A atualidade de Marx face à financeirização: capital
fictício, divida e juro
por Daniel Vaz de Carvalho
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O idiotismo do mundo burguês não pode ser melhor descrito do que
pelo respeito que a "lógica" do milionário essa
aristocracia de esterqueira infunde
[1]
(479)
O banco e o crédito tornam-se o meio mais poderoso para impelir a
produção capitalista para além das suas barreiras
próprias e um dos veículos mais eficazes das crises e da vigarice
(684)
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1 Capital fictício e especulação
2 Financeirização
3 Divida e juro
4 A resolução do capital fictício pela austeridade
Em defesa das suas falácias a social-democracia declarou Marx
desatualizado e quem isto contesta corre o risco de se tornar suspeito de
"estalinismo". Marx não esteve nem está desatualizado e
se numa sociedade futura análises em "O Capital"
poderão não se aplicar, nem por isso o
materialismo-dialético deixa de ser válido.
A financeirização, o neoliberalismo, não passa de um
abastardamento do liberalismo do século XIX, num processo para salvar o
capitalismo das suas insanáveis contradições. As teses de
Marx no Livro III, tomo VII, de "O Capital", são uma base
fundamental para a compreensão dos processos capitalistas atuais e neste
particular as políticas da UE e do euro.
1 Capital fictício e especulação
Na formação do capital fictício, o capital aparece como
fonte misteriosa e autocriadora de juro, como fonte do seu aumento
próprio. É como um feitiço automático em que o
valor se valoriza a si próprio, dinheiro procriando dinheiro. (440)
Em D D' temos a forma desprovida de conceito, a
mistificação do capital na sua forma mais aberrante. Para a
Economia vulgar que quer expor o capital como fonte autónoma de valor
esta forma é naturalmente aquilo que convém, uma forma em que a
fonte de lucro já não é mais reconhecível, e em que
o resultado do processo capitalista de produção - separado do
próprio processo - recebe uma existência autónoma. (441)
Perde-se assim até ao último vestígio toda a
conexão com o processo real de valorização do capital. O
capital aparece como um autómato que se valoriza a si próprio.
(531)
Nas crises o capital fictício fica enormemente reduzido. A
redução dos nominativos em dinheiro destes títulos de
valor no boletim de cotações nada tem que ver com o capital real
que representam, mas pelo contrário muito a ver com a capacidade de
pagamento dos donos dele. (560)
Porém, com o estouro destas bolhas de sabão de capital-dinheiro
nominal
(capital-fictício)
a nação não ficou um cêntimo mais pobre.
A acumulação do capital-dinheiro não é
senão uma acumulação do preço de mercado do valor
do capital ilusório. (533)
A maior parte do capital de banqueiro é portanto puramente
fictício. Além disto este capital fictício de banqueiro em
grande parte não representa capital dele, mas capital que o
público depositou nele, com ou sem juros. (534)
Com o desenvolvimento do capital portador de juro e do sistema de
crédito todo o capital parece duplicar-se e por vezes triplicar-se
através de diversos modos pelos quais o mesmo capital ou também
apenas título de dívida aparece em diversas mãos sob
diversas formas. (535) É o que ocorre com os chamados "produtos
derivados".
Porém, como normalmente acontece pouco antes das crises estourarem: os
"economistas vulgares" na terminologia de Marx, incorrem na
ilusão do capital fictício "felicitando-se reciprocamente
pelo florescimento e boa saúde dos negócios" até que
de repente acontece o desmoronamento. (550) Contudo, quer o êxito quer o
fracasso desta situação conduzem simultaneamente à
centralização dos capitais e portanto à
expropriação a uma escala mais enorme. (498)
2 Financeirização
O objetivo da financeirização é transformar o
usurário no único capitalista e o seu capital no único
capital. (583) O sistema de crédito tem o seu centro nos bancos
alegadamente nacionais e nos grandes emprestadores de dinheiro usurários
à volta deles. Dá a esta classe de parasitas um poder fabuloso
que não só dizima periodicamente capitais industriais mas
também intervém do modo mais perigoso na produção
real. Este bando não quer saber da produção real,
não tem nada que ver com ela. (617)
Marx antecipa neste contexto Keynes: A economia esclarecida procurava inculcar
precisamente que dinheiro não é capital. Esta economia de
banqueiros procura inculcar que de facto o dinheiro é o capital por
excelência. (525). A massa de capital-dinheiro emprestável
não é ela própria uma massa de capital reprodutivo. (572)
A desregulamentação financeira aumenta a concorrência e
daqui ativos financeiros de má qualidade mas que momentaneamente
apresentam mais lucro. Como se recusa a noção de capital
fictício a crise é inevitável. A ilusão do capital
fictício funciona como um alucinogénio da ganância,
só que depois da euforia vem a ressaca da crise que os trabalhadores e o
povo em geral têm de pagar para o sistema se manter
é o
"risco sistémico". Declarada intocável a finança
torna-se à conta da especulação sobre capitais
fictícios senhora absoluta dos nossos destinos. Desta forma, está
colocado aos povos o dilema entre soberania e dependência da usura.
Tudo aquilo que traz facilidades ao negócio traz facilidades à
especulação
(e à corrupção)
ambos estão em alguns casos tão perto que é
impossível dizer em que ponto preciso começa o negócio e
começa a especulação (459)
[2]
O grande capital concentrando-se em oligopólios, substitui-se à
concorrência do mercado. É a supressão do modo de
produção capitalista no interior do modo de
produção capitalista. Reproduz uma nova aristocracia de
finança, uma nova espécie de parasitas, todo um sistema de
vigarice e de fraude. É a produção privada sem o controlo
da propriedade privada. (496/497) Tenta-se expor como idênticos os
interesses do capital-dinheiro e do capital industrial quando a lei
bancária está calculada para explorar a diferença desses
interesses para vantagem do capital-dinheiro. (582) E é assim que esta
ninhada de jogadores cresce. (579
Os sistemas de crédito apresentam um carácter dual: por um lado
mola propulsora da produção capitalista para desenvolver o
enriquecimento através da exploração do trabalho alheio no
mais puro e colossal sistema de vigarice e para limitar cada vez mais o
número dos poucos que exploram a riqueza nacional; por outro lado
porém, a mola propulsora para formar a transição para um
novo modo de produção. (500)
3 Divida e juro
Marx aprofunda a questão das dívidas de Estado. A dívida
pública aparece como uma armadilha, pois enquanto existir
capital-dinheiro, como capital dinheiro ele tem sempre de voltar a ser
emprestado. (417) O sistema de endividamento público é uma
necessidade dos credores, representa a possibilidade de emprestar capitais por
tempos perpétuos dado que enquanto se encontrar na mão dos
capitalistas não lhes traz nenhuns juros e não opera como
capital. (416) Que a poupança nacional apareça como lucro privado
não choca nada os economistas burgueses uma vez que o lucro em geral
é a apropriação do trabalho nacional. (614)
No sistema criado, o Estado é forçosamente obrigado a
endividar-se para as suas despesas correntes, devido às
distorções da fiscalidade e às
privatizações. Assim, a classe de banqueiros está sempre
à espreita de comprar títulos do Estado garantidos, como forma de
transformar capital fictício em juro. O resultado é a austeridade
predatória.
A acumulação de capital de dívida do Estado não
significa mais que o aumento de uma classe de credores que estão
autorizados a levantar para si certas somas sobre o montante dos impostos (541)
Porção retirada aqueles que produzem para ser dada aos credores.
(Sismondi) (542) Através dos empréstimos o usurário
adquiriu para si o título de propriedade das condições de
trabalho, etc. (671) E nisto se resumem a austeridade e as "medidas
estruturais".
A dívida pública permanece um capital fictício. A soma que
foi emprestada ao Estado em geral não existe mais. Ela nunca esteve em
geral destinada a ser despendida como capital e apenas pelo seu investimento
como capital teria podido ser transformada num valor que se mantém. Por
mais que estas transações se possam multiplicar a partir do
momento em que se tornem invendáveis a aparência desse capital
desapareceu. (529) Mas que uma coisa possa por fim destruir a sua
própria causa só é um absurdo para o usurário
enamorado da taxa de juro alta. (479)
Compreende-se que a renegociação da dívida (juros, prazos
e montantes) seja algo que o sistema não aceita. A prioridade é
proteger os usurários e isso parece-lhes justo, pois "o conceito
é justo desde que corresponda ao modo de produção, lhe
esteja adequado. É injusto desde que o contradiga." (381) O social
é portanto preterido em relação aos interesses financeiros.
Uma das razões da disfuncionalidade do capitalismo consiste em
considerar que títulos de dívida são dinheiro, não
distinguindo entre capital que pode criar valor e dinheiro não capital.
Uma acumulação de dívidas aparecer como uma
acumulação de capital mostra a deturpação que tem
lugar no sistema de crédito. (542)
Qualitativamente considerado o juro é mais-valia que a mera propriedade
de capital fornece, que o capital em si rende apesar dos possuidores
permanecerem fora do processo de produção: mais-valia que
portanto o capital rende separado do processo de produção. (423)
Pressupondo um dado lucro médio, a taxa de lucro do empresário
não está determinada pelo salário, mas pela taxa de juro,
Ela
(a taxa de lucro)
é alta ou baixa na relação inversa desta. (426)
Acrescente-se ainda uma realidade que o grande capital esconde, mas que os MPME
bem conhecem: o juro é uma relação entre dois capitalistas
não entre capitalista e operário, a oposição entre
capital e trabalho é remetida para além do processo de
exploração a saber: para o capital portador de juro em que o
capitalista que funciona apenas executa outro trabalho que o operário.
De tal maneira que o trabalho de explorar e o trabalho explorado, ambos
enquanto trabalho são idênticos. (429) Ou seja, a usura explora um
modo de produção dado, não o cria, procura mantê-lo
para o poder explorar sempre de novo". (686, 687)
Marx mostra-nos assim a verdadeira natureza lucro financeiro: uma
dedução à mais-valia e simultaneamente
apropriação de uma parte do juro de poupanças alheias.
(569) E mais, a taxa de juro é desprovida de lei, a sua
determinação é puramente arbitrária. (399) De
facto, à arbitrariedade das agências de rating ao serviço
dos usurários.
4 A resolução do capital fictício pela austeridade
Os "quantitative easing" na UE e nos EUA são medidas
desesperadas e absurdas para tentar deter os danos das
políticas neoliberais. Os objetivos são incongruentes: impedir os
Estados de terem estratégias próprias, reforçar a
finança especuladora, promover a usura à custa das contas dos
Estados. Apenas mostra o desajuste do sistema relativamente às
necessidades produtivas e sociais. Por detrás disto, está a baixa
tendencial da taxa de juro e a tentativa de a contrariar pelo aumento da
exploração e o crescimento do capital fictício e
usurário.
Com a austeridade, a loucura do modo capitalista de representação
das coisas atinge o seu cume: em vez de explicar a valorização do
capital a partir da exploração da força de trabalho ser
inversamente a força de trabalho, um capital portador de juro. (530)
Aqueles que dizem que existe uma falta de capital ou falam meramente daqueles
trafulhas do crédito que estão postos agora em
circunstâncias que já não podem obter mais capital alheio
para com ele laborar e que exigem que o banco
(na UE o BCE e os governos)
os ajude não só a pagar o capital perdido mas que os habilite
à continuação da vigarice. São doidos que creem que
é obrigação do banco e que está no poder dele
transformar através de papelinhos todos os capitalistas na bancarrota em
capitalistas sólidos e solventes. (583)
Isto pode ser levado ao extremo através de uma legislação
falsa repousando sobre teorias falsas acerca do dinheiro e imposta à
nação pelo interesse dos negociantes do dinheiro. (584) Nenhuma
espécie de legislação bancária pode eliminar a
crise. (555)
Enquanto o carácter social do trabalho aparecer como existência em
dinheiro das mercadorias e por conseguinte como uma coisa fora da
produção real as crises de dinheiro são (independentemente
ou como agudização das crises reais) inevitáveis. (584)
O descalabro que o sistema financeiro atingiu na UE (vejam-se os casos da
Itália, Espanha e também da Alemanha) não tem nada de
misterioso e inevitável. O marxismo não apenas explica as causas
como aponta as soluções. Que se desenganem, portanto os que
julgam que as crises podem desaparecer com as "reformas" da
social-democracia e suas ilusórias "alterações"
às regras da UE e do euro.
[1] Marx,
O Capital, Livro Terceiro, Tomo VII
, Ed. Avante, 2016. Os números entre parêntesis designam
páginas relativas aos textos referidos.
[2] Marx cita J.W. Gilbert em
The history and principles of banking,
Londres, 1834.
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