Macron confessa-se ou as angústias da burguesia francesa ...e
alemã
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"O fascismo não é o contrário da democracia burguesa,
é a sua evolução em tempos de crise",
B. Brecht
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por Daniel Vaz de Carvalho
1 - A burguesia no "fio da navalha" das crises
Em 27 de agosto o sr Macron proferiu um discurso perante os embaixadores
franceses, em que fez praticamente o pleno sobre política internacional,
economia, soberania, NATO, UE, interesses da França em África e
no Médio Oriente, etc, afastando-se da habitual ortodoxia, porém
praticamente ignorado pelos grandes media.
Macron, limita-se a ser porta-voz e um dos executantes dos interesses da
burguesia francesa, em íntima ligação com as
posições do governo alemão. Os últimos presidentes
franceses limitaram-se a ser arautos de políticas decididas em Berlim.
Por isso, é importante percebermos o que diz e por que o diz.
Em primeiro lugar, avaliemos os contextos deste discurso, que reflete as
preocupações da burguesia francesa e por certo alemã.
É significativo que Macron, que tem demonstrado ser uma nulidade
intelectual e política, de repente se exprima de forma alheia à
ortodoxia vigente, sobre política internacional, ordem mundial,
globalização, soberania, economia de mercado.
A França está em estagnação desde a
adoção do euro. Que surpresa! De 2000 a 2018 o crescimento
médio anual foi inferior a 1,3%, mas de 2008 a 2018 apenas 0,86%. A BC
de bens, positiva antes de 2000, atingiu em 2018 um défice de 76,7 mil
milhões de euros! (dados AMECO) Acrescente-se o atraso
tecnológico e industrial da França em muitas áreas face a
parceiros/concorrentes e a perda de voz na cena internacional.
Na lista da Forbes entre os 50 primeiros ultraricos contam-se 25 dos EUA com a
agravante de estarem nos primeiros lugares (8 entre os 10 primeiros), mas
apenas dois franceses. A Alemanha conta com cinco. Esta
classificação
não agrada aos oligarcas.
A agitação social não cessou, o total descrédito
dos políticos do sistema e da UE, a ascensão de uma direita mais
radical, que em muitos aspetos coloca em causa os dogmas neoliberais e o
federalismo da UE, conquistando largas camadas da "classe
média", coloca a burguesia francesa e não só, no
"fio da navalha", perante o avanço de nova crise
económica e financeira.
Já antes das manifestações dos coletes amarelos as
sondagens davam a Macron apenas uns 26% de apoio. Face a isto, não deixa
de ser sintomático o esforço mediático desde então
para promover Macron, "omnipresente em todas as suas facetas e em todos os
canais"
[1]
2 - Política internacional: "enfrentando o fim da hegemonia
ocidental no mundo"
Diz Macron que a ordem internacional está a ser abalada de uma maneira
sem precedentes: uma grande reviravolta em quase todos os campos, com uma
magnitude profundamente histórica, que traduz uma
recomposição geopolítica e estratégica.
"Provavelmente, estamos enfrentando o fim da hegemonia ocidental no
mundo".
"A posição ocidental no mundo profundamente abalada pelos
erros dos ocidentais em certas crises, pelas escolhas, também americanas
durante vários anos e que não começaram com esse governo,
mas que levam a revisitar certas implicações dos conflitos no
Médio Oriente e noutros lugares".
Desta forma, Macron diz ser necessário repensar profundamente uma
estratégia diplomática e militar, mesmo "elementos de
solidariedade que pensávamos serem intangíveis para a eternidade,
mesmo que a tivéssemos formado juntos em momentos geopolíticos
que hoje mudaram".
Por outras palavras, os EUA que façam o seu caminho que nós
faremos o nosso. Mas quem? A França e a Alemanha? A UE? A zona euro? Com
quem não é claro, mas o facto é que aqueles
"nós" olham agora estarrecidos para Leste.
Reconhece-se "o surgimento de novos poderes, cujo impacto provavelmente
subestimamos há muito tempo. A China na vanguarda, mas também a
estratégia que a Rússia liderou, é preciso dizer, nos
últimos anos com mais sucesso. A Índia emergente, essas novas
economias que estão se tornando não apenas económicas, mas
também políticas e que se pensam como verdadeiras
civilizações estatais e que não apenas empurram a nossa
ordem internacional, como chegam a pesar na ordem económica, a repensar
a ordem política e o imaginário político que a acompanha.
A Índia, Rússia e China, têm uma inspiração
política muito mais forte do que os europeus de hoje. (...) uma
lógica real, uma filosofia verdadeira, um imaginário que perdemos
um pouco".
Eis como as burguesias dominantes na UE (alemã e francesa) verificam que
se tornam cada vez mais irrelevantes, agarradas a teses falhadas, ao
contrário da "estratégias de sucesso da Rússia".
3 - A "ordem internacional"
A intervenção de Macron reflete a desorientação que
reina na "ordem internacional" que o ocidente (leia-se NATO e
aliados) comandava: "Acostumámo-nos a uma ordem internacional que
se baseava na hegemonia ocidental. As coisas estão mudando". Macron
refere-se também ao insucesso relativo do G7, que exibiu
divergências, incapacidade de consenso e liderança.
O receio de aventuras bélicas "num mundo onde os conflitos se
multiplicam", e cujas consequências diretas, como no caso do fim do
tratado INF (misseis de médio alcance) em que "os mísseis
retornariam sobre o nosso território" ou indiretas lançando
o caos nas economias e no comércio internacional: "uma ordem em que
nossa segurança e organização se baseia e está
desaparecendo".
O distanciamento em relação aos EUA é evidente, quer no
fim dos tratados de controlo de armas, na questão do Irão ou das
relações com a Rússia. "É indispensável
estruturar a Europa para um novo relacionamento com a Rússia".
Neste sentido é anunciada a visita dos ministros das
Relações Exteriores e o ministro dos Exércitos, a Moscovo
para retomar "um diálogo constante com o Presidente Putin, criando
um grupo de trabalho para avançar nessa arquitetura comum".
Quanto ao Irão, é deixado claro, que todos (no G7) estão
comprometidos com a estabilidade e a paz na região". Isso significa
que todos também se absterão de comportamentos que possam
ameaçar essa paz e estabilidade". Embora decididos a não
permitir que o Irão obtenha a arma atómica.
O que é evidente, é que os EUA e aliados (incluindo a
França) podem ter vencido batalhas mas não ganharam nenhuma
guerra, pelo contrário criaram caos, fragilizaram a economia, degradaram
a situação internacional, envolveram-se em atoleiros de que
não sabem sair. Bem pode Macron lastimar a Líbia "cena
inaceitável ao nível humanitário" que a França
ajudou a criar, podia também falar da situação no
Iémen criada pela Arábia Saudita (outra derrota
"ocidental"), grande cliente de armas francesas.
Por seu lado, aparecendo como vencedora "a Rússia maximizou todos
os seus interesses no contexto atual: voltou à Síria, voltou
à Líbia, voltou à África, está em todos os
assuntos de crise por nossas fraquezas ou erros".
As oligarquias francesa e alemã, parecem finalmente reconhecer que
atreladas ao carro de guerra dos EUA caminham para o desastre. A falhada
hegemonia dos EUA quer manter-se sobre os pés de barro do dólar,
o poder militar, um estatuto imperial e uma ganância que desestabiliza e
ameaça destruir o mundo inteiro, sem sequer ter em conta os interesses
dos seus aliados mais próximos.
"A ordem em que nossas certezas e nossa organização repousam
está desaparecendo isso deve-nos levar a questionar nossa própria
estratégia, porque hoje os que têm cartas reais nas mãos
são os EUA a China". Esta constatação leva-o a
colocar a questão da fragilidade da UE e da incapacidade de ter uma
política própria, limitando-se a decidir "ser aliados
minoritários de um ou de outro ou um pouco de um e um pouco do outro ou
decidir ter nossa parte no jogo e pesar".
4 - Economia de mercado, globalização
Seria divertido apreciarmos as piruetas políticas destes títeres
da oligarquia, caso não nos envolvessem nelas. Afinal, após anos
de propaganda de não haver alternativa, dizem-nos que "estamos
passando por uma crise sem precedentes na economia de mercado.
Uma economia "profundamente financiarizada e o que era uma economia de
mercado, que alguns poderiam até teorizar como uma economia social de
mercado e que estava no centro do equilíbrio em que pensávamos,
se tornou um capitalismo cumulativo, (...) levando a uma maior
concentração de riqueza". Uma "economia de mercado
produzindo desigualdades sem precedentes que, no final, abalam profundamente
nossa ordem política".
Parece então que o problema já não é não se
explicar devidamente as "reformas", como diziam, mas do seu
descrédito. "Como explicar aos nossos concidadãos que
é uma boa organização quando eles não encontram sua
parte. Quando as classes médias, que são a base de nossas
democracias, não têm mais a sua participação,
duvidam e são legitimamente tentadas por regimes autoritários,
democracias iliberais ou pondo em questão o sistema
económico".
A globalização também é posta em causa:
"portanto, devemos encontrar os meios para repensar a
globalização, mas também para repensar essa ordem
internacional".
E necessário "manter empregos em nosso país". Como?
Fazer "concessões vacilantes a grupos nos quais não podemos
fazer nada". Mas a estratégia adaptação também
não serve. Consiste em dizer: é necessário correr mais
rapidamente contra esse mundo em movimento", "fazer reformas para
alcançar outros tentando nada mudar de verdade. Este é um
cenário que rapidamente nos levará ao mesmo resultado". Ou
seja, a requentada história das "reformas estruturais"
não passa de uma falácia"...
Por fim era o que estava a faltar (!) queixa-se das
privatizações: "a crise económica e financeira, levou
vários Estados a privatizações forçadas sem
opção europeia, decidindo reduzir sua soberania entregando muitas
infraestruturas essenciais no sul da Europa aos chineses. Não culparemos
os chineses por serem inteligentes, podemos nos culpar por sermos
estúpidos". (!) Pois sim, mas nem agora nem antes as troikas foram
questionadas, nem as austeridades para compensar a banca francesa e
alemã, nem as imposições dos famigerados tratados
orçamentais da UE que a França não cumpre.
5 - UE e soberania
É necessário "trabalhar pela construção de uma
soberania europeia (...) militar, estratégica, em todos os assuntos.
Esta não é uma iniciativa para desafiar a NATO, mas é
complementar a ela muito profundamente, porque também nos dá
espaço para manobras e autonomia estratégica."
Em termos de soberania "devemos repensar em nossas fronteiras. Devemos ser
mais capazes de proteger nossas fronteiras". Quanto aos migrantes o
objetivo é que possam "retornar ao seu país de origem com o
apoio da União Africana" e da UE.
Torna-se evidente que a burguesia francesa não está interessada
na atual UE em que países do Leste estão mais alinhados com os
EUA do que com a CE, arrastando os demais para confrontos contrários aos
interesses da França e da Alemanha.
O interesse da burguesia francesa é pela zona euro, que obviamente tem
intenções de controlar, servindo-se de reforçados
mecanismo financeiros que deseja aprofundar para se salvar a ela
própria. "Precisamos lutar por um reforço, uma maior
integração da área do euro, uma maior
integração dos mercados e atores financeiros da zona do euro e
uma capacidade de construir tudo o que realmente constrói soberania
financeira e monetária, é indispensável".
Os interesses dos países periféricos não contam. A
questão é saber se a Alemanha vai nisso de favorecer a
França à sua custa, embora, segundo os tratados a Alemanha,
já devesse ter sido penalizada pela dimensão do excedente
comercial
6 - Concluindo
A França e a Alemanha vêm a "sua" "Europa" e
elas próprias entrarem em crise tendo apenas soluções que
se mostraram inúteis ou contraproducentes. O que Macron afirma sobre a
"adaptação" e o prosseguimento das medidas atuais entra
em choque com a política decidida pelo BCE.
Os burocratas da CE, fixados nos dogmas que os suportam, não chegam a
uma solução para o Brexit, aliás uma forma de mostrar
às tendências centrífugas o que o futuro lhes reservaria. A
Leste os vários países mostram que acima da UE a sua fidelidade
é para com os EUA que ajudaram a colocar no poder e suportam cliques
neofascistas e corruptas que os dominam, funcionando como agentes da
agressividade contra a Rússia.
Apesar do silêncio dos media controlados pela oligarquia, um país
com as ambições da Alemanha não pode ignorar o dinamismo
da Organização de Cooperação de Shangai, da Nova
Rota da Seda, nem mesmo da União Económica Eurasiática
[2]
, face ao descalabro da economia mundial liderada pelos EUA, FMI, BM, OMC, que
já mostraram não ter controlo sobre o que se passa na economia.
A agressividade dos EUA, roça o desnorte de uma guerra total,
ameaçando em primeiro lugar os países europeus sede de
inúmeras de bases norte-americanas.
O comércio internacional não progride, preso às agendas
imperialistas que têm conduzido a Estados caóticos e a
sanções contra importantes clientes, como a Rússia cujas
retaliações recaíram significativamente sobre as
exportações da França e da Itália.
A França permanece envolvida em guerras conspirações na
África francófona, resultando em caos, miséria,
corrupção. O capitalismo precisa de expandir os mercados, mas as
políticas da sua ganância conduzem ao desastre global.
A "classe média" que a oligarquia considera o esteio do seu
domínio pela democracia burguesa, foge-lhe pela indiferença, pelo
desprezo a que vota os seus políticos, pelo descrédito de
protagonistas dessa mesma burguesia atolada em escândalos, fraudes,
crises nunca resolvidas e uma austeridade permanente que apenas beneficia os
ultra-ricos.
Para tudo isto a solução habitual do capitalismo é a
guerra e isso pretendem muitos nos EUA e os seus próceres da NATO.
Porém, acordam das suas mentiras e verificam que o "ocidente"
perdeu a superioridade tecnológica para a China, a superioridade militar
para a Rússia, os domínios imperialistas e neocoloniais
estão ou caóticos ou endividados, enfrentam crescente
resistência popular, dificilmente a exploração pode ser
levada mais longe.
A Rússia e a China tornam inúteis as arrogantes ameaças
dos EUA ao Irão. A Rússia garante continuar a cooperar e apoiar o
sistema bancário iraniano. A China investe 400 mil milhões de
dólares no Irão: 280 para o sistema petrolífero e
petroquímico, 120 em infraestruturas de transporte e
produção.
A UE é o mais evidente falhanço do poder entregue à
burocracia. Não é possível manter as mesmas
políticas, suportadas pelas ameaças contidas nos seus Tratados e
no poder de chantagem atribuído ao BCE.
Claro que os habituais "especialistas" e analistas" e outros
"comentadores" devem estar a ser reciclados para ver qual a
direção a tomar no seu discurso. Neste momento preferem o
silêncio sobre estes temas. Lembremos o recente litígio um
entre vários surgido na Alemanha com o embaixador dos EUA, acerca
da compra de petróleo à Rússia, que seria
substituído pelo "petróleo da liberdade" (!) dos EUA
bastante mais caro.
Torna-se evidente a recusa da unipolaridade dos EUA. Macron reflete as
"angústias" da oligarquia francesa e alemã, pelos
fracassos imperialistas e neocoloniais. O Ocidente não consegue ganhar
nenhuma das guerras em que se envolveu: criou caos, endividou-se, liquidou
comércio necessário para contrariar a tendencial queda da taxa de
lucro.
O mais curioso de tudo isto é Macron, sem pudor, seguindo ordens dos
seus mentores, copiar quase integralmente o programa do partido da sra. Marine
le Pen (M le P), e do seu criptofascismo, tanto nos aspetos de política
internacional, como nas
relações de soberania, migrações, controlo de
fronteiras, críticas à "economia de mercado" e à
UE.
Até na tese de M le P querer um "Estado estratega", Macron
alinha ao confessar que não tem mais controlo sobre as políticas
"dos grupos". Que diferenças existem na posição
sobre o movimento sindical? Sobre as migrações, sobre as
relações com a Rússia e África ou Médio
Oriente. Mesmo sobre a UE e euro as diferenças passam a mínimas
dado que M le P já tinha deixado cair as propostas mais radicais.
Até a "democracia musculada" de M le P, foi posta em
prática de maneira mais que brutal contra os "coletes
amarelos".
Tudo o que serviu para eleger Macron contra a "extrema-direita" de M
le Pen foi deitado para o lixo, perante uma "esquerda ausente"
[3]
adotando o programa da sua principal oponente, aliás à frente do
partido de Macron nas eleições para o PE.
Portanto não surpreende que a burguesia mande Macron roubar o programa
da le Pen. É que Macron é um homem que a oligarquia escolheu e
controla, coisa que não têm por garantido com M le Pen.
Assim vai a UE e em geral o mundo capitalista entre a guerra e os fascismos.
Mas como disse Brecht: "o fascismo não é o contrário
da democracia burguesa é a sua evolução em tempos de
crise".
Aqui chegámos. Mas uma pergunta se impõe: o que é que os
interesses nacionais têm a ver com este vespeiro?
[1] A desinformação dos media dominantes sobre a vida
internacional: mentiras, manipulações, silêncios,
resistir.info/varios/desinformacao_dos_media.html
[2]
A União Eurasiática, visa a integração
económica e política entre a
Bielorrússia, Cazaquistão, Rússia, Quirguistão,
Tajiquistão, Moldávia (observador), prevendo-se alargar à
Mongólia, Síria, Tajiquistão, tendo já acordos de
comércio com outros nove Estados, entre os quais Vietname, Índia,
Irão, Tunísia, etc.
[3] A esquerda ausente, Domenico Losurdo,
resistir.info/losurdo/esq_ausente.html
O discurso integral de Macron encontra-se em
www.elysee.fr/...
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