Marx, nosso contemporâneo, e o seu conceito de globalização
por István Mészarós
1. Da destruição produtiva à produção destrutiva
2. Das crises conjunturais/cíclicas à crise estrutural
3. A necessidade de enfrentar os desafios históricos do novo século
4. As características fundamentais da crise estrutural
A tarefa histórica da sociedade burguesa é a
criação de um MERCADO MUNDIAL, pelo menos nas suas grandes
linhas, e de uma produção apoiada nas suas bases. Dado que o
mundo é redondo, parece que essa tarefa foi levada a cabo com a
colonização da Califórnia e da Austrália e com a
anexação da China e do Japão. Eis aqui a questão
difícil para nós: no continente, a revolução
está iminente e assumirá também de imediato um
carácter socialista. Não será necessariamente esmagada
neste recanto do mundo,
dado que o movimento da sociedade burguesa é ainda
ascendente
numa área muito maior?
[1]
1.
Da
destruição produtiva
à
produção destrutiva
A crescente força destrutiva do capital à qual hoje estamos
submetidos de diversas maneiras desde o desperdício criminoso dos
recursos materiais e humanos até ao tratamento impiedoso de milhares de
milhões de seres humanos no mundo subdesenvolvido; e desde a
violação da natureza, apesar da retórica sobre a ecologia
até às aventuras militares da nova fase, potencialmente fatal, do
imperialismo hegemónico global dos Estados Unidos coloca-nos
perante o imperativo de criar uma alternativa positiva ao controlo actualmente
dominante das mudanças sociais.
Foi precisamente Marx o primeiro a formular, já em 1845, na sua
contribuição para
A Ideologia Alemã,
a alternativa ao sistema existente em termos absolutamente claros, mais tarde
evocados de novo nas palavras dramáticas de Rosa Luxemburg:
Socialismo ou barbárie. Escreveu ele que
No desenvolvimento das forças produtivas atinge-se um
estádio no qual se produzem forças de produção e
meios de intercâmbio que, sob as relações de
produção vigentes, só causam desgraça, que
já não são forças de produção, mas
forças de destruição
[...] Sob a propriedade privada, estas forças produtivas recebam um
desenvolvimento apenas unilateral, tornam-se forças destrutivas para a
maioria [...] Chegou-se, portanto, a um ponto tal que os indivíduos
têm de apropriar-se da totalidade existente das forças produtivas,
não só para alcançarem a sua auto-ocupação,
mas principalmente para
assegurarem a sua existência
.
[2]
Comparadas com a época em que estas palavras foram escritas, as
forças produtivas do capital, devidas ao seu desenvolvimento unilateral
identificado por Marx, são muito mais ameaçadoras do que
então. Mas o que ainda continua a ser ideologicamente dominante é
a idealização deste tipo de desenvolvimento, mesmo por parte de
pessoas como Schumpeter quer dizer, de pessoas relativamente
críticas do sistema como destruição
produtiva
, quando, pelo contrário, vemos na realidade uma tendência
crescente para a produção
destrutiva
. Como consequência, o momento da verdade que atingimos
nestes tempos difíceis quer dizer precisamente que já não
é possível falar de mudanças significativas sem enfrentar
as determinações fundamentais do sistema de
reprodução social no seu conjunto, como Marx entendia, para
encontrar respostas sustentáveis para a
crise estrutural
da ordem do
capital
em todo o mundo e não apenas neste ou naquele pequeno
recanto específico do capitalismo subdesenvolvido ou
avançado.
Os parâmetros principais deste quadro geral do sistema reprodutivo do
capital globalizante eram caracterizados por Marx há
145 anos!! da seguinte maneira:
A tendência para criar o
mercado mundial
existe imediatamente na noção de capital. Qualquer limite lhe
aparece como um obstáculo a vencer. Começará por submeter
cada elemento da produção de valores de uso imediato que
não entram na troca. [...] O capital sente qualquer limite como um
entrave, e supera-o idealmente,
mas não na realidade:
como cada um desses limites está em oposição com a sua
determinação, a sua produção entra em
contradições constantemente superadas, mas igualmente
constantemente criadas de novo.
Mas mais do que isso. A
universalidade
para a qual tende incansavelmente encontra limites
na sua própria natureza
que, a um certo nível da sua evolução, revelam que ele
próprio é o principal entrave a esta tendência, e o
empurram portanto para a sua própria abolição.
[3]
A inesgotável tentativa do capital para submeter absolutamente tudo aos
imperativos que emanam da sua natureza deve ser prosseguida e
forçosamente imposta mesmo quando os resultados são destrutivos
à escala mundial e em todos os sentidos. Mesmo quando o caminho seguido
põe em perigo a sobrevivência não apenas da humanidade,
mas, ao mesmo tempo, inclusivamente do sistema do capital como tal. O capital
apenas pode ter o conceito do
imediato,
tanto em termos do
espaço
(o quadro da sua acção nunca verdadeiramente abrangente e nesse
sentido planificável) como do
tempo
(quer dizer, no que respeita às consequências a mais longo prazo
das acções adoptadas). Deste modo, não pode haver nenhum
quadro de
valores,
a não ser a dominação cega que corresponde directamente
à sua natureza, como por exemplo a auto-expansão a todo o custo.
Visto que a constituição de qualquer sistema de valores coerente
requer necessariamente uma orientação dentro de
relações
espaço-temporais
bem definidas: historicamente específicas e ao mesmo tempo
dialecticamente abrangentes de todos os factores relevantes. O resultado
é que o capital não pode sequer perceber o
desastre máximo
implícito no seu modo de ultrapassar limites e derrubar
obstáculos. E aqueles que continuam a repetir o
slogan
de que não há alternativa, ignoram que com tal
afirmação aceitam, queiram ou não, o suicídio da
humanidade que está em correspondência com as
determinações actuais.
Outro factor que é necessário sublinhar neste contexto, quando
falamos da necessidade de enfrentar a questão da alternativa
sustentável ao sistema do capital no seu conjunto, é que se trata
aqui de uma mudança
de época:
uma mudança incomparavelmente maior do que a transição
do sistema feudal para o capitalista. Visto que a continuidade da
dominação hierárquica da exploração
económico-social precedente era mantida no sistema capitalista, ainda
que de forma diferente, em conformidade com a natureza do capital. Em contraste
radical, o grande problema de época dos nossos tempos é que sem a
realização do imperativo de
igualdade substantiva
para além de qualquer tipo de hierarquias de
dominação e subordinação , o sistema do
capital não pode ser historicamente superado, mas continuará o
seu curso destrutivo.
As mudanças históricas dos nossos tempos Põem em relevo
tanto a grandeza dos obstáculos a vencer precisamente porque hoje
já não é possível continuar com as ilusões
de uma transformação radical da sociedade por meio de
mudanças minúsculas, ideia ruidosamente abandonada até
pelos reformistas social-democratas que em tempos acreditaram nela como
as novas possibilidades abertas pela erupção da
crise estrutural
do capital como tal nas últimas décadas. Naturalmente, esta crise
estrutural do sistema no seu conjunto, em contraste qualitativo com as crises
periódicas e conjunturais da economia capitalista no passado, agrava a
situação em vários sentidos e empurra o capital para a
adopção de estratégias mais agressivas e também
acentuadamente aventureiras, como vemos no militarismo cada vez mais evidente
do poder hegemónico global do imperialismo de hoje. Contudo, isso
não altera o facto de que a crise estrutural traz consigo, pela primeira
vez na história, as possibilidades de empreender a tarefa
histórica de instaurar um modo de controlo de mudança social
radicalmente diferente, com a sua contabilidade orientada para o valor de uso
necessariamente suprimido pela própria natureza do capital.
Marx não foi contemporâneo da explosão do imperialismo no
militarismo de duas guerras mundiais, e muito menos da mais recente fase do
imperialismo hegemónico global sob o domínio de um Estado
nacional sólido que tenta o perigosíssimo empreendimento de se
proclamar o Estado supremo do sistema do capital como tal, impondo-se de todos
os modos possíveis, incluindo a violência militar extrema, sobre
todos os outros estados nacionais. De forma idêntica, Marx tinha a
experiência apenas de
crises conjunturais
do capitalismo da sua época, mas não podia ver as
manifestações da
crise estrutural
omniabrangente do sistema do capital. Este tipo de crise (estrutural)
não era concebível no pequeno recanto do mundo de que
ele falava. Contudo, para a nossa orientação, estes dois factores
estreitamente ligados por um lado, a nova fase, potencialmente fatal, do
imperialismo hegemónico global imposta por
um
Estado nacional, a única superpotência neste momento
histórico (mas certamente não para sempre sem um seu antagonista
igualmente poderoso), e, por outro lado, a gravíssima crise estrutural
interna do sistema são e continuarão a ser cruciais para o
futuro que temos pela frente. É por isso absolutamente necessário
mantê-los no centro da nossa atenção para a
elaboração das estratégias válidas de um movimento
genuinamente socialista dos nossos tempos, depois das amargas
experiências do passado.
2.
Das crises
conjunturais/cíclicas
à crise
estrutural
Para compreender o carácter da nossa crise estrutural, em contraste com
as crises conjunturais do sistema no passado, é preciso recordar as
tendências de mudança que ocorreram no funcionamento do capital
durante o século XX, manifestando-se em sintomas progressivamente mais
graves, em particular durante as últimas três ou quatro
décadas. A
hibridação
do capitalismo clássico do século XIX que vimos no
século XX com a intervenção cada vez mais poderosa
do Estado para assegurar a sustentabilidade da economia, como correctivo
(até certo ponto relativamente eficaz) a contabilidade anárquica
do mercado é o resultado destas tendências. Deste modo,
é tanto mais grave quanto a hibridação do sistema
capitalista não consegue obter um remédio duradouro às
contradições que procura superar, mas apenas aos
efeitos
temporários e parciais.
No decurso do desenvolvimento histórico real as três
dimensões fundamentais do sistema capitalista
produção, consumo e
circulação/realização
tendem durante um longo período de tempo a reforçar-se e
a expandir-se reciprocamente, garantindo também a
motivação interna necessária para a respectiva
reprodução dinâmica a uma escala cada vez mais ampliada.
Portanto, no início, os limites imediatos de cada uma são
superados com êxito, graças precisamente à
interacção recíproca com as outras dimensões. (Por
exemplo: o obstáculo imediato à produção é
superado com êxito durante algum tempo através da expansão
do consumo e vice-versa.) Deste modo, esses limites imediatos das
dimensões fundamentais do capital, mencionados nas
citações dos
Grundrisse,
aparecem na realidade como simples obstáculos a superar. Ao mesmo
tempo, as contradições imediatas do conjunto são
não apenas transferidas, mas directamente utilizadas como alavancas para
o crescimento exponencial do nas aparências ilimitado poder
autopropulsivo do capital.
Na realidade, neste caso não pode tratar-se de crise
estrutural
enquanto este mecanismo vital de auto-expansão continua a funcionar
(que é também, ao mesmo tempo, o mecanismo de
superação interna ou a transferência mais ou menos
duradoura das contradições.) Ao mesmo tempo, porém, podem
verificar-se crises de duração, frequência e intensidade
variadas que atingem directamente uma das três dimensões e
indirectamente
até que o impedimento seja eliminado o sistema no seu
conjunto, sem no entanto pôr em jogo os
limites definitivos
da estrutura geral. (Por exemplo, a grande crise mundial de
1929-1933 era em essência uma crise de
realização do capital, a um nível de
produção e consumo absurdamente baixo se comparado com o quadro
incomparavelmente mais amplo tanto de produção como de consumo no
período posterior à Segunda Guerra Mundial).
A crise estrutural do capital, que começámos a experimentar
há mais de três décadas, não se refere a nenhuma
condição absoluta. Ela significa simplesmente que a tripla
dimensão interna da auto-expansão do capital mostra
disfunções cada vez maiores, o que tende não
só a desagregar o processo normal de crescimento, mas também
antecipa uma quebra na transferência das contradições
acumuladas, que é função vital. Desde o princípio,
aquelas três dimensões formavam uma unidade
contraditória
cheia de problemas, pois que cada uma devia subordinar as outras a si mesma,
até fazer funcionar a estrutura no seu conjunto. Enquanto a
reprodução alargada de cada uma podia continuar
inalterável por exemplo, enquanto se podia escavar buracos cada
vez maiores para com o seu conteúdo encher os anteriores buracos mais
pequenos não só cada uma das dimensões
contraditórias internas podia ser reforçada de maneira separada,
como podiam funcionar inclusivamente as três ao mesmo tempo numa harmonia
de contraponto.
Contudo, a situação muda radicalmente quando o interesse de cada
uma já não coincide em absoluto com o das restantes. A partir
desse momento, as alterações e as disfunções, em
vez de serem absorvidas, dispersas, difundidas e dissolvidas, tendem a
transformar-se em
acumulativas
e portanto
estruturais,
bloqueando de maneira perigosa o complexo mecanismo da
transferência das contradições.
Estamos então perante qualquer coisa não simplesmente
disfuncional, mas potencialmente explosiva, porque o capital
não resolveu nunca nem a mais pequena das suas
contradições. Não só porque não estava em
condições de o fazer, mas também porque não tinha
que fazê-lo, dado que pela sua natureza e constituição
intrínseca ele
prospera
sobre elas (e até certo ponto, com toda a segurança). A sua
maneira normal de tratar as contradições é
intensificá-las, deslocá-las para outro nível,
transferi-las para outro plano, suprimi-las enquanto isso seja possível
e quando o não seja exportá-las para uma esfera ou para um
país diferentes, utilizando inclusivamente os meios militares mais
brutais para atingir esse fim. Esta é a razão por que o bloqueio
progressivo da transferência e da exportação das
contradições inerentes ao capitalismo é tão
perigoso, e nos nossos tempos potencialmente explosivo à escala nuclear.
É óbvio que esta crise estrutural não se limita apenas
à esfera económica. Dadas as iniludíveis
determinações do círculo mágico do
capital (quer dizer, o verdadeiro carácter circular da sua
reprodução auto-expansiva), a profunda crise da sociedade civil
reflecte-se fortemente em todo o espectro das instituições
políticas. Com efeito, as cada vez mais precárias
condições sócio-económicas requereriam novas e mais
fortes garantias políticas que o estado capitalista, tal
como hoje está, não está em condições de
dar. A morte ignominiosa do
Wefare State
equivale a admitir abertamente o facto de que foi a
crise estrutural de todas as instituições políticas
que cresceu sob a casca da política do consenso durante
mais de quinze anos antes de 1970: o início aproximado da crise
estrutural. Discuti estes problemas noutras ocasiões (ver o meu livro
Beyond Capital,
Londres e Nova Iorque, 1995;
Mas allá del capital,
Vadell Hermanos, Caracas, 2001, e
Para Além do Capital,
Boitempo Editorial, São Paulo, 2002). Aqui é necessário
sublinhar apenas que as contradições em jogo não se
esfumam absolutamente na crise das instituições
políticas,
mas, pelo contrário, atacam toda a sociedade de um modo até
agora desconhecido. A crise estrutural do capital revela-se, certamente, como
verdadeira
crise da dominação
em geral. Não é de espantar então que nas últimas
três décadas tenhamos vivido a intensificação da
agressividade e do autoritarismo do capital no campo legislativo
incluindo nos países que se gabam de ser modelos de
democracia como resposta a esta crise. E que o que torna a
crise ainda mais profunda tenhamos vivido também o agravamento da
atitude defensiva dos partidos tradicionais de esquerda que levou à
quase completa desintegração de alguns deles que em tempos
gozaram de grande apoio eleitoral (por exemplo, em Itália e em
França) ou até à transformação de
outros (como o partido trabalhista/New Labour em Inglaterra) em
partidos muito obedientes à ordem estabelecida.
Aqueles que não querem admitir a gravidade desta crise gostam de
esconder a cabeça na areia conceptual dos chamados ciclos
longos das fases de desenvolvimento capitalista. Segundo eles, não
há nenhum problema sério quanto às perspectivas de uma
solução positiva dentro dos limites capitalistas do âmbito
estabelecido num futuro apropriado. Tudo o que agora acontece,
segundo eles, está em plena conformidade com as características
normais de um ciclo longo descendente do capital, que será
sem dúvida seguido, como o dia se segue à noite, pelo ciclo
longo ascendente. E naturalmente, a partir desse ponto, o domínio
do sistema do capital poderá continuar indefinidamente com a sua
recorrência periódica prevista pela teoria.
Este tipo de explicação apologética não é
mais que a projecção de um desejo de normalidade no
plano de postulados completamente privados de evidência. No
máximo, aquilo que se nos oferece é uma vaga analogia com certos
períodos do passado, mas mesmo em relação a isso
arbitrariamente prolongada em escala temporal, pois que nos termos do tempo
previsto pelo esquematismo desta teoria comparando as últimas
mais de três décadas da nossa crise cada vez mais séria com
uma certa fase descendente do passado torna-se evidente, e
para a teoria proposta, bastante embaraçoso, que superámos
há já bastante tempo (nos últimos 35 anos!!) a
extensão dos ciclos longos de antes. Além disso,
não existe a mínima indicação nas tendências
actuais de que o ciclo longo descendente de que se fala
poderá ser superado pela chegada feliz de um novo ciclo longo
ascendente.
E isto não é tudo. A argumentação que projecta
futuros ciclos positivos com base em vagas analogias com o passado é
falsa mesmo em termos da lógica adoptada pelos próprios que
propõem esta teoria. Porque eles não se limitam a oferecer
analogias com o passado um passado que eles mesmos noutros lugares
reconhecem como historicamente ultrapassado , mas falam ao mesmo tempo
também com entusiasmo da globalização como uma
fase
radicalmente nova
do desenvolvimento capitalista, assim se contradizendo. Com efeito, a sua
adesão à ideia da novidade radical da globalização
(teorizada, de um modo muito unilateral e muito exagerado, com uma
intenção apologética também nesta conexão,
para poder negar assim a possibilidade de qualquer alternativa à ordem
estabelecida), torna totalmente ilegítimas as analogias com o passado.
Não se pode manter, ao mesmo tempo, a radical novidade da
globalização e a adopção dos ciclos de
desenvolvimento por força historicamente específicos do passado
como o modelo permanente para a interpretação das
tendências qualitativamente diferentes do presente, como se nada tivesse
mudado a esse respeito. Assim nasce a autocontradição a partir de
um duplo interesse apologético, ocultando a sua natureza intensamente
ideológica quer a sua rejeição
a priori
a tomar a sério a verdadeira crise da dominação
característica dos nossos tempos no plano económico,
político e social como na verdade qualquer coisa de radicalmente novo,
em contraste com algum ciclo recorrente que pode tornar-se rotineiro; quer a
negação da possibilidade de uma alternativa estrutural
sistémica ao que existe em relação ao futuro sob a
aparência de qualquer coisa de rigoroso por estar reduzido a
fórmulas numéricas.
Como já vimos, o capital não resolveu nunca nem sequer a mais
pequena das suas contradições. Para reiterar um ponto importante
já antes referido, a sua maneira normal de tratar as
contradições era intensificá-las, passá-las para
outro nível, transferi-las para outro plano, suprimi-las enquanto isso
fosse possível e, quando já o não era, exportá-las
para uma esfera ou para um país diferentes, empregando inclusivamente os
meios militares mais brutais para esse fim. Hoje, pelo contrário, por
várias razões, incluindo a devastação universal
implícita na aventura de uma possível Terceira Guerra Mundial,
seria necessário um modo radicalmente diferente para enfrentar as
contradições. Contudo, o capital, dado o seu imperativo
insuperável de auto-expansão a todo o custo, não é
capaz de se adaptar às exigências de um controlo racional conforma
com os perigos da nossa época.
A
crise estrutural
é, simultaneamente, também uma crise nunca vista até
agora da
acumulação do capital:
a única questão que pode ter algum significado para as
personificações do capital, mas inclusivamente só no seu
sentido imediato, como
obstáculo por superar,
sem a consciência dos
limites atemorizantes
do sistema que no entanto são cegamente entendidos como simples
obstáculos (uma distinção fundamental feita por Marx que
continua a ser válida também para a nossa época). Assim a
auto-expansão a todo o custo
do capital, disposta a considerar apenas os
efeitos
do bloqueio manipulando-os em vão com múltiplas
reduções da taxa de juro (
onze vezes
durante o ano de 2001 precisamente nos Estados Unidos da América), ou
com bombardeamentos cobardes e bárbaros levados a cabo num número
crescente de países militarmente inferiores (com as supostas
operações cirúrgicas por meio das chamadas
Smart Bombs,
mas na realidade aplicando sem a menor hesitação nem
escrúpulo até o poder destrutivo quase nuclear totalmente
indiscriminado das
Daisy Cutters,
assim chamadas com a mesma desumanização frívola com que
define a destruição da população civil como dano
colateral
(collateral damage)
mas nunca reconhecendo as suas
causas profundas,
continua a ser o princípio fundamental de uma ordem de controlo das
mudanças sociais que ameaça a humanidade com o aniquilamento.
3.
A necessidade de enfrentar os desafios históricos do novo
século
Há que recordar, neste contexto, que na raiz deste desenvolvimento
extremamente negativo está o fracasso
histórico
do capital em completar o seu sistema no mundo inteiro como
capitalismo
global quer dizer, como extracção essencialmente
económica do sobretrabalho na forma de mais-valia , que opera por
meio de estruturas económico-sociais (muitas vezes descritas
erroneamente como simples mecanismos) tipo mercado.
Para entender a dimensão enorme deste fracasso histórico, do qual
não parece que haja uma via de saída, é preciso ter em
conta que nos nossos dias, depois de mais de três séculos de
tentativas do capitalismo para estender o seu modo de produção ao
mundo inteiro na forma mais favorável à sua natureza, quase
metade da população (quase
três mil milhões
de seres humanos) não reproduz as condições elementares
da sua existência segundo as regras da extracção
capitalista da mais-valia. A regulação
política
da extracção do sobretrabalho continua a ser predominante para
mil milhões de chineses, e uma combinação híbrida
de extracção política com formas tradicionais um
modo de sobrevivência da mão para a boca
prevalece na Índia e noutros lugares do Sueste asiático, assim
como em zonas consideráveis de África e da América Latina.
Nem devemos esquecer que mais de quinze anos de esforços
politicamente impostos para restaurar o capitalismo apenas conseguiram
escassos resultados na ex-União Soviética. Como sabemos, desde
meados dos anos 50 exaltou-se muito a panaceia da
modernização capitalista como solução
para os problemas gravíssimos do chamado Terceiro Mundo.
Hoje, pelo contrário, mesmo em relação a isso só se
pode falar de fracasso; um fracasso que na realidade é uma parte
integrante e subordinada do escandaloso fracasso histórico do capital
globalizante para se afirmar em toda a parte na forma mais adequada
às suas determinações internas. Tudo isso é da
máxima importância para o futuro do capital, e as
implicações potencialmente nefastas desse
desenvolvimento bloqueado não deveriam ser subestimadas por
ninguém.
Marx escreveu nos seus
Manuscritos Económicos de 1861-1863
que A produtividade do capital consiste... na
compulsão
para produzir
sobretrabalho
[...] O modo de produção capitalista
partilha
essa compulsão com os modos de produção precedentes, mas
exerce-a
numa forma mais favorável à produção.
[4]
A razão principal por que o capital representa uma forma de
reprodução económico-social mais produtiva (e nesse
sentido mais avançada) na história é a sua
extracção do sobretrabalho de um modo essencialmente
económico,
embora não possa abandonar completamente certos elementos de
compulsão política como garantia geral conferida pelo Estado
capitalista para a sobrevivência do seu sistema. Assim, nos
últimos três ou quatro séculos vemos o triunfo da
máxima conversão do sobretrabalho em mais-valia
absoluta e relativa sob o capitalismo
que exerce a compulsão de extrair sobretrabalho (partilhada com os modos
de produção precedentes) de uma maneira mais produtiva,
graças às determinações internas da sua natureza
auto-expansiva. (Segundo Marx, o desenvolvimento capitalista tem o seu
início no século XVII.)
A este respeito, trata-se de três características fundamentais, e
as três representam uma mudança qualitativa em
comparação com os sistemas de reprodução
precedentes:
1.
A intensidade
crescente do trabalho, graças à dominação cada vez
mais pronunciada da mais-valia relativa;
2. A realização da
continuidade
nunca antes imaginável do processo laboral, através da
divisão técnica e
social
do trabalho, facilitando a
internacionalização
da dominação hierárquica deste novo tipo de
trabalho e
3.
A economia
do trabalho, antes nem sequer concebível, graças à
redução constante do trabalho necessário.
E tudo sito se consegue durante um longo período de
maneira muito favorável, pela produtividade; sem recorrer regra geral
à dominação/subordinação
extra-económica
(política) que ocasiona muito desperdício.
Na nossa época, em contraste muito revelador, somos testemunhas do
retorno das tendências originais que trazem consigo tanto a produtividade
superior do capital como a sua expansão intrínseca nos
países onde conseguiu enraizar-se. Se a original ajuda
extra-económica (Marx) fornecida pelo Estado de Henrique
VIII e outros foi progressivamente abandonada pelo desenvolvimento
clássico do capitalismo, assim na nossa época, pelo
contrário, temos visto o regresso dessa ajuda, quando o Estado se
empenha firmemente em assegurar o funcionamento e desde logo a própria
sobrevivência do sistema do capital. Na actualidade, nenhuma medida de
ajuda extra-económica de garantias políticas, nem
mesmo quando é acompanhada de financiamentos estatais calculados em
números astronómicos (de muitos milhares de milhões de
dólares) pode ser considerada suficiente para satisfazer a voracidade do
sistema. A hibridação do capitalismo, cada vez mais intensificada
no século XX, através da injecção da
contínua ajuda extra-económica e económica
mais ou menos oculta, não tem aparentemente limites, embora seja
apresentada com a falsa moralidade e na verdade também de
má fé da retirada do Estado dos assuntos
económicos.
Por outro lado, também no campo do trabalho se deparam desenvolvimentos
regressivos. Isto é evidente não apenas pelo reaparecimento
cada vez mais perturbador da mais-valia absoluta (na
forma de
swatshops
, etc.) em países que incluem as democracias ocidentais,
já para não falar do chamado Terceiro Mundo, onde
sempre foi muito evidente. Existem também algumas tendências,
quase incompreensíveis, para inverter a diminuição dos
horários de trabalho nos países mais avançados. Para
referir apenas três: 1. No
Japão
, uma lei recente aumentou o horário de trabalho semanal de 48 para 52
horas; e para sublinhar o absurdo dessas práticas, enquanto o
horário semanal é aumentado, ao mesmo tempo o desemprego,
já a um nível recorde, continua a aumentar; 2. Na
Alemanha
, um acordo recente entre a direcção da
Volkswagen
e os sindicatos alargou o horário normal de trabalho (quer
dizer, o que não chega ao horário extraordinário com
aumento de pagamento) de 35 para 42 horas; além disso, inclusivamente na
Alemanha, o desemprego é ameaçadoramente elevado (mais de 4,5
milhões actualmente); e 3. Em
Itália
, a introdução das 35 horas, projectada pela lei
concedida pelo governo de Prodi aos sindicatos e ao Partido da
Refundação antes de se dividir em dois, suscitou a hostilidade
aberta do patronato; o chefe da Cofindustria, Giorgio Fossa (cujo nome diz
tudo) declarou que organizará uma grande
coligação para sepultar esta lei. (Depois da mudança
de governo a favor de Berlusconi, isso deverá ser uma brincadeira de
crianças se a esquerda nos sindicatos e nos movimentos políticos
não conseguir mobilizar as massas dos seus apoiantes para a defesa
daquela lei, na realidade muito modesta).
O jovem Marx ainda podia falar da vitória civilizadora do
capital, devida em grande medida à sua superior produtividade.
Hoje, pelo contrário, o desenvolvimento regressivo do sistema
manifesta-se em desperdício alarmante, na medida em que o capital se
aproxima dos limites do seu potencial produtivo. As tendências de
desenvolvimento que despontam em direcção diametralmente oposta
à produtividade originária do capital podem resumir-se deste
modo: 1. a incontrolável procura de
recursos
quer dizer, a irresistivelmente crescente intensidade de
recursos do capital cujo apetite de energia é apenas um aspecto
que ignora e passa por alto todas as consequências para o futuro,
tanto para o ambiente como para o reprimir das necessidades das pessoas
atingidas pelas estratégias de desenvolvimento em curso; 2. a crescente
intensidade do capital
nos seus processos produtivos, quer dizer, a necessidade imanente à
cada vez mais irracional concentração e
centralização do capital, que contribui em notória medida
para a produção do subdesenvolvimento não
apenas na periferia mas também no seu reino
metropolitano, com desemprego maciço e
destruição de uma base industrial outrora florescente e vital
(mesmo num país como a Inglaterra, escandalosamente
desindustrializada sob o governo da senhora Thatcher); 3. o impulso
acelerado para a
multiplicação do valor de troca,
antes simplesmente
separado
do valor de uso, mas agora abertamente
oposto
a ele: quer dizer, o sacrifício das
necessidades humanas
para manter intacto o domínio do capital sobre a sociedade; e 4. o pior
tipo de desperdício, o desperdício das pessoas, ou então a
forte produção de uma população
supérflua que, como resultado dos desenvolvimentos produtivos do
capital e das suas dificuldades crescentes no processo de
realização, não pode reentrar já nos
estreitos esquemas da produção de lucro e da
multiplicação do valor de troca.
4.
As características fundamentais da crise estrutural
A novidade histórica da nossa crise estrutural manifesta-se em quatro
temas principais:
1. Mais do que restringido a uma esfera particular (por exemplo, financeira,
comercial ou de um ou outro ramo da produção, ou de um ou outro
sector particular de trabalho, com a sua gama específica de capacidades
e grau de produtividade, etc.), o seu
carácter é universal;
2. mais do que limitado a uma série particular de países (como
foram todas as mais importantes crises do passado, incluindo a grande
crise mundial de 1929-1933), o seu alcance é realmente
global
(no sentido mais extremadamente literal do termo);
3. mais do que restrita e
cíclica,
como foram todas as crises anteriores do capitalismo, a sua
escala temporal é alargada,
contínua
permanente,
,se se quiser e
4. no que respeita à sua modalidade de desenvolvimento, defini-la como
sub-reptícia
poderia ser uma descrição adequada em contraste com as
erupções e desmoronamentos mais espectaculares do passado ,
com a advertência de que não se excluem para o futuro nem mesmo as
mais veementes e violentas convulsões, uma vez quebrada aquela complexa
máquina hoje activamente empenhada na gestão da crise
e na transferência mais ou menos provisória das crescentes
contradições.
Em termos mais simples e mais gerais, uma crise estrutural ataca a
totalidade
de um conjunto, em todas as suas relações com as partes
constitutivas e com outros conjuntos fora dele. Em contraste, uma crise
não-estrutural ataca apenas algumas partes do conjunto em questão
e portanto por mais séria que seja não pode
pôr em perigo a sobrevivência da estrutura geral. Em conformidade
com isto, a transferência das contradições só
é possível quando a crise é parcial, relativa e
internamente controlável pelo sistema, e requer apenas reordenamentos
ainda que de notável dimensão dentro do
próprio sistema. Uma crise estrutural, pelo contrário, põe
em causa a existência do conjunto geral e coloca as exigências da
sua superação e da sua substituição por algum
conjunto alternativo.
Pode-se explicar a mesma oposição em termos dos limites que um
conjunto particular tem na sua imediaticidade, num dado período de
tempo, comparados com os limites para lá dos quais não se pode
esperar que vá. Uma crise estrutural não considera portanto os
limites
imediatos,
mas os limites
definitivos
de uma
estrutura global.
Os limites imediatos podem ser alargados de três maneiras diferentes:
a) modificando algumas partes do conjunto;
b) modificando todo o sistema a que pertencem; e
c) alterando de modo significativo a relação do conjunto geral com
outros conjuntos fora dele. Como consequência, quanto maior é a
complexidade da estrutura fundamental e das relações com as
outras a que está ligada, tanto maiores, mais variadas e mais
flexíveis são as suas possibilidades objectivas de
adaptação e as suas probabilidades de sobrevivência mesmo
na presença de crises muito graves. Por outras palavras,
contradições e disfunções parciais,
ainda que graves, podem ser transferidas e difundidas dentro dos
limites definitivos ou estruturais
do sistema. Por outro lado, e pelas mesmas razões, forças ou
tendências contrárias podem ser neutralizadas, assimiladas,
anuladas, ou até convertidas em forças que sustentem activamente
o sistema em questão. Daí o problema da adaptação
reformista que causou muitos danos no movimento socialista no passado,
reforçando as posições do capital em vez de as debilitar,
como explicitamente pretendia fazê-lo.
A crise estrutural do capital nos nossos dias ataca, pelo contrário, os
limites definitivos do sistema. Por essa razão, ela faz com que seja
muito urgente uma intervenção radical para pôr fim
às tendências destrutivas impostas já por todo o lado,
antes que seja demasiado tarde.
O maior perigo provém da contradição, insuperável
pelo capital, entre o
desenvolvimento transnacional
no
plano material
e no
plano político-social,
incorporado em
Estados nacionais,
com estritas hierarquias de dominação e
subordinação entre eles. A presente fase do imperialismo,
certamente a mais perigosa em toda a história, tenta em vão a
solução desta contradição através da
imposição militar dos Estados Unidos em todo o mundo como o
Estado do
imperialismo hegemónico global
. Por isso é totalmente surpreendente que certos escritores, com
pretensões de esquerda, nos ofereçam a total
mistificação de um imperialismo
desterritorializado
, juntamente com a sua apologia absurda do imperialismo norte-americano,
claramente territorializado, caracterizando as agressões
bárbaras que estão a ser praticadas por esse Estado como uma
tentativa de expansão global do processo constitucional dos
EUA. (Ver Michel Hardt & Antonio Negri,
Empire,
Harvard University Press, Boston 2000, p. 182, citado em Imperialism
and 'Empire', de John Bellamy Foster,
Monthly Review,
Dezembro de 2001, p. 3.)
A globalização em curso, como tentativa de resolver a
crise estrutural do sistema, é uma realidade inegável dos nossos
tempos. Dado o carácter insuperavelmente antagónico do capital,
este processo de globalização tem que impor-se de uma forma
extremamente discriminatória a favor dos mais poderosos, e assim
não só preserva como inclusivamente agrava as desigualdades
opressoras do passado. Como resultado disso, apesar da falsa
representação tendenciosa do seu carácter como
universalmente benéfico, a verdade é que se trata de um processo
totalmente
instável,
porquanto está construído sobre areia, acoplado à imagem
fictícia de um governo mundial correspondente a
instituições universais como o Banco Mundial,
o Fundo Monetário Internacional e a Organização Mundial do
Comércio que na realidade são totalmente dominadas pelos
Estados Unidos, para já não falar da OTAN. Por isso não
é surpreendente que a necessária instabilidade do capital
globalizante tenha encontrado a sua manifestação lógica no
novo aventureirismo militar, procurando remediar o carácter
incontornável do sistema por meio da violência, mas agravando,
pelo contrário, a sua instabilidade crónica.
Em relação a todas estas tendências de desenvolvimento
contraditório do capital só se podem formular exigências de
mudança significativa em termos de uma alternativa socialista global,
como foi concebida por Marx. Mas, para poder empreender essa alternativa
é preciso remediar radicalmente as graves desigualdades estruturais por
meio das quais os países imperialistas poderosos continuam a dominar e a
oprimir a imensa maioria das nações do mundo, tornando assim
impossível um verdadeiro desenvolvimento global sustentável. Um
desenvolvimento positivo em cujo âmbito os seres humanos possam realmente
encontrar-se em sua casa, na sua
pátria
nunca mais oposta aos poderosos, no espírito de que
patria es humanidad
: um ideal na ordem do dia dos nossos tempos, profundamente expresso
há mais de um século, nas palavras de José Martí.
(Traduzido da versão espanhola, excepto a citação da nota
2)
Notas
1.Marx,
Carta a Engels,
Outubro de 1858.
2. K. Marx/F. Engels,
A Ideologia Alemã
..., in
Obras Escolhidas
em três tomos, Edições
«Avante!»-Edições Progresso, Lisboa-Moscovo, t. 1,
1982, pp 30, 54 e 69.
3.
Fundamentos de la crítica de la economía política
, La Habana, Editorial Ciencias Sociales, 1970, t. 1, pp. 305, 307 (cf. K.
Marx,
Grundrisse der Kritik der Politischen Ökonomie,
Dietz Verlag, Berlim, 1974, pp. 311, 313-314.)
4. Marx,
Manoscritti Economici del 1861-1863,
MECW, vol. 34, p.122 *.
* Segundo o autor da tradução castelhana as notas 1 e 4 foram
traduzidas directamente da versão italiana por não dispor de
edições em espanhol.
Comunicação apresentada ao Encontro Internacional
"Civilização ou Barbárie", Serpa, 23-25/Set/2004.
Este ensaio encontra-se em
http://resistir.info/
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