A perda da supremacia militar e a miopia do planeamento estratégico dos
EUA (I)
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O mundo vive atualmente uma convulsiva e violenta desintegração
da Pax Americana. As suas ferramentas não funcionam contra
aqueles alvos
que têm capacidade para resistir a reais ameaças do expansionismo
dos EUA.
Andrei Martyanov [1] |
Andrei Martyanov é um reputado analista militar. Nascido em Baku, URSS,
em 1963, graduou-se oficial da marinha soviética na Academia Naval
Bandeira Vermelha de Kirov e prestou serviço na Guarda Costeira
até 1990. Em meados dos anos 90 emigrou para os EUA sendo atualmente
Diretor numa empresa do sector aeroespacial. Em 2018 publicou
Losing American Supremacy. The Myopia os American Strategic Planning
, um livro de flagrante oportunidade e fundamental para a compreensão das
questões militares e geoestratégicas do mundo de hoje.
Os perigos para a paz mundial continuam a acumular-se. Tragédias
humanitárias abatem-se sobre povos que se limitam a seguir
orientações diferentes das que os EUA e a UE
admitem. Neste contexto, o livro de Andrei Martyanov (AM) constitui um
importante contributo para a defesa da paz e de um são relacionamento
entre os povos.
O declínio cognitivo dos EUA
Nos EUA assiste-se a uma completa falta de raciocínio consistente da
política externa à economia, às questões militares,
à cultura (8) AM coloca desde logo o problema que atinge os que
manipulam a informação: é que começam a acreditar
em absoluto nas suas falsificações, tornam-se crentes
dogmáticos, da própria narrativa. (11)
Ditos especialistas militares que nunca envergaram um uniforme, formulam
estratégias políticas e militares e influenciam decisões
básicas, como o ataque ao Iraque e enviar mais 30 mil soldados para o
Afeganistão. (128, 129)
Um dos mais conceituados analistas militares dos EUA, o Dr. Stephan Black,
escrevia em 2017: "Como chamar Putin à atenção".
Propunha que se enviassem forças navais para o mar de Azov (para lidar
com a Rússia e apoiar o governo ucraniano). Demonstrava uma atroz
ignorância: a profundidade média do mar da Azov é de 7
metros, menos 2,3 metros que o calado de um destroyer. Estas fantasias mostram
a irresponsabilidade e as ilusões de grandeza dos EUA, além de
uma irrestrita russofobia. (194)
Como AM salienta, estes "especialistas" estão totalmente
desligados da racionalidade, não tendo a mínima
compreensão ou sensibilidade pelo mundo exterior. (171) Na realidade,
falham porque não são especialistas de coisa alguma, são
muitas vezes substituídos por atores, desportistas, teóricos da
conspiração e demagogos que contribuem para a completa falta de
entendimento da natureza do poder militar e das consequências da guerra.
Não poderia ser de outra forma num país cuja história
militar é em grande medida um mito triunfalista. (200)
A distorção da realidade é também evidenciada pela
forma como a Rússia, o único país que pode derrotar
militarmente os EUA, foi reduzida a uma caricatura. A esquizofrenia cognitiva
leva a que simultaneamente se propague a ideia da Rússia estar tanto
à beira do colapso como prestes a dominar os EUA e todo o Ocidente.
(140)
Bases da política externa dos EUA
A essência da política externa dos EUA foi formulada por Karl Rove
em 2004: "Nós somos um Império, agimos, criamos a nossa
própria realidade. Enquanto vocês a estudam essa realidade,
nós agimos e criamos outras realidades que vocês também
estudam. (150)
A diplomacia dos EUA existe para proporcionar mudanças de regime
um eufemismo para ilegais e violentos derrubes de governos de que os EUA
não gostam e ditar ordens aos que não podem recusar os
seus ditames. Este tipo de "diplomacia" é por
definição profundamente incompetente. (200)
É desta forma que os direitos humanos são usados para remover
qualquer governo que não alinhe com os EUA. (140) Esta visão,
mostra uma crescente falta de senso prático e uma série crise
mental das elites dirigentes. (141)
A ideia básica de que outras nações podem ter
visões delas próprias e dos seus interesses que não
envolvam a "liderança global" e a "democracia" tal
como os EUA entendem, é algo que lhes escapa. (166)
O cinismo de certos políticos americanos está patente desde
Truman: deitando fora as mais importantes decisões de Roosevelt declarou
que "a força é a única coisa que os russos
entendem". (93)
Os acontecimentos destes últimos 19 anos mostram que não é
possível ter ilusões acerca da possibilidade de haver um
diálogo medianamente racional com o Ocidente e em, primeiro lugar com os
EUA. Não admira que a política dos EUA tenha um sombrio registo
de desastres militares e humanitários. (218)
Preconceitos ideológicos e moralistas não são novos.
Resultam agora de uma combinação de ignorância e
russofobia, revestida de pretensiosas doutrinas ideológicas e
geopolíticas. Um autor (Paul Fussel) expressava que "a causa aliada
(na 2ª Guerra Mundial) ficou manchada de impureza moral quando Estaline
foi incluído", desprezava assim os esforços da URSS para ser
elaborado um sistema se Segurança Coletiva Europeu antes da 2ª
guerra Mundial. A sabotagem deste esforço deve ser o que Fussel
classifica de "causa moral". (94)
Os EUA falharam a oportunidade histórica de terem
relações baseadas na igualdade e mutuas vantagens com a
Rússia. Trataram-na com desprezo, chantagem, humilhação e
ignorância nos anos 90. (215). Não admira que numa sondagem em
2017, 80% dos russos desejasse relações neutras ou mesmo hostis
com os EUA. Apenas 14,7% se pronunciavam por relações de aliados.
(196)
Atualmente, exceto para uma fina camada de fanáticos
"liberais", muitos dos quais nas folhas de pagamento de ONG
norte-americanas, qualquer menção à
"objetividade" dos media dos EUA e à sua liberdade de
expressão, é acolhida pelos russos com sorrisos ou mesmo
gargalhadas. (123)
A Rússia como herdeira das realizações soviéticas
[2]
Quando Putin declarou em 2005 que o fim da URSS tinha sido a maior
catástrofe geopolítica do século XX, os fazedores de
opinião ficaram apopléticos. Nas suas cabeças a
União Soviética tinha sido o Império do Mal derrotado para
sempre. Porém, não é possível compreender a
Rússia moderna sem conhecimento do enorme e complexo impacto do
período soviético e esta noção requer uma
avaliação não distorcida dos êxitos e das falhas da
URSS. (100,101)
Para AM foram as realizações soviéticas que permitiram a
recuperação económica, social e militar da Rússia
após os anos 90. Foram aquelas realizações, que
permitiram, por exemplo, os russos das cidades sobreviver às inumanas
"reformas" dos anos 90, deslocando-se para as suas casas de campo
onde faziam pequena agricultura. (125)
AM refere que a vida dos soviéticos nos anos 70 era na verdade boa,
nunca tendo vivido tão bem na sua Historia. (121) Salienta o elevado
nível do sistema educacional soviético e a recusa do
sistema norte-americano base da recuperação da
Rússia. A URSS não apenas produziu cientistas de alto
nível mundial mas também uma elite tecnológica que
seriamente desafiava os EUA, alcançando-os apesar das
devastações da 2ª Guerra Mundial. (117)
Hoje os dissidentes soviéticos estão totalmente desacreditados. A
terapia de choque aplicada à Rússia sob a supervisão de
Jeffrey Sachs resultou num falhanço espetacular, não apenas
originou imenso sofrimento ao povo mas também um drástico
enfraquecimento do Estado Russo. Os dissidentes soviéticos limitavam-se
a dizer o que era esperado deles: o excecionalismo norte-americano. A
Rússia tornou-se um exemplo de como as coisas correm mal seguindo as
prescrições norte-americanas. ( 26)
As reformas liberais foram quase um suicídio coletivo. (39) Contudo,
apesar dos "reformistas" pró ocidentais, a herança
soviética industrial e militar, a consciência nacional e o
desenvolvimento futuro foi preservado. Esta preservação reflete a
quase genética cultura de um povo que lutou sem cessar contra
invasões desde os Cavaleiros Teutónicos a Napoleão e
Hitler. (34)
Em 1913, 70% da população era analfabeta; em 1940 não era
apenas alfabetizada, era uma das mais educadas do mundo. Em 1958 a quantidade
de conhecimentos em matemática, física e biologia que os
estudantes soviéticos recebiam antes da graduação numa
escola pública, era três vezes superior ao estipulado para a
entrada no MIT (Massachusetts Institute of Technology.) (112, 115)
Em 1935, Estaline expressou os factos que obrigavam a tomar medidas
drásticas para a industrialização soviética:
"recebemos como herança um país tecnologicamente atrasado,
empobrecido e arruinado por três anos de guerra imperialista e quatro
anos de guerra civil, com população sem literacia (...) A tarefa
é transformar este pais com uma indústria moderna e agricultura
mecanizada. Ou resolvemos esta tarefa rapidamente e fortalecemos o socialismo
ou não resolvemos e perderemos a independência e tornar-nos-emos
objeto dos jogos dos poderes imperialistas". Em 1931 (como que
premonitoriamente) tinha apontado um prazo de 10 anos para estes objetivos
serem alcançados. (23)
E isto de facto foi feito com sacrifícios, mas também com grandes
conquistas sociais e das condições de vida. Foi uma imensa tarefa
cultural e tecnológica. Por detrás dos sucessos militares
soviéticos estava um sistema económico que tinha providenciado o
que era necessário para derrotar a mais poderosa máquina militar
do seu tempo. (26) A enorme capacidade militar soviética fica a
crédito de Estaline, do seu governo e partido, grandes organizadores da
vitória sobre o nazismo. (94)
A elite soviética lutou na guerra, Estaline, como outros líderes,
perdeu um filho. Brezhnev, reduzido a uma caricatura no final nos seus
últimos tempos, foi um herói militar. A classe política
soviética estava ciente dos sacrifícios suportados pelo povo e
pelos soldados e expressaram-no durante e depois da guerra. (91)
AM afirma-se não estalinista (o que quer que isto queira dizer
atualmente) porém diz compreender perfeitamente a nostalgia do povo
russo por Estaline, com raízes na deturpação da
História russa. (106)
A URSS é descrita numa caricatura tenebrosa completamente fora da
realidade. A abertura dos arquivos soviéticos deitou por terra as
mentiras de dissidentes baseadas da tese de um poder diabólico com
fantasiosos números historicamente impossíveis, de pessoas
perseguidas e mortas durante as repressões. (105)
A média de presos no sistema penal soviético foi de 1,7
milhões; o total de pessoas presas por razões políticas
durante a liderança de Estaline em 32 anos, foi de 4 milhões. Nos
EUA o número de presos em 2010 era de 2,27 milhões e em 2016 2,
217 milhões. O número de presos no EUA é o mais elevado no
mundo, incluindo per capita desde há décadas. (108)
Segundo AM, é praticamente impossível convencer alguns que o povo
soviético viajava aos milhões durante o seu período de
férias bastante longas e pagas sem necessidade de qualquer
"permissão". Apesar das horríveis perdas da Grande
Guerra Pátria a população soviética teve um
constante crescimento. As pacíficas realizações (como as
da habitação depois das terríveis
destruições da 2ª Guerra Mundial) são completamente
ignoradas no Ocidente. (109)
Mas não na Rússia: sucessivas sondagens desde 2012, têm
mostrado uma permanente veneração por Estaline como a figura mais
importante da História Russa, juntamente com Pushkin, Youri Gagarine,
Pedro o Grande e, como esperado, Vladimir Putin. (103)
Sinais de decadência dos EUA
As consequências do declínio cognitivo dos EUA, são
evidentes no desastre no Iraque, na guerra perdida no Afeganistão, no
pesadelo da Síria, na Líbia incontrolável, no golpe e
guerra na Ucrânia. Tudo isto é um registo de incompetência
geopolítica diplomática e militar que evidencia as falhas das
instituições políticas, militares e académicas dos
EUA. (13)
Os eufemismos da terminologia económica migraram para a esfera militar e
serviços de informações. A financeirização e
o fundamentalismo do mercado livre destruíram o planeamento industrial e
impediram o desenvolvimento das capacidades requeridas para uma verdadeira
grandeza. (31) A repetição exaustiva dos dogmas económicos
e sociais do liberalismo substituíram o conhecimento do mundo.
A utopia da ortodoxia liberal de que o dinheiro e o lucro são a medida
de todas as coisas, não funciona. Não importa qual seja a
capitalização do Facebook, não pode proporcionar produtos
e serviços que beneficiem todos os sectores da atividade humana. (213)
O nível catastrófico de desindustrialização, a
frágil recuperação da crise financeira, a crise das drogas
ilegais nas cidades, a ascendência e influencia dos neoconservadores que
quase levaram a um confronto direto com a Rússia, conduziram os EUA a um
país crescentemente menos confiante, dividido e economicamente
estagnado. (10,12)
Como salientou o prof. James Petras: "a média das fábricas
dos EUA é duas vezes mais antiga que as da China. Apenas para
alcançar a produção da China os EUA teriam de investir
mais de 115 mil milhões de dólares por ano na indústria
nas próximas três décadas. (214)
É irónico aliás que os EUA tenham de adquirir à
Rússia foguetões RD-180 para o seu programa Atlas e ir de boleia
para a atualizada estação espacial russa Soyouz. (114)
Para além das centenas de milhões de dólares gastos
inutilmente, na Síria assistiu-se a milícias apoiadas pelo
Pentágono atacarem milícias apoiadas pela CIA. (128)
O custo total das guerras dos EUA desde 2001, ascende a 4,6 milhões de
milhões de dólares (
http://www.informationclearinghouse.info/
)
Os políticos e a liderança militar simplesmente falham em medir
as consequências das suas decisões sobre o uso da força,
baseadas em inflacionadas ameaças enquanto apostam em capacidades
próprias grandemente exageradas. A realidade é que ninguém
ameaça a existência dos EUA e ninguém planeia
atacá-los a menos que seja primeiro atacado. (149)
(continua)