Europa para canais bilaterais, a
querer "dividir" a União Europeia. Não queremos dividir
ninguém. Sempre dissemos que estamos interessados numa União
Europeia forte e independente. Mas se a União Europeia optar por uma
posição não independente na arena internacional, como
já analisámos, está no seu direito. Não podemos
fazer nada quanto a isso. Sempre apoiámos a sua independência e
unidade. Mas, na atual situação, em que Bruxelas cortou com todas
as relações, quando determinados países europeus vêm
ter connosco (não tentámos atrair ninguém) com propostas
de conversações, para visitar qualquer dos lados e analisar
alguns projetos promissores de relações bilaterais, como podemos
escusar-nos aos nossos parceiros? É muito injusto (é mesmo uma
vergonha) tentar mostrar essas reuniões como fazendo parte duma
estratégia de dividir a União Europeia. Ela já tem
problemas suficientes que a dividem.
Dimitri Simes:
Essa é uma questão filosófica nas relações
da Rússia com a União Europeia. Quando a União Europeia
impôs sanções contra a China, a China teve uma forte
reação. Foi uma surpresa desagradável para a União
Europeia e provocou indignação. Entretanto, Bruxelas não
espera uma reação dessas da Rússia na firme crença
de que a Rússia não tem alavancas económicas para se opor
à União Europeia. Tanto quanto sei, a Rússia não
impôs quaisquer sanções pesadas à União
Europeia.
Esta é uma situação interessante. A Rússia fornece
à Europa 33% do seu gás. Os números para o petróleo
são praticamente os mesmos. Acho que, durante todo este tempo, a
Rússia tem provado convincentemente que não vai usar a energia
como alavanca política na Europa. Compreensivelmente, a Rússia
tem estado interessada nisso, especialmente quando se trata de terminar o
Gasoduto do Mar Báltico. Parece-me que determinadas pessoas na Europa se
esqueceram de que, se a Rússia não fizer qualquer coisa, isso
não significa que não possa fazê-lo, ou que não
será obrigada fazê-lo, se a pressão da União
Europeia sobre a Rússia ultrapassar o limite. Acha que isto é
possível, em teoria? Ou a Rússia põe totalmente de parte
uma ação dessas?
Sergey Lavrov:
: Você está a dizer (metaforicamente) que eles ainda não
leram (o que é mais provável) ou que se esqueceram da epopeia
sobre Ilya Muromets
[4]
que dormia sobre o forno
e ninguém lhe prestava atenção? Isso não é
uma ameaça. Nunca usaremos o abastecimento de energia ou de
petróleo e gás à Europa com esse objetivo. Esta é
uma posição de princípio independente de qualquer outra
coisa.
Dimitri Simes:
Mesmo que se separem do SWIFT
[5]
e de tudo o mais?
Sergey Lavrov:
Não o faremos. Isto é uma posição de
princípio para o Presidente da Rússia, Vladimir Putin. Não
vamos criar uma situação que force os cidadãos da
União Europeia a "congelarem". Nunca faremos isso. Não
temos nada em comum com Kiev que fechou o abastecimento de água à
Crimeia e sentiu nisso grande prazer. Isso é uma posição
vergonhosa na arena mundial. Enquanto nos acusam com frequência de
usarmos a energia como instrumento de influência, como uma arma, o
Ocidente mantém o silêncio sobre o que Kiev está a fazer
com o abastecimento da água à Crimeia. Creio que a
satisfação das necessidades básicas de que depende a vida
quotidiana dos cidadãos vulgares nunca deveria ser objeto de
sanções.
Dimitri Simes:
Neste caso, o que quer dizer quando se referiu ao "fenómeno"
de Ilya Muromets?
Sergey Lavrov:
É possível reagir de diferentes formas. Sempre
avisámos que estaremos preparados para reagir. Vamos reagir a quaisquer
ações prejudiciais contra nós mas não
necessariamente de forma simétrica. A propósito, falando do
impacto das sanções sobre civis, vejam o está a acontecer
na Síria quanto à Lei de César
[6]
Os meus colegas na Europa e, já agora, na região, segredam que
estão horrorizados pela forma como esta lei tem eliminado qualquer
oportunidade de fazer negócios com a Síria. O objetivo é
claro asfixiar os sírios e levá-los a revoltarem-se e a
derrubarem Bashar al-Assad.
Agora, umas palavras sobre a nossa reação e a
reação da China às sanções da Europa.
Afinal, a China também evitou suspender a atividade económica.
Apenas impôs sanções sobre uma série de
indivíduos e empresas que detêm determinadas
posições anti-China. Nós estamos a fazer basicamente o
mesmo.
Vyacheslav Nikonov:
Tanto quanto sabemos, Ilya Muromets não suspendeu os
abastecimentos de petróleo e gás. Usou outros métodos que
foram frequentemente simétricos. Acho que nós também temos
um sólido conjunto de instrumentos.
Não estaremos a exagerar a importância da União Europeia no
mundo moderno? Há uma identidade e há valores europeus. Sei disso
visto que tenho lidado com primeiros-ministros e especialistas europeus
há muitos anos.
Contudo, tenho a impressão de que há dois valores principais: o
primeiro é o euro e o segundo é o conceito LGBT e mais 60 letras
que descreve esta noção relacionada com a identidade sexual, a
sua presença, ausência ou mistura.
A União Europeia está a passar por uma crise o Brexit. A
Grã-Bretanha abandonou a União Europeia. A crise económica
é muito má. Provavelmente, é pior na Europa do que noutro
sítio qualquer. A economia caiu mais de 10% em muitos países. A
crise relacionada com a vacina mostrou que a Europa não consegue conter
o vírus e adotar uma política comum. Estes problemas estão
a surgir a todos os níveis. Não consegue traçar uma
política económica comum, nem regras de migração,
etc. Não será que estamos a dar demasiada atenção
à Europa? Talvez possamos agir sem olhar para esta estrutura
"decadente"?
Sergey Lavrov:
Mas em que é que estamos a dar demasiada atenção
à Europa? Temos uma posição muito simples que o presidente
da Rússia. Vladimir Putin tem referido muitas vezes: não nos
sentimos atingidos. Como sabemos, as pessoas atingidas estão numa
posição de desvantagem ou, como dizemos na Rússia, as
pessoas atingidas têm de ir buscar água, uma coisa que é
escassa na Crimeia. Estaremos sempre dispostos a fazer reviver as nossas
relações, na prática a ressuscitá-las das cinzas,
mas para isso temos de saber qual é o interesse da União
Europeia. Não vamos bater a uma porta fechada. Eles conhecem bem as
nossas propostas, tal como os americanos conhecem as nossas propostas de
estabilidade estratégica, de segurança cibernética e de
muitas outras coisas. Dissemos a todos eles: "Os nossos amigos e colegas,
estamos prontos para isto. Percebemos que vocês devem ter ideias
recíprocas, mas ainda não ouvimos falar delas. Logo que
vocês estiverem prontos, vamo-nos sentar e analisá-las, procurar
um equilíbrio de interesses." Entretanto, estamos agora a ser
acusados de negligenciar a política na União Europeia, por isso
acho que não estamos a cortejar esta aliança nem a exagerar a sua
importância. Ela determina o seu lugar no mundo. Já falámos
disto hoje.
Quanto aos valores europeus, temos muitos debates em curso. Algumas pessoas
precisam mais das etiquetas de preços europeus do que dos valores
europeus. Querem viajar até lá para fazer compras, para se
entreterem, para comprar algum imóvel e voltam para casa. Como já
disse, os nossos valores comuns residem na nossa História, na
influência mútua das nossas culturas, da nossa literatura, arte e
música. São excelentes.
Vyacheslav Nikonov:
Quanto à cultura e arte europeias, eles têm na
realidade
Sergey Lavrov:
Eu estou a referir-me às nossas raízes históricas.
Vyacheslav Nikonov:
Porque eu penso que a Europa de hoje está bastante vazia em termos
de cultura.
Sergey Lavrov:
Têm umas canções engraçadas; ouvimo-las no
carro, por vezes.
Dimitri Simes:
Falando das relações com os Estados Unidos, gostava de lhe
fazer uma pergunta pessoal porque o senhor viveu e trabalhou ali durante muito
tempo quando era representante permanente da Rússia nas
Nações Unidas. Claro que também lidou com os EUA enquanto
ministro das Relações Exteriores da Federação
Russa. Eu vivi nos EUA durante quase 50 anos.
Sergey Lavrov:
Porque é que está a usar o verbo no passado?
Dimitri Simes:
Eu agora estou em Moscovo. Hoje olho para os Estados Unidos e tenho a
impressão de que estão a passar por uma revolução
cultural. Acho que, se disséssemos isto a muita gente na
administração de Joseph Biden ou aos Democratas no Congresso,
eles não se sentiriam ofendidos de modo algum. Dirão que uma
revolução cultural já devia ter sido feita há
muito, que finalmente é necessário erradicar o racismo, dar
oportunidades iguais às minorias de orientação sexual
porque também foram discriminadas e desenvolver uma verdadeira
democracia que exige que todos os que quiserem votar possam votar. Na
prática, isso significa que milhões de pessoas terão a
oportunidade de votar sem terem de ser obrigatoriamente cidadãos
americanos. É por isso que os Democratas se opõem categoricamente
à proibição de eleições ao domingo. Como
sabem, nunca houve eleições nos EUA ao domingo. Consideram que o
domingo é o dia do Senhor. Os Democratas queriam eleições
ao domingo para os autocarros poderem ir às igrejas dos afro-americanos
e levarem as pessoas para as assembleias de voto.
Vyacheslav Nikonov:
Porquê levá-las de autocarro? Elas podem votar pelo correio.
Dimitri Simes:
Ambas as opções estarão disponíveis.
Sergey Lavrov:
Porque é que não põem uma urna na igreja?
Dimitri Simes:
Exatamente. Acha que os Estados Unidos estão, em muitos aspetos, a
evoluir para um país diferente e que isso não é
necessariamente um processo irreversível, embora seja importante?
Concorda que este processo não é uma questão americana
exclusivamente interna porque é acompanhado pelo aparecimento duma nova
ideologia revolucionária que exige que os valores americanos se
propaguem pelo mundo e que estes modelos americanos não devem ser
rejeitados como acontece hoje na Rússia e na China? Isso poderá
levar a um conflito existencial?
Sergey Lavrov:
Podemos falar sobre isso mas, primeiro, deixe-me acabar o que eu estava a
dizer sobre a cultura europeia. Esta é, na minha opinião, uma
ilustração esclarecedora do estado da cultura europeia atual. Se
falamos de revoluções, incluindo uma revolução
cultural, o concurso da Eurovisão diz-nos muito. O que estão a
fazer agora na Bielorrússia é revoltante. Isto é uma
censura pura e dura deste modo: como "nós"
ninguém sabe quem, exatamente, uns indivíduos anónimos
quaisquer imaginamos que ouvimos certas insinuações na
vossa canção, não vamos permitir que entrem no concurso a
não ser que tenham outra canção. Mas depois qualquer outra
canção da Bielorrússia sofre o mesmo destino. O que
é que isto tem em comum com a arte, a cultura ou a democracia?
Quanto a uma revolução cultural nos Estados Unidos, penso que
estão a ocorrer ali procedimentos que merecem ser descritos como tal.
Provavelmente, todos querem erradicar o racismo e, quanto a nós, nunca
tivemos qualquer dúvida a esse respeito. Fomos pioneiros por
detrás do movimento para garantir direitos iguais a toda a gente,
independentemente da cor da pele. Contudo, temos de ter atenção
para não cair no outro extremo, aquele que observámos durante os
incidentes do Black Lives Matter, na agressão contra as pessoas brancas,
cidadãos brancos americanos.
No outro dia, festejámos um dia internacional destinado a aumentar a
consciência deste problema e o secretário-geral da ONU,
António Guterres, quando falou numa reunião da Assembleia Geral,
disse que o ano passado tinha sido um ano com as mais graves e mais numerosas
manifestações da supremacia branca. Eu pedi que me dessem o texto
completo desse discurso, porque queria perceber o que é que ele tinha
especificamente em vista. Se a ideia era falar duma tendência e da
disposição de seguir essa tendência, é
lamentável. Isto continua a ser a Organização das
Nações Unidas e não um encontro para promover conceitos
dos EUA, tendências dos EUA.
Quanto à razão por que eles precisam disso, sim, querem propagar
isso a todo o mundo. Têm um potencial enorme para cumprirem esse
objetivo. Hollywood também começou a alterar as suas regras,
portanto tudo reflete a diversidade da sociedade contemporânea, que
é também uma forma de censura, de controlo da arte e uma forma de
impor restrições e exigências a terceiros. Tenho visto
atores negros a representar comédias de Shakespeare. A única
coisa que não sei é quando um ator branco irá representar
Otelo. Está a ver, isto não passa de um absurdo. A
correção política reduzida ao absurdo não
levará a nada de bom.
O outro instrumento são as redes sociais e as plataformas na Internet,
assim como os servidores situados nos Estados Unidos. Os EUA recusam
liminarmente discutir formas de tornar o governo da Internet mais
democrático ou de estabelecer regras comuns para regulamentar as redes
sociais com o objetivo de evitar a repetição da
situação com o TikTok e outras redes sociais que
encontrámos durante os recentes acontecimentos na Rússia,
incluindo a propagação de informações
abomináveis, como o abuso pessoal, a pedofilia e muitas outras coisas.
Já abordámos o TikTok e outras redes sociais quanto à
necessidade de instituir regras elementares de respeito e de propriedade mas os
americanos não estão dispostos a fazer este tipo de regras
universais.
Em Anchorage, o conselheiro de Segurança Nacional dos EUA, Jake
Sullivan, e o secretário de Estado Antony Blinken repreenderam os
chineses por causa dos direitos humanos, das minorias étnicas e da
democracia na China. Claro, Blinken disse que eles [nos EUA] também
têm de resolver determinados problemas nesta área, mas haviam de
os resolver sozinhos. Durante as conversações com os americanos
acontece o mesmo com os europeus logo que começamos a
propor debater formas de democratizar as relações internacionais
ou a supremacia da lei a uma escala internacional com regras próprias,
eles abandonam o assunto. Querem substituir a lei internacional pelas suas
próprias regras, coisa que não tem nada em comum com a supremacia
da lei a nível global. Já falei sobre manifestações
de grande escala em França em defesa dos valores familiares
tradicionais. Parece que, para garantir os direitos de um grupo de pessoas,
é preciso infringir os direitos de outro grupo. Ou seja, promover esses
valores pelo mundo inteiro não é um fim em si mesmo, mas um
instrumento para garantir o seu domínio.
Dimitri Simes:
Richard Nixon disse um dia a Nikita Khrushchev que não podia haver uma
verdadeira harmonia nem uma
verdadeira parceria entre a União Soviética e a América
enquanto a União Soviética não deixasse de espalhar a sua
ideologia. Devo dizer que isso foi um grande problema na era de Brezhnev,
porque estava-se a debater uma
détente
enquanto, simultaneamente, sofriam uma permanente luta de classes
internacional. Na minha opinião, Leonid Brezhnev estava a fazer isso sem
grande convicção. Mas hoje as coisas viraram-se ao
contrário. Hoje o Ocidente coletivo está ansioso por proliferar a
sua ideologia e os seus valores. E parece estarem a fazer isso com muito mais
convicção e perseverança do que a União
Soviética tentou, com Leonid Brezhnev. Isso pressupõe um risco de
colisão?
Sergey Lavrov:
No tempo de Leonid Brezhnev, a União Soviética não
via nenhuma ameaça à sua existência. Podem questionar se
essa atitude era perspicaz, mas era o que era. Hoje o Ocidente vê o seu
domínio ameaçado. É um facto. Portanto, todos esses
malabarismos, incluindo a invenção de algumas "regras"
como na ordem internacional, com base em regras, uma coisa que o
Ocidente inventou para substituir a Carta da ONU refletem precisamente
essa tendência.
Concordo que temos posições trocadas, ou melhor, a União
Soviética e o Ocidente moderno têm. Mas penso que isso não
ofenderá ninguém visto que não é um grande segredo.
Falei com Rex Tillerson quando ele era Secretário de Estado dos EUA. Ele
é um político e diplomata ponderado e experiente. Foi bom
trabalhar com ele. Discordávamos sobre a maioria das coisas, mas sempre
quisemos continuar o diálogo para aproximar as nossas
posições, pelo menos, um pouco. Quando ele me disse pela primeira
vez que estavam preocupados com a interferência da Rússia nalgumas
eleições, eu disse que ainda não nos tinham provado nada e
a única coisa que ouvíamos eram acusações. Quando
começaram a acusar-nos de interferirmos nas eleições
deles, propusemos repetidas vezes que usassem o canal especial que
tínhamos para trocar informações sobre ameaças
às redes e organizações de informação.
Recusaram. Propusemos repetidas vezes o diálogo, ainda antes disso,
quando Barack Obama era presidente, de outubro de 2016 à tomada de posse
de Donald Trump em janeiro de 2017. Recusaram sempre.
Chamei a atenção de Tillerson para que eles tinham estipulado
diretamente na legislação que o Departamento de Estado dos EUA
devia gastar 20 milhões de dólares por ano para apoiar a
sociedade civil russa e promover a democracia. Não havia nenhuma
suspeita da nossa parte quando eles o fizeram abertamente (por exemplo, a Lei
de Apoio à Ucrânia).
[7]
Não havia nada a provar só anunciaram que iam interferir.
Ele disse-me que era uma coisa totalmente diferente. Perguntei-lhe porquê
e ele disse que era porque nós promovíamos o autoritarismo e eles
fomentavam a democracia. Foi assim.
Dimitri Simes:
E ele disse isso com toda a convicção, não foi?
Sergey Lavrov:
Foi.
Vyacheslav Nikonov:
Naturalmente, esta política leva a uma polarização
drástica. A polarização das relações
internacionais é uma coisa perigosa. Recordamos o início do
século XIX e o início do século XX. As coisas acabaram
sempre em guerras. Os americanos, ao perderem o domínio global,
irão criar (já o anunciaram) uma nova "aliança de
democracias". Ou seja, criar alianças americanas e
pró-americanas, obrigando toda a gente a escolher. Esta
polarização vai aumentar. O que significará isso para o
mundo e para as alianças em que a Rússia é membro? Ou
seja, o BRICS (que, segundo penso, eles vão tentar dividir), a
Organização para Cooperação de Xangai (OCX) e a
Comunidade dos Estados Independentes (CEI). Até onde pode isto chegar?
Qual é o perigo?
Sergey Lavrov:
Essa é uma política deliberada e uma extensão da
agenda de que temos falado sobre os Estados Unidos a fomentar a
democracia e a espalhar benefícios. Os americanos e a Europa
estão muito ativos (mas os americanos estão especialmente ativos)
na Ásia Central. Estão a tentar criar os seus formatos
próprios como o C5+1. A Rússia também faz parte dum
formato 5+1 na Ásia Central, para além da OCX, da CEI, da
União Económica Eurasiática e da Organização
do Tratado de Segurança Coletiva uma organização
que envolve os ministros das relações exteriores de cinco
países da Ásia Central e este vosso humilde servo [a
Rússia]. Este formato é útil. Na verdade, o volume dos
laços económicos que os EUA e a União Europeia
estão hoje a criar na Ásia Central ainda não tem
comparação com a nossa interpenetração
económica, mas eles estão a procurar atingir um objetivo
inequívoco de enfraquecer os nossos laços com os nossos aliados e
parceiros estratégicos de todas as formas possíveis.
As numerosas iniciativas em torno da reconciliação no
Afeganistão e em torno da região Indo-Pacífico perspetivam
a reorientação da Ásia Central do seu atual vetor para o
Sul para ajudar a reconstruir o Afeganistão e ao mesmo tempo
enfraquecer os seus laços com a Federação Russa.
Eu poderia falar durante muito tempo sobre a região Indo-Pacífico
e o conceito Indo-Pacífico. Essa iniciativa a vários
níveis destina-se a impedir a Nova Rota da Seda, da China e limitar a
influência chinesa na região, criando entraves constantes a esse
país. Tem havido alguns deslizes na criação de uma
"NATO asiática". Embora na interpretação dos EUA
a região Indo-Pacífico seja descrita como "livre e
aberta", são ténues as hipóteses de essas
posições serem trabalhadas num processo igual ou aberto.
Já é óbvio que não é "aberta". A
China não foi convidada, pelo contrário, esse país foi
declarado um alvo para contenção. Nós também
não fomos convidados, o que significa que a atitude para com a
Rússia é semelhante. Eu diria que são tendências a
longo prazo. Estamos a falar disto com franqueza com os nossos vizinhos e
aliados mais próximos. Estou confiante em que eles percebem todas estas
ameaças. Nenhum deles considera a possibilidade de alguém lhes
dizer com quem podem falar ou não. É seu direito soberano
escolherem os seus parceiros.
O termo "multi-vetor" tornou-se meio abusivo, mas não vamos
desistir da abordagem multi-vetor. Estamos abertos à
cooperação e à amizade com todos os que estiverem
preparados para relações baseadas na igualdade, no respeito
mútuo, no compromisso e no equilíbrio de interesses. É um
facto óbvio que os nossos colegas ocidentais estão nitidamente a
abusar desta abordagem, em especial nos países ex-soviéticos.
Vyacheslav Nikonov:
É possível evitar o atual cenário militar nestas
circunstâncias? Não será altura de criar uma aliança
de países livres dada a inversão dos papéis que ocorreu no
mundo moderno? Uma aliança, talvez, de democracias genuínas que
se oponham ao ataque em curso?
Sergey Lavrov:
Não vamos envolver-nos nesse tipo de engenharia política. A
Rússia está comprometida com as Nações Unidas.
Quando a França e a Alemanha avançaram com o conceito de
multilateralismo, perguntámos-lhes o que é que isso significava.
Fez-se um silêncio, seguido por artigos conjuntos escritos pelos
ministros das relações exteriores da França e da Alemanha,
declarando que a União Europeia é um exemplo de multilateralismo
eficaz e toda a gente precisava de se adaptar aos processos europeus. A nossa
pergunta sobre porque é que a plataforma multilateral da ONU, facilmente
disponível e universal, não era uma boa opção
manteve-se sem resposta. Contudo, a resposta está ali, e hoje já
nos referimos a ela mais de uma vez. Estão a fazer as regras em que
supostamente se deve basear a ordem internacional.
Dimitri Simes:
Senhor ministro, ocupámos grande parte do seu tempo e agradecemos-lhe.
Mas não podemos deixá-lo ir embora sem lhe fazer uma pergunta
mais pessoal. O que é ser Ministro das Relações Exteriores
da Rússia neste mundo em rápida mudança?
O senhor já trabalhou em várias eras totalmente diferentes.
Quando foi representante permanente da Rússia nas Nações
Unidas em Nova Iorque, foi num período de "paixão
romântica" pelos Estados Unidos, embora talvez não fosse nos
termos mais benéficos para a Rússia. No início do
século XXI, a Rússia andava à procura de parcerias.
Depois, chegámos àquilo que estamos hoje a observar. Como
é que o senhor, uma pessoa que, de muitas formas, é o arquiteto
desta era, uma testemunha e um participante deste processo, encara o seu
trabalho neste papel tão complexo?
Sergey Lavrov:
Para ser sucinto, nunca me aborreço. Isto se estamos a falar das
diferentes eras na minha carreira. Todos nós vivemos nestas eras e temos
assistido a estas transições. Perguntou-me há bocado se os
Estados Unidos mudaram. Mudaram sim. Imenso.
Dimitri Simes:
E o senhor mudou?
Sergey Lavrov:
Provavelmente. Não cabe a mim dizer isso. Uma pessoa observa o
ambiente como um processo em permanente evolução. As pessoas
crescem, ficam mais espertas ou mais estúpidas, mas não têm
forma de o observar.
Dimitri Simes:
Acha que todos nós nos sentimos desiludidos de muitas formas, mas
também crescemos em resultado dessas experiências e, claro,
sobretudo uma pessoa que ocupa posições como as suas?
Sergey Lavrov:
Claro, isso é verdade. Como é que isso pode deixar de influenciar
uma pessoa? A personalidade nunca deixa de evoluir. É uma coisa que se
mantém até ao fim da nossa vida. Essas evoluções
revolucionárias tiveram grande influência em mim. Eu acho que os
ataques de 11 de Setembro foram o ponto de viragem na vida americana. Eu estava
em Manhattan, em Nova Iorque, nessa altura, e senti esse odor. Eu estava com
dificuldade em fazer um telefonema, porque os telefones estavam mortos. Desde
então, Nova Iorque passou a ser uma cidade diferente. Esta cidade livre,
que vivia a sua vida 24 horas por dia e a apreciava, tornou-se desconfiada e
começou a olhar por cima do ombro para ver se havia alguém por
perto que a pudesse magoar.
Esta suspeita espalhou-se profundamente na sociedade americana. Provavelmente
houve razões sérias para isso. Eu tenho de elogiar os
serviços de informações dos EUA, porque desde
então, para além da Maratona de Boston, de que nós os
informámos, não houve mais ataques terroristas. No entanto, ainda
se sente a desconfiança e o distanciamento. Talvez haja pessoas que
queiram tirar vantagens disto a fim de fazerem coisas que mencionou. Se 11
milhões de americanos passarem a poder votar, sejam bem-vindos ao
sistema de um partido, de volta à URSS.
Vyacheslav Nikonov:
Senhor ministro, muito obrigado por esta entrevista. Agora que estamos
dentro das históricas paredes da Mansão do ministro das
Relações Exteriores em Spiridonovka, um local onde se fez a
História e a grande diplomacia, incluindo a diplomacia das grandes
potências, gostava de desejar o regresso da diplomacia. Se ela voltar,
tal como o presidente Vladimir Putin está a exprimir ao presidente Joe
Biden, sob a forma de um diálogo
live-stream,
então o Grande Jogo estará ao seu serviço e ao
serviço dos dois presidentes.
Sergey Lavrov:
Obrigado. O presidente Biden já disse que a diplomacia voltou à
política externa dos EUA. O seu sonho tornou-se realidade.
01/Abril/2021
Notas da tradutora
[1] ABM:
Tratado sobre Mísseis Antibalísticos, assinado entre os EUA e a
União Soviética em 1972. Os EUA retiraram-se do acordo em 2002.
[2] INF:
Tratado de Forças Nucleares de Alcance Intermediário, assinado
entre os EUA e a União Soviética em 1987; em 2018, os EUA
anunciaram a retirada do acordo, e retiraram-se formalmente do tratado em 2019.
[3] MK-41: Sistema de lançamento de mísseis. V.
en.wikipedia.org/wiki/Mark_41_Vertical_Launching_System
[4] Ilya Muromets: um dos cavaleiros épicos do folclore russo;
tornou-se sinónimo de um poder físico e integridade espiritual
excecionais, dedicados à proteção da Pátria e do
Povo. V.
en.wikipedia.org/wiki/Ilya_Muromets
[5] SWIFT:
Sociedade de Telecomunicações Financeiras Interbancárias
Mundiais, sociedade cooperativa internacional com sede em Bruxelas, fundada em
1973 por 239 bancos de 15 países com o objetivo de criar um canal de
comunicação global entre os seus participantes. V.
pt.wikipedia.org/wiki/SWIFT
[6]
A Lei de Proteção Civil César Síria de 2019,
dos EUA, sanciona o governo sírio, incluindo o presidente Bashar
al-Assad, por supostos crimes de guerra contra a população
síria. A
lei foi assinada pelo presidente Trump em 2019 e entrou em vigor em junho de
2020. V.
en.wikipedia.org/wiki/Caesar_Syria_Civilian_Protection_Act
[7] Esta lei, uma das muitas intromissões dos EUA na
Ucrânia, diz que pretende punir responsáveis por violências
naquele país. V.
en.wikipedia.org/wiki/Ukraine_Support_Act
[*]
Ministro dos Negócios Estrangeiros da Rússia.
[**] Vyacheslav Nikonov é um cientista político russo. Foi eleito
para a Duma do Estado em 1993 e novamente em 2011. Dirige a Russkiy Mir
Foundation, para promoção da língua e cultura russas
internacionalmente.
Dimitri Simes é presidente e CEO do Centro para o Interesse Nacional em
Washington, e editor da sua revista de política externa, The National
Interest. Foi conselheiro de política externa de Richard Nixon
Entrevista realizada no programa
Bolshaya Igra
(Grande Jogo), do Canal 1 da TV russa em 01/Abril/2021
A versão em inglês encontra-se em
www.mid.ru/en/...
e em
thesaker.is/...
.
Tradução de Margarida Ferreira.
Esta entrevista encontra-se em
https://resistir.info/
.
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