A perda da supremacia militar e a miopia do planeamento estratégico dos
EUA (II)
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"Para Samuel Huntington (autor de "The clash of Civilisations"),
a universalidade da cultura ocidental sofre de três problemas:
é falsa, é imoral e é perigosa. A imposição
destes três parâmetros na Rússia mostra a falácia do
pensamento doutrinário dos EUA em pensar que o mundo pode ser levado a
um sistema global capitalista sob domínio do Ocidente".
Andrei Martyanov [1] |
1 - O erro de subestimar o adversário
Um dos mais graves erros estratégicos consiste em menosprezar o
adversário. Porém os EUA parecem preferir ilusões
agradáveis a verdades duras.
A economia russa é grosseiramente subavaliada em
comparação com a grotesca sobre-avaliação da
economia dos EUA, muita da qual não tem nada que ver com o que realmente
define o poder de uma nação. (40)
A Rússia é sistematicamente comparada desfavoravelmente, por
exemplo, à Alemanha, mas a Alemanha não tem indústria
espacial nem é capaz de projetar um avião militar de tecnologia
avançada, tal como relativamente à indústria
microeletrónica em que nenhum país pode comparar-se
consistentemente com a Rússia, à exceção dos EUA e
da China, ou produzir aviões SU-35 ou SU-57 invisíveis aos
radares, nem construir estações espaciais ou dispor da
única alternativa global ao GPS, o sistema Glonass. (39)
As sanções ocidentais à Rússia revelaram-se um
fracasso, bem como a tentativa do seu desmembramento a partir da guerra da
Chechénia
[2]
. A Rússia, país remanescente da supostamente derrotada
União Soviética, esteve sujeita a "especialistas"
ocidentais que consideraram a destruição da capacidade de combate
das Forças Armadas russas uma "reforma" viável".
(135)
Em 2017, V. Putin em resposta a um jornalista alemão afirmou: o
nosso maior erro foi acreditarmos demasiado em vocês.
Interpretaram-no como uma fraqueza e exploraram isso. (137)
A única maneira de a Rússia poder ter um diálogo racional
com os EUA e por consequência na Europa, foi voltar a ser um superpoder.
Ao mesmo tempo era inevitável uma aproximação à
China. (159) Foi isso que aconteceu.
2 - As capacidades militares atuais
Atualmente, a capacidade industrial, científica e tecnológica
russa é de primeira classe a nível mundial. (185)
Após a apresentação de V. Putin em março deste ano,
a impressão é que em termos de mísseis existe atualmente
um abismo entre os EUA e a Rússia. A Rússia baseada na tecnologia
soviética que herdou, desenvolveu mísseis capazes de
trajetórias que desafiam quaisquer sistemas ABM. (219,220)
A conceção das armas russas foi feita para funcionar, pois disso
depende a sobrevivência de um país, que teve de lutar
constantemente contra inimigos externos. (181)
Já nos anos 70 a aviação soviética dispunha de
misseis AS-6 capazes de Mach- 3. A marinha soviética havia desenvolvido
sistemas avançados de misseis contra navios (ASM) não permitindo
que um inimigo projetasse o seu poder naval sobre o país.
As munições guiadas de alta precisão (PGM) foram
desenvolvidas pela União Soviética. O seu nível atual
ficou patente na Chechénia e na Síria, mas tal escapou aos
"especialistas". (167)
Atualmente a Rússia dispõe de misseis de cruzeiro com alcance
superior a 5 500 km. A marinha russa pode disparar misseis 3M14 com alcance
superior a mais de 2 500 km de qualquer parte do Mediterrâneo oriental ou
do mar Cáspio. O segredo está no grau de precisão com que
foram disparados de fora das fronteiras Sírias. E neste campo os EUA
não têm a liderança. (174)
O desenvolvimento das capacidade em
"electronic counter-counter
mesures"
(ECCM) ficou cabalmente demonstrado na passagem de um SU-24 junto
ao USS Donald Cook, em abril de 2016, paralisando os seus sistemas
eletrónicos (tema da capa do livro).
O avanço russo no processamento de sinais eletrónicos, pode ser
também evidenciado pelo facto de ter conseguido manipular o GPS e
apoderar-se do controlo das nuvens de drones que atacavam duas bases russas na
Síria. (192)
Na tecnologia submarina foi desenvolvido um sistema de propulsão
não nuclear extremamente silencioso, de "ar independente", com
vantagens sobre os nucleares. (186),
Os novos submarinos SSK dispararam 6 Kalibur 3M14 com intervalos de 6 segundos
entre cada um sobre alvos na Síria em 5 de outubro de 2017. O êxito
foi o facto de se pensar tal não ser possível em submarinos
daquela classe. (185)
A Rússia dispõe de uma Força Aérea moderna e
complexa, mas também sistemas avançados de defesa aérea
tornando a FA do adversário muito menos eficaz. Mísseis X-32
podem ser disparados dos bombardeiros TU-22 M3 com um alcance de 1 000 km e
velocidade Mach 4.2. (175)
Esta situação impõe sérias limitações
ao poder naval tornando determinados espaços fechados a qualquer
adversário. O aparecimento do 3M22 Zirkon (ASM Mach 8, alcance 1 000 km)
mudou completamente o equilíbrio do poder naval. São tecnologias
para as quais a marinha dos EUA não está preparada e o seu SM-6
não pode ser considerado um bom sistema antimissil. (187)
Com o projeto 885 Severodviinsk de submarinos a energia nuclear armados com
modernos misseis de longo alcance é muito difícil conceber como
podem os EUA defender-se de um ataque massivo de misseis. (189)
Os modernos S-400 e os revolucionários S-500 de defesa aérea
fecham o espaço aéreo russo e de seus aliados a quaisquer ataques
aéreos ou mesmo balísticos. (205)
3 - Experiência em guerras
Os cinco dias em que as tropas da Geórgia treinadas, armadas e apoiadas
por "conselheiros" dos EUA, foram derrotadas por tropas russas
fronteiriças em igualdade de efetivos, mostraram a sua capacidade de
combate em ações combinadas das diversas armas. Na Ucrânia
as formações do Donbass produziram resultados que
destroçaram completamente as conceções militares de
há 20 anos. Apesar de numericamente superiores as forças de Kiev
sofreram sucessivas derrotas que culminaram com dois cercos
catastróficos em Ilovaisk e Debaltsevo. (167, 168)
As capacidades eletrónicas utilizadas pela Rússia para apoiar as
forças do Donbass foram descritas pelo gen. Ben Hodges como "de
fazer chorar": "o nosso maior problema é que nunca
lutámos num ambiente de comunicações degradado e
não sabemos como o fazer". Ou seja lutar num ambiente de completa
cegueira eletrónica e redes de computador suprimidas. (168, 170).
Em 2015, pequenos navios lança misseis no mar Cáspio
lançaram sobre posições do ISIS, misseis PGM 3M14 e
bombardeiros estratégicos lançaram misseis X101, tornando
evidente um mundo multipolar e a dura realidade da perda de supremacia militar
dos EUA, (169)
Com um pequeno contingente na Síria, a Rússia foi capaz de ditar
as condições no terreno e na área de
operações. Estes factos fizeram aumentar a histeria anti-russa
desde que o resultado da guerra se tornou evidente. (176) Recordemos que em
2013 ministros ocidentais davam seis meses para a "mudança de
regime" na Síria.
Os EUA não podem comemorar marchas de vitória depois de terem
destruído o Iraque, o Afeganistão ou a Líbia. Os EUA
não têm nada mais para comemorar senão morte e
destruição e veteranos que regressam a casa com traumas
psicológicos e envenenamento por radiações, que são
ignoradas pelo seu governo. (142)
A maioria dos conflitos em que os EUA se envolveram desde a Guerra da Correia
levaram a sangrentos resultados ou foram perdidos. (170) Afinal, uma
nação tão orgulhosa dos seus sucesso militares nunca
ganhou nenhuma guerra nos últimos 70 anos se excetuarmos o "tiro
aos perus" da 1ª Guerra do Golfo. (203) Podemos acrescentar, a
"gloriosa" (vergonhosa) invasão da pequena Granada para
derrubar um governo progressista.
4 - Fragilidades geoestratégicas dos EUA
A marinha dos EUA não tem sistema de defesa contra o ataque de uma salva
de misseis hipersónicos. Isto deve-se a que os EUA continuam aplicar
rígidas e ultrapassadas doutrinas agressivas. (148)
Os EUA não têm meios contra o SU-35C russo, ou o novo SU-57,
planeado para 2019. O radar do SU-35C pode detetar aviões ditos
invisíveis ao radar a 100 km, dispondo de uma inultrapassável
capacidade de manobra. A nova tecnologia radiofotónica torna os
aviões "invisíveis" (onde os EUA gastaram milhares de
milhões de dólares) obsoletos. (179)
Um ataque vindo do Polo Sul é uma contingência que os EUA
têm agora que encarar (220) Além dos Mach 8 já
revolucionários, dos Mach 10 + altamente manobráveis com alcance
de 2 000 km transportados por MiG 31, estão em produção os
Avangard "deslizantes" capazes de Mach 20 (transportados até
próximo dos alvos por
RS-28 Sarmat
heavy ICBM
).
A NATO não tem atualmente nenhum sistema de defesa ou em perspetiva para
intercetar um único míssil com estas características. Uma
salva de cinco ou seis pode destruir qualquer grupo de batalha naval
tudo sem usar munições nucleares. (220,222)
Os porta-aviões, principal força de ataque naval dos EUA,
além de proibitivamente caros, são alvos vulneráveis
levantando sérias dúvidas acerca do conceito estratégico
naval centrado nestes meios. (145,146) A destruição de um
porta-aviões teria um impacto psicológico correspondente aos
milhares de efetivos e custo astronómico do navio e da
aviação transportada. (142)
Os porta-aviões constituem excelentes alvos para os atuais ASM
supersónicos que podem ser lançados imersos. São uma
realidade para a qual a marinha dos EUA não está preparada. Um
porta-aviões pode ficar destruído com uma salva de misseis ou
ficar com a pista incapacitada por um ataque de drones. (43)
Os EUA têm necessidade de atualizar os seu dispositivos militares. O mais
novo submarino (classe Ohio) tem 20 anos. A classe Colômbia
entrará em produção em 2021 com um custo estimado de 97
mil milhões de dólares, cerca de 8,1 mil milhões cada,
mais que o custo total do programa dissuasor russo de 8 submarinos. (41,42)
Um simples submarino da classe Virgínia custa 2,5 mil milhões de
dólares, um custo astronómico quando comparado com os SSK russos,
mais indetetáveis particularmente no litoral do que qualquer submarino
dos EUA. (188)
A defesa do país simplesmente não faz parte da História
dos EUA, dado nunca terem tido uma credível ameaça continental
que os invadisse e procedesse à aniquilação da
população civil (ao contrário da Rússia). Cerca de
70% do orçamento militar dos EUA é para combater no estrangeiro.
As armas dos EUA são itens comerciais, a sua idiossincrasia militar usa
o termo "sofisticado" em vez de "eficaz". O F-35 é
muito "sofisticado" mas é "eficaz"? Na realidade a
tecnologia militar dos EUA está atrasada não apenas em
relação à Rússia mas também em
relação a alguns meios aéreos do Reino Unido e
França. (179)
Somas astronómicas foram entregues ao Pentágono e seus
fornecedores, porém nenhuma tecnologia militar de classe mundial foi
produzida pelo elogiado complexo militar-industrial. Podem continuar a
"investir" prosseguindo na pesquisa de exóticas armas
espaciais financiadas pela gigantesca dívida (21,6 milhões de
milhões de dólares) mas isso não vai alterar o resultado.
(191)
Ao contrário da Rússia que dispõe de um sistema
profundamente escalonado de defesa aérea e antimissil, o litoral dos EUA
está praticamente sem defesa. Os Patriot e o sistema AEGIS não
são garantia contra um ataque convencional ou mesmo nuclear de
retaliação em caso de conflito em grande escala.
Em geral, a tecnologia militar convencional dos EUA, já não
falando em conceitos operacionais desligados da realidade, é boa na sua
maior parte para lutar contra adversários fracos e subdesenvolvidos.
(191) Mas se os EUA não têm uma indiscutível superioridade
convencional sobre pelo menos dois dos maiores poderes militares - a
Rússia e num menor grau a China - qual é então a real
extensão do seu domínio?
Os perigos da insanidade
A expansão da NATO para as fronteiras da Rússia, apesar das
garantias dadas em 1990, tornou evidente que o objetivo do Ocidente era ver a
Rússia removida de qualquer papel geopolítico significativo.
(154) Dado que para os EUA a existência de um nação com
paridade militar é algo inaceitável. (192) Neste sentido Hillary
Clinton comparou Putin a Hitler. (96)
Os EUA permanecem no geral e militarmente uma primeira força
geopolítica, porém crescentemente têm de confrontar-se com
o facto da curta era de proclamada superioridade na guerra moderna terminou.
(188)
A sua visão do mundo é baseada no poder militar. Mas esta
visão está completamente desligada do entendimento das
consequências da guerra e dos recursos necessários. (157) Contudo,
não podemos pôr de parte a hipótese de um cenário
suicida dos EUA, tentando comprometer a China e a Rússia numa guerra que
se convenceriam ser um cenário convencional. (172) O perigo reside na
iliteracia militar dos neoconservadores e a sua total alienação
da realidade estratégica. (175)
A sua postura militar acabou por contribuir para a bancarrota moral e
económica da nação. Através de uma série de
mal concebidas e largamente falseadas aventuras militares, os EUA expressaram
dramaticamente os limites da sua capacidade. Excetuando uma guerra nuclear os
EUA não podem derrotar a Rússia ou a China nas suas
vizinhanças geográficas. Além de que devido à
evolução da tecnologia militar, deixou de ser impossível
levar os cenários de guerra para os próprio território dos
EUA. (207)
Se os EUA tivessem superioridade militar convencional não recorreriam
à opção nuclear, com o abandono do tratado IRNF
(Intermediate Range Nuclear Forces), encetando uma perigosíssima corrida
às armas.
Uma escalada militar descontrolada pode levar a um muito perigoso ponto de
partida nuclear para os EUA salvarem a sua própria
reputação, cada vez mais reduzida. Isto poderia acontecer em caso
de guerra com o Irão, se um porta-aviões dos EUA fosse atingido
ou os EUA tivessem de enfrentar outra humilhação como na
Síria, ou mesmo em relação à Ucrânia ou
à Coreia do Norte. (211)
A mais importante tarefa atual é portanto evitar por todos os meios
qualquer possibilidade desta autoproclamada ilusão de
"nação excecional", levar o mundo à
destruição global pela frustração com que a sua
própria fraqueza fosse subitamente exposta. (213)