Sodoma ou Gomorra: a escolha é sua!

Dmitry Orlov [*]

A destruição de Sodoma e Gomorra, Jacob de Wet II.

Em 1997, voltei da Rússia para os EUA, recém-casado e, tendo acabado de observar o pós-colapso da URSS em primeira mão, uma pergunta óbvia me ocorreu: quando os vários estados [dos EUA] seguirão o exemplo da URSS e declararão sua independência do governo federal irremediavelmente corrupto e não funcional? Considerando que a principal causa por trás do colapso soviético foi o tédio – as pessoas viviam bem, mas estavam entediadas e queriam viver ainda melhor – seria preciso algo mais para derrubar os EUA. O que poderia ser?

Depois de um pouco de pesquisa, comecei a focar em algo que veio a ser conhecido como Pico do Petróleo: o fato de que a produção de petróleo nos EUA atingiu o pico em 1970 e estava atingindo o pico em um país após o outro em todo o mundo. Ao mesmo tempo, os EUA, com seu estilo de vida inegociável, eram o país mais viciado em petróleo do mundo, e seria inútil tentar arrancar as chaves do carro dos dedos frios e mortos dos americanos – até o rigor mortis chegar. De fato, os americanos optaram por deslocalizar praticamente toda a sua indústria para a China (que na época era extremamente rica em carvão) apenas para continuar dirigindo sem rumo em SUVs cada vez maiores. Isso levou a dívida federal dos EUA a crescer aos trancos e barrancos e não poderia terminar bem.

Depois de um tempo, um movimento popular do Pico do Petróleo formou-se nos EUA e eu me envolvi tangencialmente nele, dando palestras em algumas conferências e mencionando o Pico do Petróleo aqui e ali em meus livros e artigos. Por um tempo, as coisas correram conforme o planejado:   a produção global de petróleo convencional atingiu o pico em 2005-6, os preços do petróleo dispararam para perto de US$ 150/barril e, com certeza, um pouco mais tarde, em 2008, o setor financeiro dos EUA ficou extremamente doente e precisou ser ressuscitado por meio de grandes infusões de dinheiro grátis e, posteriormente, mantido em aparelhos de suporte à vida com taxas de juros próximas de zero.

Mas então uma coisa estranha aconteceu: por puro desespero, as empresas de petróleo e gás dos EUA recorreram a uma velha tecnologia soviética chamada hidrofraturamento para extrair o petróleo preso na rocha de xisto – e um pequeno milagre aconteceu. Essa tecnologia, que recebeu o nome cativante de “fracking” e foi aprimorada gradualmente ao longo do tempo, permitiu aos EUA estabelecer novos recordes de todos os tempos na produção de petróleo e gás, tornando-se novamente um grande exportador de ambos, permitindo que continuassem dirigindo sem rumo enquanto iam afundando cada vez mais em dívidas e importando quase tudo de que precisava.

A cartomante, de Caravaggio.

Como resultado disso, o movimento do Pico do Petróleo praticamente desapareceu. Algumas pessoas continuaram prestando atenção, apontando que o “fracking” nunca rendeu dinheiro, na verdade perdendo investimentos em torno de um milhão de milhões (trillion) de dólares, nunca teria realmente decolado se não fossem as taxas de juros próximas de zero (que agora acabaram) e era absolutamente horrível para o meio ambiente, envenenando as águas subterrâneas e causando terremotos. Mas o outrora vigoroso movimento para tirar os americanos de suas casas unifamiliares e carros individuais que desperdiçam energia e colocá-los em autocarros, tramways e prédios de apartamentos energeticamente eficientes não deu em nada. De qualquer forma, com o tempo, foi infestado por velhos hippies de comunidades maconheiras, visionários da ayahuasca, permacultores mascates, druidas elfos e goblins, entusiastas da mudança climática catastrófica e o resto do circo ambientalista de três picadeiros.

Avançando rápido para junho de 2023, aqui vem um novo recruta para o movimento Peak Oil:   o formidável Igor Sechin, chefe da Rosneft, que é a maior empresa de petróleo do mundo e desde há algum tempo a única lucrativa. Embora alguns possam afirmar que a Rosneft é propriedade do governo russo, isso não é verdade: o governo russo possui exatamente uma ação da Rosneft. O acionista majoritário da Rosneft é a Rosneftegaz AO, que é… espere… 100% de propriedade do governo russo. Então aí está!

No Fórum Econômico Internacional de São Petersburgo, que aconteceu na semana passada e contou com a presença de 150 delegações oficiais de 130 países (sim, a Rússia está muuuito isolada!) a apresentação de Igor Sechin foi intitulada “Sodoma e Gomorra nos mercados de energia: Ira de Deus ou caos organizado?” e com o subtítulo “Sauve qui peut!” (Perdoe meu francês). Em sua palestra muito bem feita, Sechin não deixou nenhuma vaca sagrada sem ser abatida. Aqui está um resumo.

Em primeiro lugar, ele abateu a teoria do aquecimento global com alguma prática de aquecimento global. Sim, o clima está aquecendo, principalmente no Ártico, mas está sempre mudando. Isso tem a ver com ciclos solares e variações na órbita da Terra. Esta parte é totalmente incontroversa – fora do Ocidente. Um pouco mais controversa é a observação de que a Terra parece estar aquecendo do núcleo para fora, e que isso parece estar acontecendo em outros planetas também – mas Sechin não entrou nisso. Seu argumento é que o aquecimento global está estimulando a procura por energia – não tanto nos EUA, onde todos que podem pagar pelo ar-condicionado já o possuem, mas muito na China, na África do Sul e na Nigéria, que antes eram arrefecidas pelo vento.

Em seguida, Sechin apontou que a muito elogiada transição energética para tecnologias neutras em carbono não está realmente acontecendo. Isso exigiria cerca de US$10 milhões de milhões por ano, e os fundos simplesmente não existem. Além disso, o número de carros elétricos em todo o mundo não chegará nem perto do número necessário e, mesmo com números tão baixos, a rede elétrica da maioria dos países não consegue mantê-los todos carregados. Se um bairro inteiro de trabalhadores de escritório chegar em sua comunidade-dormitório ao mesmo tempo e se conectar, a rede certamente cairá por culpa daquele bairro e, uma vez que o preço da atualização da rede seja acrescido ao preço do quilowatt-hora, todo mundo vai tentar trocar seu carro elétrico por um movido a gasolina ou a diesel. Em qualquer caso, nenhuma combinação de quaisquer tecnologias existentes, em qualquer nível de financiamento, permitirá alcançar a neutralidade carbônica até 2050 (o objetivo declarado) ou limitar o aquecimento global em 2ºC (outro objetivo declarado). Estes são todos sonhos impossíveis.

FALÊNCIA IMINENTE DOS EUA

Em seguida, Sechin abordou o problema iminente da falência dos EUA. A dívida, apontou, aumentou 34 vezes desde 1980 enquanto o PIB cresceu apenas 9 vezes. Ele caracterizou o recente aumento do limite de endividamento como “falência retardada”. Façam o que fizerem, a dívida nunca será paga e, dado que a era das taxas de juros mais baixas já passou, a dívida logo se tornará impossível de se manter, uma vez que engole toda a parcela variável do orçamento federal. Sechin não disse, mas direi eu: a única solução é desmantelar os EUA em seus estados constituintes. O que Sechin disse é que existem três caminhos a seguir:   hiperinflação, incumprimento e guerra. Ele não especificou se haveria ou não guerra entre os estados.

Detentores da dívida dos EUA.

Aconteça o que acontecer, haverá alguns perdedores (além dos próprios EUA). Esses serão os principais detentores da dívida federal dos Estados Unidos. Destes, os vencedores (por assim dizer) são Japão e China (incluindo Hong Kong) com mais de um milhão de milhões de dólares cada. Na Europa, os maiores perdedores serão a Grã-Bretanha, com cerca de US$700 mil milhões, seguida pela Bélgica com cerca de metade, seguida pela Suíça, Irlanda e França. Brasil e Canadá também sofrerão, com cerca de US$200 mil milhões cada. E offshores como Luxemburgo e Caymans serão adequadas para limpar o chão. Enquanto isso, os bancos dos EUA, apontou Sechin, já estão em situação difícil, com o setor bancário afundando no início de março de 2023 e os bancos regionais a sairem-se pior do que o setor bancário como um todo, tendo perdido um quarto de seu valor.

Sua citação para levar para casa é: “O dólar americano perderá posição lentamente, mas precisamos resgatá-lo imediatamente”. Existem dois problemas interligados: encontrar moedas de reserva alternativas (eventualmente) e formar sistemas alternativos de pagamento internacional (imediatamente). Surpreendentemente, são os EUA que estão a dar um forte impulso a ambos os processos, ao fazerem do dólar americano um instrumento de sanções unilaterais. Sechin zombou da resposta de Biden à crise bancária, o qual disse: “É assim que o capitalismo funciona”. NÃO é assim que o capitalismo funciona!!! Já houve surtos de alta inflação antes, mas nunca antes eles foram acompanhados por uma crise de dívida tão grande.

Tampouco há qualquer probabilidade de que os EUA, ou o G7, consigam sair de sua situação:   o crescimento da produtividade no G7 (medido como crescimento no valor do produto por unidade de trabalho) foi em média de apenas 0,8% ao ano . Em vez de impulsionar o investimento em atividades produtivas, o dinheiro recém-tomado foi para alimentar atividades especulativas e elevar os preços dos ativos de papel.

O que poderia substituir o dólar americano como moeda de reserva? Há, é claro, o yuan. O valor do rublo russo é extremamente bem sustentado pela vasta base de recursos e enfrenta apenas dois problemas: a hostilidade dos EUA e de suas nações vassalas e sua taxa de câmbio imprevisível. Com esses obstáculos removidos, poderia se tornar uma moeda regionalmente importante.

Destruição da economia de mercado.

Estamos assistindo à agonia da Pax Americana – um processo doloroso e desagradável repleto de possibilidades de excessos indesejados. A política de portas abertas, iniciada pelos Estados Unidos na viragem do século XX, está se transformando numa política de portas fechadas. Naquela época, os Estados Unidos tinham assegurada sua competitividade e produtividade; agora não têm nenhum dos dois. Este é um fator chave. Para discutir produtivamente o futuro do mercado global de energia, ou da economia global como um todo, precisamos primeiro aceitar um fato indiscutível:  a economia de mercado não funciona mais como um regulador dos movimentos globais de capital. Inflação alta, altas taxas de juros, interrupções na cadeia de suprimentos e déficits agora são a norma.

Portanto, a ênfase está na segurança nacional e nos governos nacionais como seus garantidores. As tarefas de reindustrialização, de localização de produções estrategicamente importantes, de militarização da economia, de garantia de estoques de produtos essenciais – o capital privado é incapaz de realizá-las. O único caminho a seguir é uma parceria governo-privada.

A combinação de intromissão política e mercados livres foi fatal para a indústria europeia. Perdeu o acesso ao gás russo barato e tornou-se completamente dependente das fontes americanas de gás natural liquefeito, mas desde que o fracking atingiu seus limites, esse recurso é limitado. Do jeito que está, a Europa só conseguiu substituir metade do gás russo e foi forçada a encerrar grande parte de sua capacidade industrial. A produção química caiu 18%, a siderúrgica caiu 17% desde dezembro de 2021. Embora os preços do gás natural tenham moderado, já ocorreu uma destruição de procura em cerca de 17% (em relação aos níveis de 2017-2022). Em março de 2023, a produção industrial caiu 3,5% em relação a dezembro de 2022 e a Alemanha – a potência industrial da Europa – entrou em recessão.

Quanto ao petróleo, Sechin garante que os preços devem subir. A procura provavelmente aumentará em cerca de 15 milhões de barris por dia, ou 15%, com grande parte do aumento vindo da África, que está experimentando um alto crescimento populacional. É provável que cresça 3/4 até 2050 e represente mais de um terço da população global. A procura de energia acompanhará o aumento da população.

Quanto ao abastecimento… a gente tem um grande problema. A substituição de recursos com nova produção é de apenas cerca de 90% e as novas descobertas são minúsculas em comparação com as grandes descobertas da década de 1970. Apesar dos recursos relativamente grandes (70 anos para a Arábia Saudita e Emirados Árabes Unidos, 100 anos para Kuwait e Iraque), o mundo enfrenta um déficit iminente de capacidade de produção e a OPEP não será capaz de atender à demanda. Isso será exacerbado pelo pico de produção de xisto nos EUA, onde o stock de poços perfurados não concluídos caiu 73% desde 2020 e agora equivale a menos de dois meses de fornecimento.

Ao mesmo tempo, a taxa de perfuração de novos poços caiu de 15 a 20% desde 2020 (de acordo com Baker Hughes) e deve cair um pouco mais agora que a taxa [de juros] dos fundos do Fed saltou de 0 para 5,25% em apenas um ano, tornando o financiamento para novos poços mais difícil de garantir. A base de recursos da Venezuela é enorme, mas seu desenvolvimento continua sendo um risco muito alto. Os únicos países onde a produção de petróleo deve aumentar são os do Oriente Médio, Rússia, Cazaquistão e Guiana, onde a ExxonMobile pretende produzir 1,2 milhão de barris/dia em 2027. Em outros lugares, a produção cairá. A base de recursos da Rússia é comparável à base de recursos do resto do mundo combinado, mas metade da produção russa é consumida internamente e essa fração provavelmente não diminuirá.

Segundo Sechin, sua Rosneft está pronta para enfrentar todos esses desafios, mas precisa do seguinte:

  1. Um novo sistema de pagamento internacional que seja independente de “moedas tóxicas” (o que significa o dólar americano e o euro).
  2. Logística de seguros e transportes, novamente, independente de regimes hostis.
  3. Disponibilidade e acessibilidade de crédito, visando especificamente áreas de desenvolvimento econômico necessário.

Ele também mencionou uma série de problemas internos da Rússia com preços de eletricidade, falta de gasodutos em direção ao leste em vez do oeste e o desenvolvimento de redes internas de distribuição de gás natural. Todos esses problemas estão sendo resolvidos, mas talvez não no ritmo que agradaria a Sechin.

21/Junho/2023

Ver também:
  • Intervenção de Seichin no SPIEF23 (em russo, c/ diapositivos)
  • [*] Escritor, russo.

    O original encontra-se em boosty.to/cluborlov/posts/135b0069-4c07-4175-9766-6db2384f1450?share=post_link e a tradução em sakerlatam.org/sodoma-ou-gomorra-sua-escolha/

    Este artigo encontra-se em resistir.info

    22/Jun/23