Reindustrializar
dizem eles
por Daniel Vaz de Carvalho
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Deixai-os, são cegos conduzindo outros cegos. E quando um cego conduz
outro cego ambos cairão nalguma cova.
Mateus, XV 14.
Sabeis como dividir átomos, como enviar exploradores à Lua, como
manipular genes, mas não sabeis como deveriam viver as pessoas. (
)
Não será tanto uma questão de saber o que deve ser feito.
Será antes uma questão de tomar partido.
Daniel Quinn, Ismael, Como o mundo veio a ser o que é.
Causas do erro no conhecimento científico, segundo Roger Bacon (1214
1294):
autoridade, costume, opinião corrente, dissimulação da
ignorância.
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1 A CRÍTICA
É sabido como o peso da Indústria no PIB decresceu nas
últimas décadas. Em 1985 representava 27,9% do PIB, em 2012,
13,8%. O mais espantoso é que isto era apresentado como um êxito
pelos farsantes do costume, era a sociedade do conhecimento e das "novas
tecnologias". Agricultura e indústria, atividades tradicionais a
serem em geral abandonadas. A grande farra da especulação, do
endividamento, das privatizações e da flexibilidade laboral, que
trariam crescimento e emprego, fundamentava as ideias propaladas pela gente que
levou o país ao descalabro.
Pois bem, perante a crise surgida, reinventa-se o reindustrializar
mais adequado seria "desenvolvimento industrial", mas disto nos
ocuparemos noutro texto. Ministros, e seu coro de exegetas abordam o tema,
periódicos procuram trata-lo e no seu número de setembro-outubro,
a
Ingenium
, revista da Ordem dos Engenheiros, inseriu extensa lista de opiniões de
destacadas personagens. Em 20 títulos contam-se: sete presidentes de
instituições ou equivalente, nove administradores, diretores ou
equivalente, professores universitários, além do ministro Poiares
Maduro.
Dizia Paul Craig Roberts
[1]
que à repetição de ecos (ecolália) chama-se, nos
tempos que vão correndo, debate. Os textos que encontramos acerca do
tema, salvo raras exceções, não se afastam disto.
São a repetição monocórdica do que é dito
há dezenas de anos, com os resultados que são conhecidos.
Fala-se em exportar mais e criar condições para o investimento
estrangeiro. São opções que desprezam o mercado interno e
se baseiam na redução de salários e direitos laborais para
ter competitividade.
De tanto se repetir o "exportar mais" já era tempo de se dizer
o quê, quanto e como para a resolução dos problemas
nacionais, porém parece que não se faz ideia ou se prefere
esconder os problemas, as dificuldades, os investimentos
necessários à exportação, os constrangimentos, a
reduzida margem de lucro obtida.
O mesmo se aplica à necessidade de
"internacionalização das empresas". Até agora
tem quase exclusivamente representado a descapitalização do
país, o sediar de mono e oligopólios em paraísos fiscais
ou, internamente, a compra de ativos nacionais em monopólios ou em
empresas que mais tarde são deslocalizadas apesar dos
"incentivos" fiscais e outros recebidos.
O erro da miopia neoliberal está em que exportação e
mercado interno não são opções, são um
processo único: o desenvolvimento económico não alienado
do social.
Repete-se a litania de atrair investimento. O termo é curioso:
não se trata de negociar, mas de "atrair", vamos lá
pela sedução oferecendo mão-de-obra precária, com
contratação coletiva destroçada por
legislação iníqua e um exército de reserva de
desempregados sem subsídio, em situação de desespero.
É sintomático que se adote uma linguagem que nada tem que ver com
macroeconomia e muito menos com engenharia. É o caso dos
"desafios" e das "apostas". São as
"apostas" nos bens e serviços não
transacionáveis; no saber; na eficiência operacional" (?); na
criação de valor; nos "programas desafiantes" (!); nos
fatores dinâmicos de competitividade (quais?); nas oportunidades de
crescimento. (!)
As apostas são contratos em que quem perde paga, sendo normalmente um
jogo em que o jogador não participa. Trata-se duma fraseologia que
só por seguidismo ou deformação do "pensamento
único" pode ser adotada: um engenheiro calcula, avalia, especifica,
propõe ou decide, realiza.
É recorrentemente proclamada a "inovação" e a
"elevada incorporação tecnológica", mas que
pensar quando se omite a ignominiosa situação a que o atual
governo, agravando a precariedade instituída por anteriores, condena os
chamados bolseiros, na realidade, investigadores seniores e doutorados,
tratados como alunos, com salários de miséria e total
insegurança na vida pessoal e profissional. Quando se ignora a
situação de jovens licenciados, o seu desemprego, os
salários de miséria oferecidos, inferiores aos que eram
praticados há 10 ou 15 anos, conduzindo a essa criminosa hemorragia de
inteligência pela emigração.
Insiste-se na inovação e no conhecimento, em potenciar o sistema
científico, mas ignora-se o drama e a decadência a que as
instituições universitárias estão a ser submetidas,
a redução de efetivos (alunos, docentes e não docentes) e
sua desmotivação.
Esquece-se que as empresas em Portugal estão em concorrência com o
estrangeiro quanto a trabalhadores qualificados. E não se diga que
não há meios, pois a dignidade de um trabalhador pouco ou muito
qualificado não é uma questão de preço.
Aliás, repetidamente se reclamam "incentivos",
"alívio fiscal" e "condições atrativas de
captação de investimento".
Entretanto parece que é necessário "potenciar a
qualificação das pessoas, assim como a sua flexibilidade e
versatilidade". Seria interessante esclarecer-se em que consiste essa
flexibilidade.
Os "clusters" são como que uma palavra mágica,
repete-se há décadas, mas das mãos dos aprendizes de
feiticeiro nada sai. Ora, em vez de se importarem palavras ou conceitos mal
assimilados, devia-se falar em integração vertical da estrutura
produtiva e no adensamento das ligações inter-industriais.
"Clusters", termo permitido na linguística neoliberal,
obscurece as noções de estrutura produtiva (palavra proibida no
neoliberalismo) e de planeamento macroeconómico (noção
odiada pelo neoliberalismo).
Quanto aos bens não transacionáveis, esclareça-se que
nunca se tratou de nenhuma aposta, são o resultado das
privatizações e das concessões (como as PPP) de empresas e
serviços públicos, estabelecendo em consequência um enorme
fator de ineficiência macroeconómica: uma economia dominada pela
finança e por monopólios.
Há propostas que não deixam de ser curiosas, com algo de
risível: "programas de empreendedores e ter um guiché bem
montado para analisar e apoiar propostas desafiantes". Apreciamos o
"guiché bem montado"!
Fala-se em "incentivos positivos aos altamente qualificados como os
doutorados", (!),"aposta na utilização eficiente dos
recursos disponíveis"; "indústria em novos moldes com
uma nova visão" (?), "encontrar e construir um novo papel para
a indústria"; "articulação inteligente e
sustentada"; "eficiência coletiva".
Pretende-se um "Estado facilitador da iniciativa privada" e
"espera-se dos decisores políticos medidas que permitam às
empresas investirem, criar empregos e assegurar-lhes estabilidade e
previsibilidade". Faz-nos lembrar o discurso dos chamados industrialistas
nos anos 30 do século passado, nas suas invocações e
laudatório ao "Estado Novo".
Estes textos representam os pontos de vista da camada dirigente do nosso
país. É como tal que os analisamos. Trata-se de um discurso feito
de lugares comuns, ideias estereotipadas, repetidas há décadas,
disfarçando a realidade com eufemismos, escamoteando as
consequências de uma sociedade em que apenas o lucro pessoal conta como
medida de eficiência. São a repetição de frases
feitas, próprias de sessões de formação para
iniciados, mesmo abaixo do exigível para licenciados.
L. Mira Amaral, F. van Zeller e José Bancaleiro, apresentam algumas
ideias positivas. Mira Amaral, insiste na necessidade de "reindustrializar
o país" num conceito mais vasto de bens e serviços que
consigamos não só exportar mas reduzir em mercado aberto as
importações. Defende um novo programa de apoio á
indústria focado no transacionável, apresentando um conjunto de
medidas concretas de uma maneira geral válidas, como por exemplo a
revitalização dos laboratórios do Estado O problema
é o como, com que políticas? Sabendo-se que as atuais
estão em total contradição com o que é enunciado.
Afirma contudo que "os jovens não querem a proteção
"falsa" (sic) da legislação, querem oportunidades para
mostrar o que valem". É um exemplo típico do discurso
distorcido e fascizante da direita, jogando de forma capciosa com falsos
dilemas.
F. van Zeller, chama a atenção para algumas das principais
fragilidades do sistema produtivo nacional. Não deixa de ser pertinente
lembrar que no que toca às exportações o que interessa
é o valor acrescentado nacional. Não sai no entanto do quadro
ideológico existente, referindo a legislação laboral como
um fator inibidor do investimento. Escapa-lhe que desde há uma
década os direitos laborais têm sido sucessivamente reduzidos em
nome do "crescimento e do emprego". Veja-se onde chegámos. Com
as atuais políticas pouco faltará para o Estatuto Nacional do
Trabalho fascista. Será este o objetivo?
Para José Bancaleiro, as pessoas são sem dúvida um
investimento: "os países com maiores índices de riqueza,
desenvolvimento e felicidade são os que tiveram capacidade de criar uma
sociedade justa que valoriza, aproveita e desenvolve a energia e criatividade
das pessoas". De acordo, porém o que adianta sobre critérios
de gestão, está nos antípodas das atuais políticas
antilaborais, para as quais não exprime qualquer crítica.
Quase sem exceções, os textos são pois confrangedoramente
pobres, desligados da realidade atual e seus condicionamentos. Perpassa uma
ideia central: não chamar as coisas pelos nomes, não incomodar o
poder governante e muito menos o económico-financeiro.
2 - AS CAUSAS
Uma das regras das sociedades decadentes, tal como nos reveses militares,
é que quanto pior as coisas estão menos se deve falar nisso.
Porquê a desindustrialização? A resposta revela o
posicionamento que cada um assume na sociedade.
As causas nada têm a ver com os sofismas dos "custos laborais"
ou "legislação laboral", elas radicam no domínio
da coligação financeira monopolista suportada pelos partidos da
troika interna.
O domínio dos monopólios (os oligopólios são uma
forma mitigada de monopólio) é o resultado da
privatização de empresas e serviços públicos. A
financeirização resulta da incapacidade do capitalismo atual na
sua fase senil criar valor com taxas "atrativas" na esfera produtiva.
Paul Samuelsen foi um intransigente defensor do mercado e da economia liberal,
figura central da chamada síntese neoclássica. Vejamos algumas
das suas posições que se aplicam ao pensamento único
vigente.
Escrevia então: "o laissez-faire não conduz automaticamente
à concorrência perfeita, A fim de reduzir as
imperfeições da concorrência deve uma nação
lutar perpetuamente e manter uma vigilância incessante" sobre
os monopólios, como detalhadamente especifica. (Uma
introdução á Economia, vol. II, Ed. Gulbenkian, p 196)
Acerca do investimento: "as fusões visam não a
eficiência produtiva mas antes o controlo monopolístico dos
preços". (idem, p.189) O que, por maioria de razão, se
aplica às privatizações.
Acerca do investimento público: "o facto do governo poder mobilizar
capitais mais volumosos e mais baratos que a iniciativa privada (
) torna
qualquer simples comparação entre operações
privadas e públicas difícil senão impossível".
(idem,191) Podem dizer que isto era noutros tempos, pois, mas nesse tempo as
indústrias desenvolviam-se, o desemprego era reduzido, os direitos dos
trabalhadores ainda eram reconhecidos.
"A intervenção dos poderes públicos pode reduzir as
imperfeições monopolísticas; melhorar o conhecimento
imperfeito. Aproximar mais os benefícios e custos sociais totais dos
benefícios e custos privados, nesta medida desempenhará o Estado
um papel económico criador". (idem, p.340)
"A pobreza não tem causa real, mas tão só de uma
sociedade monetária intrincadamente mal atuante." (366) Que pensar
então da crescente pobreza na UE e da política do BCE?
Quando tanto se fala em eficiência é estranho que estes aspetos
sejam ignorados. Samuelsen pelas suas transigências como o mercado,
escapou às perseguições do senador McCarthy, mas
não ao totalitarismo neoliberal, acusando-o de simpatias comunistas (!)
e exercendo pressões nas universidades para que a sua
Economics
não fosse adotada.
A financeirização da economia foi o outro fator crucial da
desindustrialização. A visão que sicofantas promovidos a
gurus da gestão difundiram como fator de sucesso empresarial, foi
substituir a visão a longo prazo, própria da indústria,
pelo ganhar o máximo possível no mais curto espaço de
tempo. Os lucros assim obtidos entraram no circuito da
especulação financeira, mesmo quando se tratasse da compra de
ativos existentes. Com estes critérios foi recorrente o fecho de
empresas com encomendas e resultados positivos, pela simples razão que a
taxa de lucro seria superior noutras paragens.
[2]
Aos dramas sociais daqui resultantes os governos e a trupe
propagandística responsabilizaram os direitos dos trabalhadores,
assumidos como privilégios.
Em Portugal, como na generalidade dos países da UE, as
estratégias do euro e da concorrência "livre e não
falseada", contribuíram decisivamente para a
desindustrialização e endividamento.
[3]
Na realidade, só pode haver competição de forma
consistente entre economias equivalentes, caso contrário revisite-se a
fábula da panela de barro e da panela de ferro.
[4]
Os exemplos de países com moedas indexadas a países com
produtividades muito maiores, são conhecidos, sendo casos típicos
a Argentina e o México.
Tirar os instrumentos de gestão do Estado para equilibrar as
finanças públicas, impor critérios que conduzem à
recessão ou estagnação económica, crescente
percentagem do PIB para pagar juros, deixando como margem de manobra reduzir
salários e prestações sociais, passou a considerar-se
modelo de virtude orçamental.
O capitalismo rentista tomou o lugar do investimento produtivo, aniquila a
procura agregada, esmaga as MPME. Quanto mais medidas de incentivos à
"iniciativa privada" e privatizações houve, mais o
investimento se reduziu e o endividamento cresceu.
A finança bloqueia o desenvolvimento, os capitais refugiam-se na
especulação ou em paraísos fiscais, o BCE de forma
inqualificável protege tudo isto como a sua prioridade.
O memorando da troika deve ser lido como "manual para a
destruição de um país".
[5]
Isto mesmo é confirmado pelo chefe da delegação da
troika, que desmente liminarmente as tiradas panglossianas do governo e da sua
propaganda, ao exigir que, qualquer que seja o governo, a austeridade (isto
é, os "cortes") deve prosseguir por mais 10 ou 15 anos. Se os
deixarem, claro
Um plano de desenvolvimento económico e social implica o fim das
orientações neoliberais e da financeirização da
economia, adotando-se uma política antimonopolista, que representa o
retorno ao que mais original havia no projeto do 25 de ABRIL de 1974.
É de facto uma questão de tomar partido: pelo país e pelo
seu povo ou pelos interesses da oligarquia monopolista e financeira.
REFERÊNCIAS
[1] Paul Craig Roberts foi secretário de Estado Adjunto do Tesouro, no
governo de Reagan, editor associado do
Wall Street Journal,
professor de economia em seis universidades, autor de vários livros.
É hoje uma reconhecida voz crítica do neoliberalismo e do
imperialismo dos EUA.
[2] Acerca da engenharia financeira em empresas industriais ver
www.odiario.info/?p=2300
[3] Acerca das consequências do euro e da sua problemática, ver
neste espaço nomeadamente textos de Jacques Sapir, Michael Hudson,
Octávio Teixeira.
[4] Como concluiu LaFontaine: "Nunca se ligue o fraco ao poderoso, mas
somente entre iguais deve procurar companhia, pois o fraco sucumbe sempre ao
forte".
[5] Sobre este tema ver
www.odiario.info/?p=2458
[*]
Engenheiro.
Este artigo encontra-se em
http://resistir.info/
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