E se falássemos de socialismo? (2)
por Daniel Vaz de Carvalho
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Antes que a humanidade pudesse estar preparada para uma ciência que
abrangesse a realidade inteira, era necessária uma segunda verdade
fundamental.
Einstein, The world as I see it
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O capitalismo e o socialismo são sistemas políticos,
económicos e sociais distintos. Um sistema é, em termos da
ciência, definido pelas leis que regulam o seu funcionamento. Sem este
conhecimento não é possível agir quanto ao seu
funcionamento. Há, aliás, leis comuns a diversos sistemas,
porém o que distingue um sistema de qualquer outro é a sua lei
fundamental.
Foi o marxismo que descobriu a lei fundamental do capitalismo e definiu a lei
fundamental do sistema alternativo, o socialismo. No capitalismo, temos a lei
da maximização do lucro; no socialismo a
maximização dos benefícios sociais.
Para além das leis que definem um sistema, cada caso particular fica
determinado pelo que em Física se consideram as
"condições aos limites" ou as
"condições fronteira". Falando quer de capitalismo quer
de socialismo as suas realidades não podem ser abstraídas destas
condições, constituídas designadamente pela
existência do imperialismo, que tem como prioridade evitar a
emancipação dos povos e destruir toda e qualquer
experiência progressista.
Assim, dificilmente podemos encontrar a lei fundamental plenamente estabelecida
em países que se consideraram ou consideram socialistas. Necessidades de
estratégia económica e de defesa têm-se sobreposto, mesmo
nos países mais avançados na via socialista.
O que tem principalmente existido, são formas de transição
do capitalismo para o socialismo que, como em quaisquer sistemas
físicos, dependem das "condições iniciais", em
que a lei fundamental vai sendo aplicada de forma mais ou menos parcial,
atendendo aos circunstancialismos, sejam das ingerências externas sejam
herdados do capitalismo. Não é portanto correto dizer-se que
há tantos socialismos quantos os países que o praticam ou dizem
praticá-lo. É também um erro assumir como socialismo o que
são apenas fases de transição do capitalismo ou meras
intenções de socialismo.
[1]
Aos puristas teóricos uma lição: a plena democracia e
efetivo socialismo não são possíveis enquanto o
imperialismo dominar e o sector monopolista permanecer.
2
Capitalismo e socialismo são sistemas alternativos, dado terem leis
fundamentais absolutamente distintas. O que não significa que não
haja pontos de contacto entre eles, quer originados pelos processos de
transição quer por leis comuns, como acontece nos sistemas
físicos.
No capitalismo, a maximização do lucro e a necessidade de
crescente acumulação do capital, exprimem as
contradições entre os interesses sociais e a propriedade privada
dos meios de produção, na medida em que a
repartição do rendimento para as camadas trabalhadoras tende a
ser reduzido, mesmo que em certos períodos o seja apenas em termos
relativos face aos detentores do capital ("empobrecimento relativo"
do proletariado).
Devido à luta e unidade dos trabalhadores, o keynesianismo ou medidas
social-democratas, podem proporcionar uma melhoria de rendimentos e direitos do
proletariado, sendo apresentados pela direita como socialismo. No entanto
verifica-se, praticamente sempre, que os rendimentos do grande capital aumentam
ainda mais. Gráficos disponíveis em:
EUA: Extorsão neofeudal, declínio e colapso
, mostram como os super ricos praticamente absorvem toda a riqueza criada.
As tentativas de ultrapassar as contradições do capitalismo sem
que as respetivas leis sejam substituídas, têm apenas um resultado
transitório. Logo que a relação de forças sociais
se altera a favor do grande capital ou na primeira situação de
crise os direitos e rendimentos dos trabalhadores são de imediato postos
em causa e trabalhadores colocados no desemprego, tudo em nome da
"economia".
Um traço plenamente distintivo do socialismo diz respeito à forma
como é visto o trabalho. No capitalismo o direito ao trabalho
encontra-se em última análise subordinados ao lucro gerado.
Quaisquer que sejam as intenções exibidas, o trabalho é
visto como uma concessão do "empreendedor". Em socialismo, o
direito ao trabalho está plenamente assegurado, o trabalho é mais
que um direito, é um dever coletivo, uma questão assumida como
fonte de desenvolvimento das capacidades físicas e intelectuais, a base
da socialização e do desenvolvimento pessoal.
Os problemas, erros ou falhas em sociedades socialistas ou em
transição para o socialismo, solucionam-se melhorando a
aplicação das leis económicas do socialismo e não
com a regressão a processos do capitalismo. As medidas de
mercantilização postas em prática na URSS e outros
países que haviam adotado o socialismo, pretendendo resolver
dificuldades na gestão socialista, conduziram ao agravar dos problemas e
à criação de graves contradições.
O marxismo, o materialismo dialético, é uma
construção teórica para compreender e transformar a
realidade social. O abandono do marxismo representou sempre um virar costas a
reais possibilidades de transformação social progressista e de
perspetiva de socialismo. O papel da social-democracia/socialismo reformista
tem sido o de associar-se ao capitalismo, desmobilizando as camadas populares
com frases vãs, recheadas de boas intenções, fazendo coro
na propaganda anti-socialista com que mascara os apoios ao grande capital e as
cedências aos interesses das camadas monopolistas e transnacionais.
3
O socialismo não é ainda uma sociedade perfeita, é
realizado por homens e mulheres imperfeitos. Subsistem
contradições, continuam a existir desigualdades sociais e a
produção material não é distribuída de
acordo com as necessidades individuais, mas sim de acordo com as capacidades e
desempenhos individuais.
Como qualquer organização ou construção humana, no
socialismo subsistem problemas que é necessário permanentemente
acompanhar e resolver. Um desses problemas é o do planeamento. O
planeamento não é exclusivo do socialismo. No capitalismo existe
planeamento, seja realizado pelo Estado, como no keynesianismo, ou pelo grande
capital, como no neoliberalismo. No socialismo o planeamento representa a
possibilidade de pôr em prática a sua lei fundamental. Mas sendo
apenas uma possibilidade, é preciso que a lei seja aplicada em plena
conformidade o que, atendendo às condições de
construção do socialismo, nem sempre ocorre.
[2]
Planear corresponde a fazer opções. A forma de otimizar estas
opções é não descurar os processos
democráticos e seguir com rigor os procedimentos de controlo e
correção.
[3]
O aperfeiçoamento do planeamento é, pois, uma tarefa constante,
controlando e corrigindo a sua execução e resultados. Além
disto, o planeamento torna-se cada vez mais complexo a partir do momento em que
o país atinge determinado nível de desenvolvimento e
satisfação das necessidades sociais, tendo superado as
carências e desigualdades herdadas do capitalismo.
As exigências sociais da população são
tendencialmente crescentes, o que pode tornar-se um problema social e uma
fragilidade do sistema, por onde é introduzida a propaganda e a
conspiração anti-socialista. Tal é facilitado por erros do
planeamento (por exemplo, não atendendo devidamente às
exigências sociais) ou se as pessoas estiverem afastadas da
participação na tomada de decisões (carência de
democracia na preparação do plano) e não as tomarem como
suas, conduzindo à incompreensão do processo de
construção do socialismo como sociedade avançada
económica e socialmente.
A burocracia é outro problema do socialismo, conduzindo à
deformação dos seus princípios, fonte de
corrupção, nepotismo, laxismo. A burocracia, como referido na
1ª parte, pode desenvolver-se em qualquer organização,
nomeadamente nas grandes empresas capitalistas. A nível internacional o
capitalismo é gerido por estruturas burocráticas como o FMI, BM,
as diversas instituições da UE, etc.
A burocracia privilegia o formalismo processual aos objetivos a serem
alcançados e as fidelidades pessoais à fidelidade aos
princípios. Em socialismo deve ser combatida, como o aprofundamento da
consciencialização quanto aos objetivos a atingir, a
eficácia das formas de gestão e a uma participação
alargada na tomada de decisões.
A eficiência capitalista é muitas vezes tomada como exemplo. O
dinamismo da sua "eficiência" (criação de lucro
privado) conduz às crises, ao desemprego, ao trabalho semi-escravo do
neocolonialismo. Baseia-se na conhecida "destruição
criadora".
Em socialismo, é necessário dedicar a máxima
atenção a esta questão. Em primeiro lugar, a rentabilidade
empresarial deve ser analisada não do ponto de vista de cada empresa ou
sector produtivo durante o período de um ano, mas do ponto de vista
estratégico para toda a economia nacional e ao longo de um médio
prazo, por exemplo cinco, dez anos.
A concretização dos objetivos de cada empresa é uma tarefa
coletiva, tendo em vista a eficácia e a qualidade, permitindo o
constante desenvolvimento planificado do país e a elevação
do bem-estar dos trabalhadores. Para este efeito, é necessário
controlar o desempenho, avaliar o grau de exigência posto em
prática a todos os níveis, premiando a competência e a
dedicação quer em termos individuais quer coletivos.
Em 1946, uma resolução do Conselho de Ministros, defendia o
desenvolvimento do comércio cooperativo dado que "o comércio
estatal urbano adquiriu uma posição de monopólio que
entrava a extensão do comércio de artigos de amplo consumo".
Em meados dos anos 1950, existiam no sector cooperativo mais de 114 000
oficinas e empresas industriais, 100 gabinetes técnicos, 22
laboratórios e 2 centros de investigação
científica, agrupando 1,6 milhões de trabalhadores. Esta
situação foi revertida posteriormente, permitindo o
desenvolvimento de formas burocráticas, ineficiência e
descontentamento dos consumidores.
[4]
Apesar disto, a URSS demonstrou elevados padrões de desempenho, pelo
menos até ao início dos anos 70 do século passado, sendo
uma superpotência avançada e dinâmica em termos
científicos, económicos e sociais.
4
Como noutro tipo de organizações, também um país
deve possuir uma
visão
. Uma ideia condutora, exprimido os grandes objetivos nacionais, os
propósitos comuns que deverão integrar os esforços
coletivos. Isto é, o que o país, os seus cidadãos,
pretendem ser no futuro, dentro de 5, 7, 10 anos.
A Constituição, à volta da qual se reuniu o maior consenso
nacional pós-25 de ABRIL, deveria constituir a
visão
para o futuro e ser posta em prática nesse sentido. As políticas
de direita, pelo contrário impedem que seja divulgada e estudada nas
escolas, substituindo-a pelas manobras federalistas da UE e um
"atlantismo" que atrela o país ao aventureirismo imperialista.
Uma
visão
traduz-se em
missões
para os diversos agentes políticos e sociais. Cada ministério,
cada secretaria, cada direção-geral, cada agente económico
ou da esfera puramente social, deverá saber definir como se concretiza a
sua atividade no âmbito da
visão
comum, qual a sua
missão.
Esta
missão
traduz-se em
políticas,
as orientações, formas, meios, para realizar a
missão
no curto prazo, e em
estratégias:
o que fazer, como, quando e quem, para as
políticas
serem concretizadas com eficiência.
Por exemplo, a
missão
do ministro da Agricultura ou a do ministro da Economia, seria aumentar a
produção, reduzir os défices da BC, tornar a
produção nacional mais competitiva com aumento da produtividade,
quantificando estas grandezas, pois só se controla o que pode ser
quantificado. Os respetivos resultados a serem auditados periódica e
eficazmente. Para tudo isto o guia é o planeamento económico
democrático.
Este processo define a qualidade democrática de qualquer país ou
entidade, avaliada, pela participação e influência de cada
cidadão na vida coletiva, pela identificação com os
objetivos estipulados.
5
Em socialismo pode haver regressão dos benefícios sociais? Sim,
pode haver. Tal verificou-se na URSS por ocasião da agressão
nazi. Porém, o que se passou com Gorbatchov (e noutros países
socialistas) não pode ser atribuído ao socialismo, mas ao seu
abandono visando a instauração do capitalismo, à revelia
da vontade expressa dos povos.
Esta situação levou a que em países com estreitas
relações com a URSS, como Cuba, RPDC (Coreia do Norte), Vietname,
se verificasse também uma regressão, tendo além disto de
fazer frente a acrescidas formas de agressão, sanções,
ingerência, por parte do imperialismo. Contudo, a superioridade do
socialismo verifica-se pela recuperação económica e social
daqueles países, baseando a sua estratégia de desenvolvimento na
lei fundamental do socialismo.
O desenvolvimento só se pode concretizar com a iniciativa pública
em grande projetos, orientados para o sector primário (agricultura,
pecuária, floresta, minas) e o desenvolvimento industrial, que originam
por sua vez serviços.
No processo de construção do socialismo, é
condição necessária que os sectores básicos e
estratégicos estejam na posse do Estado. Este processo obriga a
considerar alternativas pós-capitalistas começando por parar a
máquina infernal da financiarização que (des)regula
o mundo capitalista por meio do endividamento instaurando o controlo
público do sector financeiro a fim de responder às necessidades
dos povos.
Pode dizer-se que o comum das pessoas tem uma ideia sobre o que é o
socialismo, o que não quer dizer esteja correta ou não seja
preconceituosa. De facto, é este o objetivo da luta ideológica
movida pelo grande capital, que para manter o seu domínio recorre
à deturpação, à calúnia. O esclarecimento,
faz assim parte da luta de classes, tarefa nesta fase nunca dada por terminada.
Nas Honduras, Paraguai, Bolívia, processos basicamente de índole
social-democrata, procuraram melhorar a condição dos mais pobres
e das camadas trabalhadoras. São exemplos de como a regressão de
formulações social-democratas, com mais ou menos cambiantes de
esquerda, para o capitalismo pleno representam uma regressão
civilizacional de consequências dramáticas para os povos.
Pensar que a oligarquia se submete aos processos democráticos quando
estes deixam de servir-lhe é pura ilusão, alimentada pela
social-democracia. Quando deixam de servir-lhe, a oligarquia recorre ao golpe
fascista e não se importa sequer de dar ao país um estatuto
colonial ou de protetorado. Entre muitos outros, os exemplos do Chile e da
Venezuela, são concludentes.
O capitalismo tem êxito em proporcionar "pão e circo",
com que ilude vastas camadas e capta o proletariado
lumpen
(empobrecido, mas sem consciência de classe) como esteio da demagogia
fascista (têm-lhe chamado populismo). As pessoas, intoxicadas por esta
propaganda acabam não sabendo o que pensar perante as próprias
evidências: preferem não pensar, entregando-se às
inconsequentes e falsas indignações da extrema-direita que tem o
cuidado de nunca expor as suas reais intenções.
Países que seguem o socialismo ora são apresentados como
subdesenvolvidos e famélicos, ora detentores de tecnologias que lhes
permitem ser uma ameaça aos EUA! Não raro, como na RPDC,
"assassinados" pelo "regime" aparecem depois vivos e de boa
saúde em lugares de destaque. Claro que isto é então
omitido.
O passado das experiências socialistas, importa tanto ou quase
como as questões que concretamente se colocam em sociedades
visando a construção do socialismo. Por isso, a oligarquia se
esforça por conspurcar e destruir essas memórias, que seriam
lições pelos seus êxitos e pelos seus erros.
Tentar esclarecer as dúvidas que as camadas proletárias possam
ter sobre o socialismo é tarefa prioritária. Como escreveu Brecht
em
Os dias da Comuna: O povo não dispõe senão de uma hora.
Que infelicidade se nessa hora não estiver completamente equipado e
pronto para a luta.
18/Agosto/2020
[1]
Do capitalismo para o socialismo, um processo de transição
[2]
Acerca do planeamento democrático do desenvolvimento
[3] É mais conhecido que praticado o procedimento: Planear -
Executar - Controlar - Atuar.
Quanto ao planeamento em termos de custos e benefícios sociais,
refira-se por exemplo, Marglin, Sen e Dasgupta, Guidelines for Project
Evaluation, Nações Unidas, 1972
[4] Leonid Abalkim,
Revista Internacional,
julho/1988, pág. 32.
Este artigo encontra-se em
https://resistir.info/
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