Os cãezinhos de Pavlov e os rinocerontes de Ionesco

Daniel Vaz de Carvalho [*]

O ataque que estava em preparação contra Donetsk e Lugansk.

1 - No que nos tornamos

O cientista soviético Pavlov (1849-1936) estabeleceu a teoria dos “reflexos condicionados” cuja originalidade reside em puderem ser criados por ação humana tanto em alguns animais (cães) como em seres humanos. Este princípio teve aplicação na 2ª Guerra Mundial em que cães foram treinados para atacarem (com explosivos) tanques alemães ficando indiferentes a tanques soviéticos.

Ionesco (1909-1994), na sua peça “O rinoceronte” (uma metáfora ao nazifascismo) descreve como numa cidade começaram a aparecer rinocerontes. As pessoas inicialmente olharam-nas, com indignação e asco. Porém à medida que foram aumentando e as manadas tomaram conta das ruas, a repugnância que lhes causavam os corpos peludos e a musculatura brutal, tornaram-se atraentes, os humanos passaram a sentir-se frágeis, envergonhados dos seus corpos lisos, desejando ser como eles. Até a mentalidade dos rinocerontes lhes parecia preferível ao ineficaz humanismo. No final, mesmo com as dúvidas que a situação criava, o protagonista, só, atrás da sua janela, gritava: Sou o último, homem, hei de sê-lo até ao fim! Não me rendo!

Aqui chegámos e falamos da UE, do dito “ocidente” em geral. Houve quem trabalhasse para que agora cãezinhos de Pavlov corram atrás dos rinocerontes de Ionesco, achando nisso um mundo perfeito. Aos que querem permanecer humanamente íntegros nestas sociedades resta resistir e apoiarem-se informando, esclarecendo.

Houve um tempo em que os rinocerontes andavam devastando florestas, mas longe das metrópoles. Era o tempo em que grandes manifestações pela paz, apesar de reprimidas aumentavam, o tempo em que filmes como o Hair de Milos Forman, livros e poemas eram libelos contra a guerra (do Vietname), em que se podia ver num grande cinema de Paris “Três horas na URSS” e dirigentes dos EUA eram recebidos com “Yankes go home”. O problema é que com a paz no Vietname todo este movimento ficou sem causa. A ideia hippie caprichava em não ter ideologia. Viam apenas a superfície das coisas.

Há séculos o grego Xenofonte dissera em Anábase: “Ó homem, para que queres os olhos se não sabes ver e a memória se és saco roto?” Os rinocerontes puderam então começar a correr pelas metrópoles, Rambos e super-heróis substituíram a luta pela paz e a exaltação do poder popular. A crise económica foi uma oportunidade para trazer para o redil oligárquico transviados do capitalismo.

O triunfalismo da economia de casino neoliberal sobrepôs-se ao keynesianismo e planeamento económico como transição para formulações socialistas. Após o fim da URSS os rinocerontes acharam que o mundo inteiro devia pertencer-lhes. Então os rinocerontes passaram a correr impantes pelas cidades e muitos até ali humanistas acharam que era preciso “adaptarem-se”, não podendo ser rinocerontes assumiram-se como cãezinhos de Pavlov seguindo as manadas.

Disse Mike Pompeo, ex-diretor da CIA, para gáudio da assistência: “Mentimos, enganámos, roubamos” ( www.informationclearinghouse.info/). De facto, roubaram ouro e divisas da Rússia, Venezuela, Afeganistão, Líbia, Iraque, Ucrânia, apoderaram-se do petróleo da Líbia, Iraque e em parte da Síria. Mentiram sobre a Sérvia; mentiram sobre o Afeganistão e os seus “combatentes da liberdade” da Al-Qaeda; mentiram sobre a Líbia, sobre a Síria, sobre as “armas de destruição massiva” do Iraque e químicas da Síria. Tal como mentem sobre Cuba, Venezuela, China, sobre os envenenamentos da Rússia, etc. Mentem sobre a Ucrânia. Os media obedecem e prestam-se a tudo isto. É penoso ver e ouvir aquelas reportagens formatadas, idênticas às que serviram para todas as mentiras anteriores, com gente a ler os guiões formatados que lhes dão.

Condicionados por anos de propaganda a generalidade das pessoas perdeu a capacidade de um raciocínio claro, não são sensíveis a evidências. Com uma agenda de insegurança, instilada intensivamente através dos media, sujeitam-se à perda de direitos pela austeridade para satisfazer a finança, pelo medo das pandemias, agora pela guerra na Europa, causada por Putin e seus crimes. As pessoas sentem-se horrorizadas pelas crianças que morrem na Ucrânia, pela maternidade atacada. Qualquer pessoa com um mínimo de sensibilidade não pode ficar indiferente. A menos que se trate de mais uma trama de mentirosos compulsivos.

Quando o Iraque invadiu o Koweit, a propaganda apelou à comoção da opinião pública para se desfazerem de um sujeito que tinha deixado de agradar aos EUA. A 14 de outubro de 1990, uma adolescente de 15 anos, Nayirah al-Sabah, deu um testemunho aterrador das atrocidades cometidas num hospital do Kuwait pelas tropas iraquianas. O testemunho era falso. A cena das incubadoras nunca aconteceu. A mentira foi fabricada por agências de comunicação financiadas pelo Governo dos Estados Unidos e do Kuwait.

Se falarmos dos 14 000 mortos e 1,5 milhões de deslocados desde 2014 no Donetsk, do crime de Odessa, nos bombardeamentos no Iraque, na Síria, Líbia, Jugoslávia, a reação é de apatia e respondem com as crianças da Ucrânia. Comparam-se os crimes de Putin na Ucrânia aos de Hitler contra os judeus. A National Geografic emite um programa em que mostra as atrocidades dos “russos” contra os alemães em 1945, baseado na propaganda de Gobbels. Um senador dos EUA apela ao assassínio de Putin. O Pentágono diz ter provas certas de crimes de guerra da Rússia, Michael McFaul, ex-embaixador na Rússia afirma que todos os russos que não protestarem abertamente contra a intervenção da Rússia na Ucrânia devem ser punidos, para a presidente do PE a prisão de Navalny é um atentado à justiça. Mas a morte lenta a que submetem Julian Assange e a infame farsa do seu julgamento é ignorada. Claro que Assange não é como Navalny um corrupto racista de extrema-direita, bem pelo contrário…

Putin é criminoso de guerra, diz Biden, dizem os “comentadores”. Se dissermos que as mortes em guerras EUA/NATO desde 2001 vão de 2 a 5 milhões de pessoas, e que desde o fim da 2ª Guerra Mundial a conta atinge muito mais em brutais guerras visando o saque dos recursos naturais dos povos agredidos, as pessoas reagem com a apatia e indiferença. A sua agressividade condicionada é contra a Rússia e Putin, quais de cãezinhos pavlovianos, que apenas se lançavam contra blindados alemães ficando indiferentes a outros.

Pergunta-se Patrick Lawrence:   "pode alguém ouvir o ruído das últimas semanas sem se interrogar se fizemos de nós mesmos uma nação de grotescos?” As pessoas não reagem ao facto dos EUA se terem consorciado-se com o que se tornou a Al-Qaeda, nem com os grupos nazis que infestam a Ucrânia que armaram e treinaram. A russofobia atinge registos patéticos como o cancelamento de espetáculos de um maestro e cantores, participação de atletas. A Federação Internacional de Felinos proibiu a importação de gatos russos! “A maioria dos norte-americanos parece aprovar estas coisas, ou pelo menos não se mexe para objetar. Perdeu-se todo o sentido de decência, de moralidade comum, de proporção. É comum observar que na guerra o inimigo é sempre desumanizado. Estamos face a face com outra realidade: aqueles que desumanizam outros desumanizam-se a si próprios ainda mais profundamente”.

2 - A Ucrânia numa guerra forjada

A Rússia tem sido muito clara desde há anos acerca do que pretende: garantias de segurança para o seu território. Em resposta, os EUA/NATO respondem com “a ameaça russa” e reforçaram meios de combate na região, armaram a Ucrânia até os dentes, enviaram “assessores militares”. Propunham-se integrar a Ucrânia (e a Geórgia) na NATO.

Torna-se evidente que a intenção de Washington em provocar a intervenção da Rússia foi instigar um conflito de longa duração à custa de uma rebelião sem possibilidades de sucesso. Uma estratégia que exige a destruição da Ucrânia ao serviço de ambições imperiais, como ocorreu no Afeganistão, Iraque, Líbia, Somália, etc.

Para os EUA este conflito na Europa é de todo conveniente: nas duas anteriores guerras mundiais o seu território ficou ileso e a capacidade económica reforçada. Tal foi expressado por Victória Nuland, secretária de Estado Adjunta, na supervisão do golpe de Estado em Kiev em 2014, no qual investiram 5 mil milhões de dólares, descartando os interesses europeus com o seu: “Fuck UE”.

Os líderes da UE baixam a cabeça e seguem como cãezinhos de Pavlov a manada dos rinocerontes. Para isso serviu a estratégia de diabolização da Rússia e a entrada para a NATO dos países do Leste e Bálticos, semicolónias geridas por Washington, (exceção para a Hungria).

Culpar a Rússia pela escalada das tensões não passa de um ardil. Desde o golpe de Estado de 2014 apoiado pela CIA, um poder neonazi obcecado em antagonizar a Rússia foi instalado e financiado na Ucrânia contra a Rússia. A UE, o FMI, os EUA desde 2014 deram e continuam a dar dezenas de milhões de euros ou dólares sobretudo em armamento para que um Estado falido e disfuncional prossiga a função que o império lhe destinou. Os EUA propunham-se agora um adicional de 800 milhões de dólares em assistência militar.

A invasão russa é, sem dúvida, contra o direito internacional, mas terá sido a forma de evitar mais sofrimento tanto no Donbass como na Ucrânia. Putin enfatizou que o povo do Donbass viveu oito anos de genocídio e o dilema russo era: esperar passivamente pelo maior envolvimento da NATO ou desmantelar os preparativos do anunciado ataque ao Donbass e à Crimeia.

É dada relevância a um pseudo presidente como Zelensky que nada controla no país, que no seu discurso se limita a representar a farsa encomendada pelos seus donos. Nada do que diz tem que ver com o papel de um presidente em exercício, sendo incapaz de apresentar um plano, uma estratégia para o drama em que envolveu o seu país. Títere de Washington pede desalmadamente o envolvimento direto da NATO… O que significa a confissão da derrota do poder intensamente treinado e armado pela NATO que os “comentadores” diziam ir derrotar a Rússia. A sua petulância não tem cura.

Os cãezinhos pavlovianos da UE sentem-se bem por seguirem os rinocerontes dos EUA. Em 10 de março o então ministro da defesa dizia no Expresso, “sentiu-se a desorientação (das tropas russas) logo nos primeiros dias” “Uma aventura que Putin está destinado a perder.” “A situação vai correr muito mal para a Rússia do ponto de vista político, económico e militar” etc. Em contradição a estratega Ana Gomes (PS) das armas de destruição massiva no Iraque, quer a interdição do espaço aéreo ucraniano pela NATO. Confissão da derrota do poderoso exército ucraniano criado pela NATO...

Militarmente não há muito a dizer, pode ver-se aqui e aqui o evoluir da situação. O exército ucraniano não tem um mínimo de condições para realizar quaisquer movimentos estratégicos, as ações táticas resumem-se a estabelecer pontos de resistência em algumas cidades. Recorde-se o tempo que os EUA levaram para acabar com a resistência, por exemplo, em Faluja no Iraque, e não tinham os pruridos, a contenção, que agora existe por parte da Rússia nem corredores humanitários.

A própria Newsweek o reconhece: "O coração de Kiev mal foi tocado. E quase todos os ataques de longo alcance atingiram alvos militares.” "Na capital, as autoridades da cidade de Kiev dizem que cerca de 55 prédios foram danificados e 222 pessoas morreram desde 24 de fevereiro. É uma cidade de 2,8 milhões de habitantes.” "Se nos convencermos de que a Rússia está bombardeando indiscriminadamente, ou [que] não está causando mais danos porque seu pessoal é tecnicamente inepto, não vemos o conflito real".

O presidente da República quis dar em Moçambique lições de direito internacional que não aplicou na Líbia, Iraque, Afeganistão, etc. A resposta do presidente moçambicano devia fazê-lo corar e ir ler outros livros a ver se aprendia alguma coisa além do que os EUA dizem.

Mas existe efetivamente um drama na Ucrânia. Os descendentes ideológicos dos criminosos de guerra nazis estão entre os combatentes mais cruéis e malignos que Washington já empregou para implementar sua agenda de política externa. Segundo a  organização comunista ucraniana Borotba, "perseguem, torturam, matam quem se lhe opõe ou é suspeito disso." Sabem que enfrentam julgamentos, a morte ou prisões duríssimas na Rússia.

Na UE, alguns esboçam reticências quanto ao caminho seguido. Na cimeira da NATO, o chanceler alemão Scholz expressou claramente sua oposição a penalidades sobre a energia da Rússia. O primeiro-ministro belga alertou para sanções contra a Rússia que enfraqueceriam desnecessariamente a economia da UE. Macron da França defende os meios diplomáticos para se conseguir um acordo de cessar-fogo e a retirada das tropas russas da Ucrânia: "Queremos parar a guerra que a Rússia lançou na Ucrânia sem entrar em guerra. Esse é o objetivo" e "se queremos fazer isso não devemos entrar na escalada nem das palavras nem das ações." "Geograficamente, quem enfrenta a Rússia são os europeus. Os Estados Unidos são um aliado no quadro da NATO, com o qual compartilhamos muitos valores, mas quem convive com a Rússia são os europeus." (Lusa 27 de março de 2022). Vamos ver como fica o discurso dos “comentadores” sobre a “unidade da NATO”…

Um instituto de pesquisa económica da Bélgica estima que a curto prazo, para reduzir a dependência energética da UE em relação à Rússia o custo pode chegar a 100 mil milhões de euros. A Rússia fornecia 40% das necessidades coletivas de gás da UE, 27% das suas importações de petróleo e 46% das importações de carvão.

A UE encontra-se praticamente em estagnação económica desde 2000, as guerras e as sanções aplicadas a países que se opõem a Washington só contribuíram para o seu medíocre desempenho. Ao conter a Rússia, a UE vai tornar-se mais dependente dos EUA em termos de energéticos e comerciais conduzindo à degradação da sua competitividade e nível de vida da população.

O descontentamento das populações e empresários já se começou a fazer ouvir. Note-se que os reflexos condicionados podem ser anulados por outros mais fortes. Falamos da sobrevivência...

3 - Transformações quantitativas e qualitativas

Biden perde a compostura e diz disparates:  o país que funciona mais como uma oligarquia do que como uma democracia, diz que esta guerra é uma luta entre a democracia e os oligarcas. É sem dúvida o contrário. A primeira condição para a democracia é a soberania do povo, por isso democracia e imperialismo são incompatíveis. Para dar uma hipótese à democracia é necessário que um Estado hegemónico deixe de policiar o mundo em função dos seus interesses.

Os outros povos compreendem os riscos que correm seguindo os rinocerontes. Os EUA/NATO apoderam-se de depósitos financeiros e aplicam sanções aos Estados e cidadãos que não lhes obedeçam. Olham também para a correlação de forças, os EUA/NATO perderam na Síria, no Afeganistão, e só fazerem frente à Rússia atrás do drama ucraniano que impulsionam. Entendem que os rinocerontes têm pouca visão, reduzida inteligência, força bruta que utilizam mal.

"A China insiste para que os EUA tomem ações concretas para diminuir as tensões na Ucrânia. As suas práticas só farão com que os Estados Unidos fiquem ainda mais desacreditados no mundo." Por outro lado, "para a China as suas relações com a Rússia são o mais importante ativo estratégico e não podem ser alteradas pelas provocações dos EUA".

Os rinocerontes estão encurralados. A era pós-Guerra Fria acabou. Nunca os EUA foram desafiados de forma tão direta como pela intervenção da Rússia na Ucrânia. As velhas regras que os EUA impuseram – pela força – deixarão de existir. Apesar da pressão dos EUA nenhum Estado árabe participa da guerra económica contra a Rússia nem a maioria dos países da América Latina e da África, além do Irão, Índia, Paquistão e China. A Arábia Saudita e outros estados do Golfo resistiram a bombear mais petróleo para compensar a proibição dos EUA às importações de petróleo russo e está em negociações com a China para trocar parte de seu petróleo por yuan. Moscovo está a criar com a China criando um sistema económico e financeiro separado do dólar. A crise russo-ucraniana mina a retórica dos EUA e da UE sobre o conflito árabe-israelita. Os Estados Unidos pregam o pacifismo aos palestinianos perante décadas de ocupação e agressão de Israel, na Ucrânia logo nos dois primeiros dias de conflito, cerca de 30 países enviaram mísseis e armas avançadas para a Ucrânia (agora destruídos...). Aos palestinianos até mesmo é negado o direito à resistência pacífica.

A comunidade mundial evita tomar partido entre os EUA e a Rússia. A Declaração de Islamabad, emitida após a 45ª reunião dos ministros das Relações Exteriores dos 57 membros da Organização da Conferência Islâmica, recusou-se a aplicar sanções contra a Rússia e, em vez disso, aconselhou a cessação das hostilidades na Ucrânia, aumentar a assistência humanitária e uma “decidida ação diplomática”. Posição idêntica à da China e Índia. Nenhum país do continente africano e da Ásia Ocidental, Ásia Central, Sul e Sudeste Asiático impôs sanções contra a Rússia. Este é também o consenso dentro da ASEAN.

A Rússia, pretende que a Ucrânia seja um "Estado neutro e desmilitarizado, embora com seu próprio exército e marinha", modelo rejeitado até agora. A neutralidade exigiria que os EUA e os outros grandes países ocidentais fornecessem garantias de segurança explícitas e detalhadas, sobre futuras ameaças à integridade territorial e soberania da Rússia e que a Ucrânia não representasse mais uma ameaça potencial à segurança da Rússia. Mas a Ucrânia nada faz sem instruções de “terceiras partes” dizem os negociadores russos.

Os Estados Unidos estão a descobrir que o mundo se afasta deles. Não o vão tolerar, tentarão usar a força para manter o controlo sobre a humanidade.

A guerra na Ucrânia prenuncia uma transformação qualitativa ao nível geopolítico. Não é o fim do imperialismo, mas talvez seja o princípio do fim, já que a Síria representou o fim do princípio, isto é, da sua expansão.

29/Março/2022

Este artigo encontra-se em resistir.info

30 /Mar/22