Assim vai o mundo: Para onde?

Daniel Vaz de Carvalho

Queda da Babilónia, de Gustave Doré.

Multipolaridade

Para onde vai o mundo? Podemos dizer: já foi… Os conflitos na Ucrânia e de Israel, mostram que a hegemonia global é uma ilusão desvanecida. Tentar recupera-la conduzirá o mundo a uma Terceira Guerra Mundial.

A proliferação de bases militares dos EUA e 13 porta-aviões, símbolos da sua força, tornaram-se fragilidades do seu poder. A Ucrânia é um problema para o qual ocidente não tem solução consistente. Israel, representante dos interesses ocidentais no Médio Oriente, arrasta os seus mentores e financiadores para conflitos que não só põem em causa as estratégias e interesses globais dos EUA como evidenciam a desorientação, impotência e inoperância dos sistemas do hegemónico.

Desde 2014 que o processo da multipolaridade se aprofunda. Cada vez mais países perceberam e agem no sentido em que nada de positivo se pode esperar do ocidente, liderado pelos EUA, que abusa da sua posição de preponderância baseada sobretudo no dólar.

Depois de várias guerras promovidas pela NATO, a da Ucrânia marcou definitivamente a divisão do mundo em blocos cujo antagonismo cresce. A par do ocidente coletivo estrutura-se o bloco baseado na Rússia e na China cujas relações se alargam nos vários continentes. É sintomático, que a Rússia tenha considerado no CS da ONU que não se justificavam sanções à RPDC, desenvolvendo com este país parcerias em todas as áreas incluindo militares.

A recusa de qualquer excecionalidade de um país sobre outros, evidencia-se nas declarações de responsáveis russos. Diz Putin: “O mundo passa por uma transformação fundamental. A principal tendência é que o antigo sistema unipolar seja substituído por uma nova ordem mundial multipolar, mais justa. Isto já se tornou absolutamente óbvio para todos. Não importa o que alguém queira, a nossa atividade nos assuntos mundiais só aumentará e a Rússia terá uma série de funções importantes de política externa a cumprir”.(https://t.me/geopolitics_live/, Telegram, 04/12)

A filosofia da multipolaridade, tem sido definida pela Rússia em várias iniciativas com larga participação internacional. Em janeiro no Fórum Multipolaridade, Putin definiu-a como uma filosofia alternativa, baseada na ideia de que o ocidente não é a única civilização neste planeta, mas apenas uma entre muitas, que a multipolaridade não é anti-ocidental, mas sim contra a presunção de universalidade e excecionalismo do ocidente, que os ocidentais comuns também são vítimas do sistema globalista.

Segundo Putin: “Desde o colapso da URSS, os detratores querem desmembrar a Rússia e subjugá-la.” (Geopolítica ao vivo – Telegram 02/04) Numa entrevista, afirma: o ocidente só aceita a Rússia na "família dos povos civilizados" dividida em partes e estabelecendo controlo sobre os seus fragmentos. A Rússia é contra um mundo no interesse de apenas um país – os Estados Unidos. Dirigindo-se aos participantes do fórum internacional "Pela Liberdade das Nações" em Moscovo, Putin, afirma: "O neocolonialismo é um legado vergonhoso da era secular de pilhagem e exploração dos povos da África, Ásia, América Latina e outras regiões do planeta. Vemos hoje as suas manifestações agressivas nas tentativas do ocidente manter o seu domínio e supremacia por qualquer meio, para subjugar economicamente outros países, privá-los de soberania e impor valores e tradições culturais estrangeiras." (https://t.me/geopolitics_live/, Telegram, 26/02)

A tentativa canhestra de isolar a Rússia não funcionou. No final de 2023, Putin viajou até ao Médio Oriente tendo reuniões na Arábia Saudita, Emirados e Irão, reconhecido como líder geopolítico à frente de um país económica e militarmente forte. Pela sua reeleição, considerada ilegal no ocidente, as felicitações vieram de dirigentes de todos os continentes: da Nicarágua ao Myamar, da Líbia ao Afeganistão. Moscovo reforça as relações com os países africanos. Apoiados pela Rússia, Mali, Burkina Faso e Níger criaram uma aliança político-militar, a Aliança do Sahel, expulsando os soldados franceses.

Seria bom que na UE se atentasse nestes factos e na displicência das palavras de Lavrov: “as únicas negociações reais sobre o destino da Ucrânia só podem ser com os Estados Unidos; as negociações com marionetas são tão sem sentido como os acordos de Minsk. No Fórum Internacional da Exposição da Rússia, Lavrov atacou fortemente os EUA: “Os métodos utilizados pelos Estados Unidos e seus aliados estão semeando o caos em várias regiões do mundo, alimentando conflitos entre países e povos, exacerbando tensões inter-religiosas e inter-étnicas. O Ocidente acostumou-se a resolver seus próprios problemas às custas dos outros e explorando os seus recursos.” (https://t.me/geopolitics_live/, Telegram, 06/11)

Estas citações mostram:
1 – A fratura em dois blocos com filosofias geopolíticas e de relações internacionais completamente distintas.
2 – O total fracasso dos objetivos dos EUA, UE/NATO de isolar a Rússia.
Mostram também uma forma de pensar e agir, muito alinhada com a China que obteve eco global, dando consciência às ex-colónias ocidentais que o ocidente não representa a maioria mundial.

Embora o hegemónico lute desesperadamente contra a realidade dos factos tentando manter as suas ilusões, mesmo em termos económicos o ocidente perde proeminência: os dez portos marítimos mais movimentados estão no Oriente, sete dos quais na China, os restantes na Coreia do Sul e Singapura. Por exemplo, a China está prestes a conquistar o título de maior exportador de automóveis do mundo, prevendo-se 5 milhões de veículos exportados este ano.

Expressão da realidade multipolar são os BRICS dos quais fazem parte desde janeiro o Irão, Etiópia, Egito, Arábia Saudita e Emirados, representando 35% do PIB, ultrapassando o G7. Ao que consta, mais de 30 países manifestaram forte interesse em estabelecer uma cooperação estreita com as nações BRICS. Os BRICS têm desenvolvido relações comerciais sem dólares e está em estudo a criação de uma moeda própria.

Tudo isto ocorre pela inconsistência de políticas sem o mínimo de (pre)visão:   o exagero – e falhanço – das sanções fez com que muitos países vissem que as relações económicas e financeiras com o ocidente estão dependentes do alinhamento com as políticas dos EUA, podendo em qualquer momento serem alteradas caso aquele alinhamento não seja total quando requerido.

A par dos BRICS desenvolve-se a Organização de Cooperação de Xangai (OCX) com relações económicas mas também de coordenação entre os ministérios da Defesa e as forças armadas dos Estados membros com exercícios conjuntos destinados a melhorar as capacidades para repelir “ataques em grande escala de terroristas internacionais”. Desenvolvem-se também as relações dos países do Conselho Económico da Eurásia e está em curso uma maior ligação entre os BRICS, OCX, e a sua integração com a Organização de Unidade Africana, Liga Árabe, ASEAN.

O triunfalismo dos “comentaristas” que falavam do isolamento da Rússia da “comunidade internacional” tomando desejos por realidades, desvaneceu-se. Ocorre o contrário, ex-aliados e países neocolonizados afastam-se das políticas inconsequentes dos EUA, interessados em alcançar efetiva soberania. Além de lhe caber este ano a presidência do BRICS, a Rússia realizou várias conferências sobre multipolaridade e uma segunda reunião do Movimento Internacional de Russofilia, iniciativas visando contrariar a agenda unipolar e as ameaças de guerra.

Claro que o poder económico da China, aliado ao potencial tecnológico, industrial e militar da Rússia (herdado da URSS) bem como a proposta de relações comerciais abertas e mutuamente vantajosas, independentemente do sistema político de cada país, torna-se extremamente atrativo face ao que o ocidente tem para oferecer, via FMI, BM, transnacionais predadoras.

Verifica-se que os EUA e a UE/NATO apenas estavam preparados para ameaçar ou atacar nações pobres e relativamente indefesas. Mesmo assim os resultados foram lastimáveis. Os confrontos atuais puseram a nu a situação de fragilidade militar da NATO. Devido a avarias um dos dois porta-aviões britânicos, o Prince of Wales, não partiu para os exercícios militares da NATO. A frota de bombardeiros estratégicos B-52 dos EUA está envelhecida e falta dinheiro para a atualizar ou substituir. Com um orçamento de 886 mil milhões de dólares, cerca de 40% de todas as despesas militares mundiais, os EUA não dispõem de misseis hipersónicos equivalentes aos da Rússia ou da China, o F- 35 é inferior ao projetado e ao que estes adversários dispõem.

Relatório da Oxfam.

Tudo isto é ignorado pela opinião pública. Uma alienação que permite que as lideranças da UE tenham atingido o cúmulo da inoperância. Tão prolixos relativamente à Ucrânia, não se conhece qualquer política definida relativamente aos BRICS. Os media funcionam como que aplicando uma redoma impedindo a visão do que realmente se passa no mundo, sempre numa perspetiva de “nós” e os “outros” contra “nós”. Mas olhando para os relatórios da OXFAM percebe-se quem são os “outros” contra “nós”:   a oligarquia.

No final de 2022, os propagandistas estipulavam que as armas da NATO iam tornar a guerra insuportável para a Rússia. Com as sanções, a economia russa sufocava. Um ano depois, os mesmos falam de tempos difíceis, da possibilidade de uma agressão russa aos países da UE/NATO e... de aumentar as despesas militares.

As muitas dezenas de milhares de milhões de dólares de equipamento militar estão em grande parte destruídas no terreno, dos HIMARS aos Patriot, dos Leopard e Bradley aos Abrams. A arrogância imperialista e o servilismo dos vassalos europeus subestimaram totalmente a Rússia em equipamentos, estratégia militar, recursos, capacidade industrial e científico-técnica.

As técnicas de propaganda do mundo unipolar, refinadas ao longo do tempo, afirmam a superioridade e excecionalidade dos EUA e a aplicação global das “regras” que define. A repetição incessante desta ficção criou no ocidente a sua aceitação passiva, contudo desmascarada pelas ações no Afeganistão, Líbia, Síria, Ucrânia ou genocídio de Gaza. Lembremos a demonização de Kadafi, Assad ou do Irão. Putin passou a criminoso ao expor o não respeito pelos compromissos dos EUA na expansão da NATO para leste e por defender os ucranianos russos étnicos dos ataques dos neonazis ucranianos.

Apesar de desacreditadas – e falhadas – as “revoluções coloridas” prosseguem em países com governos indesejáveis para o império, propagandeadas como processos democráticos e contra a corrupção (geralmente levada a cabo por corruptos). Mas nos EUA a situação está longe de ser estável, com o país dividido e o separatismo a crescer em Estados como o Texas, Califórnia, Alasca, Havai.

Afirma Larry Johnson, ex-agente da CIA:   “Aqui nos Estados Unidos temos, provavelmente, mais de 200 presos políticos, pessoas que foram detidas, muitas detidas sem acusação, durante longos períodos de tempo em confinamento solitário, pelo simples facto de terem entrado no Capitólio em 6 de janeiro 2021. ( https://t.me/geopolitics_live/, Telegram, 01/02) Isto, não falando em Assange e outros, nem nos   680 que permanecem em Guantánamo sem julgamento.

Aqui e agora

Portugal tem uma Constituição que a direita detesta. O PS embora não a cumpra no que é efetivamente de esquerda e tenha acompanhado a direita nas mudanças para favorecer o grande capital, com alguns pruridos democráticos tem resistido às pressões para a subverter totalmente.

Assim, conforme estipula o Art. 7º Relações internacionais:

1 – “Portugal rege-se pela solução pacífica dos conflitos internacionais e não ingerência nos assuntos internos dos outros Estados e da cooperação com todos os outros povos para a emancipação e o progresso da humanidade”.
2 – Portugal preconiza a abolição do imperialismo, do colonialismo e de quaisquer outras formas de agressão, domínio e exploração nas relações entre os povos, bem como o desarmamento geral, simultâneo e controlado, a dissolução dos blocos político-militares e o estabelecimento de um sistema de segurança coletiva, para uma ordem internacional capaz de assegurar a paz e a justiça nas relações entre os povos. 3 – Portugal reconhece o direito dos povos à autodeterminação e independência e ao desenvolvimento, bem como o direito à insurreição contra todas as formas de opressão.
5 – Portugal empenha-se no reforço da identidade europeia e no fortalecimento da ação dos Estados europeus a favor da democracia, da paz, do progresso económico e da justiça nas relações entre os povos.

Para cumprir a Constituição, Portugal deveria ter proposto a aceitação da proposta da Rússia em 2021 para o estabelecimento de um sistema de segurança coletiva na Europa, propor negociações como solução para o conflito na Ucrânia, quando pelo contrário nos media e na AR os que tal posição adotaram foram desde logo caluniados de “putinistas”. Deveria também apoiar o direito do Hamas à insurreição.

É pois anticonstitucional a transferência de dinheiro do Estado para a Ucrânia em vez de insistir em negociações de paz. Ao preconizar a abolição do imperialismo, Portugal deveria apoiar decididamente a multipolaridade geoestratégica. Deveria progressivamente tomar medidas concretas para a saída da NATO e afastar-se das suas iniciativas de confronto; aceitar a independência e autodeterminação dos povos do Donbass; não alinhar em sanções ilegais (fora do âmbito do CS da ONU) contra a Rússia, China, Irão, Cuba, Venezuela, etc.

Como a Constituição não é cumprida no que respeita às relações internacionais, Portugal alinha de forma subserviente com as políticas agressivas que vigoram na UE/NATO. Afirma a Von der Leyen: "A despesa europeia com a defesa tem de ser acelerada", tal como a guerra não é uma coisa do passado na Europa, a cooperação em matéria de defesa deve ser a marca do futuro (?!) na Europa".

Portanto, o que estes “democratas liberais” pretendem é colocar a guerra acima das necessidades sociais, sem explicitar, se é que fazem alguma ideia, o que isso implica em termos financeiros, industriais, tecnológicos, prazos. Assim para combater uma imaginada invasão russa, a visão que preside a este esforço de investimento e sacrifícios sociais e criar umas imaginárias “forças armadas europeias”, parece ser continuar a criar tensões nas fronteiras russas e ir combater para a Ucrânia, pois “a Rússia não pode vencer”, dizem.

Em Portugal, em lugar de ir a reboque dos interesses que comandam a UE/NATO deveria discutir-se a estratégia para o desenvolvimento das suas Forças Armadas, depois da política de direita ter desmantelado tudo ou quase tudo do sector industrial militar. Deveria, sim, definirem-se as necessidades das FA para a manutenção da ordem constitucional, da soberania terrestre e marítima, da cooperação com os PALOP, sem esquecer adequadas remunerações dos efetivos.

A sociedade humana está enfrentando uma "escolha de vida ou morte", diz a China:   entrar num ciclo vicioso de confronto e divisão contínuos ou procurar um caminho de cooperação mutuamente vantajosa, permitindo que as pessoas tenham uma vida melhor. O bloco liderado pelos EUA tornou-se o maior obstáculo para a construção deste objetivo.

Quanto ao futuro que nos estipula Washington, é o de a NATO – portanto nós, também – entrar em guerra com a Rússia se a Ucrânia perder, como se a Ucrânia já não estivesse derrotada, tratando-se desde 2014 de uma guerra da NATO em meios materiais, com meios humanos (sobretudo mercenários) ainda de forma reduzida. A justificação, é que a Rússia vencendo, iria continuar a agredir outros países, atribuindo assim a outros as suas próprias intenções, como se tem visto noutros casos. Quando Blinken assegura que “a porta da NATO permanece aberta para a Ucrânia, que se tornará membro da NATO”, será que não entende que isso equivale a iniciar a 3ª Guerra Mundial?

É evidente que a Rússia não tem potencial militar para invadir a Europa a ocidente, mas tem no seu arsenal estratégico meios para dissuadir qualquer agressão em larga escala, incluindo armas para as quais os EUA não têm defesa – muito menos a UE/NATO – como os hipersônicos Zircon, Kinzhal, Avangard, o drone submarino nuclear Poseidon, o míssil de propulsão nuclear Burevestnik, o Sarmat e aviação avançada. Que pretendem afinal, quando a Rússia e a China desenvolvem parcerias com o Irão e a RPDC incluindo na área militar?

Ou compreendemos o papel de Pequim como um novo polo multipolar, visto que se tornou a maior economia global em termos de PPP, a maior economia comercial e industrial, estando na vanguarda da Quarta Revolução Industrial e alinhamos de forma soberana com o seu modelo de cooperação mutuamente vantajosa ou alinhamos sem soberania na ordem unipolar de guerras e revoluções coloridas.

"A cooperação global é fundamental para abordar as questões das elevadas dívidas, dos conflitos, da fragmentação do comércio e da insegurança alimentar", diz-se numa análise do Banco Mundial. Os conflitos na Ucrânia, em Gaza, e Médio Oriente, são uma ameaça ao crescimento. As sanções à Rússia aumentaram os preços da energia em todo o mundo, prejudicando as economias europeias em particular. Conforme o relatório verifica, 2024 provavelmente concluirá a meia década mais lenta de crescimento económico em 30 anos, comprovando afinal que no mundo unipolar a cooperação só funciona num sentido: o da oligarquia transnacional.

Escrevia Paul Edwards, escritor e cineasta norte-americano:   “É intrigante imaginar que grandes avanços poderiam vir para o povo se o Estado fosse administrado em seu benefício. Mas isto, é claro, nunca acontecerá sob o capitalismo imperial”.

É um facto, e para que esta situação não se altere os media encarregam-se de garantir que uma maioria de pessoas votem contra si próprias, alienadas pela propaganda da direita e extrema-direita.

16/Abril/2024

A primeira parte encontra-se em:
  • Assim vai o mundo: As guerras
  • Este artigo encontra-se em resistir.info

    17/Abr/24