4 - Um delírio tecnocrático
O elevadíssimo nível de automação, digitalização, comunicação através de redes informáticas que a “revolução 4 i” pressupõe estava e está muito mal explicado nos seus processos, planeamento e consequências. Contudo, os prosélitos do grande capital exultam, parecem ignorar todo o contexto e viverem num delírio tecnocrático.
O mais grave na tecnocracia é a sua ignorância sobre os processos históricos e sociais. Ignorância no entanto assumida com arrogância perante formas mais abrangentes da cultura – característica tomada de empréstimo ao fascismo. Como regra geral, a tecnocracia manifesta-se de duas maneiras: mais tecnologia representa mais progresso; a tecnologia há de resolver todos os problemas, ou seja, desde que esses problemas não mexam com os objetivos das suas “apostas“ e “desafios”, não há que se preocupar nem com os outros, nem com a própria sociedade a que se pertence, nem com resto do mundo.
A social-democracia alinha totalmente com os critérios tecnocráticos. A luta de classes e a exploração capitalista é substituída pela “qualificação”: uma categoria específica, a profissional, é sobreposta à categoria geral e fundamental: a condição proletária. O que se tem verificado é que dentro do sistema capitalista a melhoria das qualificações tem representado uma maior disponibilidade de força de trabalho mais qualificada, mais barata e com menos direitos. As crescentes desigualdades e insegurança no trabalho (precariedade) são o resultado evidente.
Fixado na competitividade e obtenção de lucros a todo o custo, o delírio tecnocrático é apresentado como grande vantagem para o “consumidor” com oportunidades de inovação, pequenas séries, maior importância dada ao gosto dos clientes, por exemplo em carros topo de gama, equipamentos sofisticados nas habitações e nas cidades tornadas mais funcionais, etc.
A tecnocracia ignora o mundo em que vive. Quem vai habitar as “smart houses”, as “smart cities”, ou vai ter “smart health”? A pobreza, a fome, a falta de condições mínimas de vida, o trabalho semiescravo que atinge milhares de milhões de pessoas tornam-se invisíveis. É chocante que para a tecnocracia não existem pessoas dotadas de vontade e aspirações, nos seus planos são uma espécie de “plasticina” moldada ao sabor de seres superiormente iluminados.
A “revolução 4 i” consistia afinal em mais uma “nova ordem”, com as “regras” exportadas pelos centros imperiais, em que desejos e convicções das pessoas têm de ser adaptados, à lógica e aos objetivos, daqueles centros. Os povos perdem a sua energia interna, perde-se a evidência da construção de um destino comum, livre e independente. Subsiste a hipocrisia e o oportunismo em que valores humanistas e democráticos são instrumentalizados em função daqueles objetivos.
O novo "admirável mundo novo" da tecnocracia ao serviço das oligarquias coligadas, trouxe servidão em vez de democracia e soberania; conspirações, guerras, terrorismos em vez de paz e cooperação entre os povos.
A aceleração do desenvolvimento tecnológico na segunda metade do século XX deu origem a um enorme crescimento do capital fixo investido por posto de trabalho (nos últimos 40 anos do século XX terá sido multiplicado por 10). O que coloca problemas quer económicos, pelos montantes necessários para concretizar a chamada “4ª revolução industrial”, quer sociais pelo desemprego que origina dado que milhões de trabalhadores serão dispensados.
Se o desenvolvimento tecnológico exige trabalhadores mais qualificados também dá origem à desqualificação do trabalho de muitos outros: “Dizem-nos que os trabalhadores a quem a maquinaria torna desnecessários encontram novos ramos em que trabalhar (…) uma massa de trabalhadores expulsos de um ramo industrial não vai encontrar refúgio noutro a não ser com salários mais baixos, piores.” (Marx, Trabalho assalariado e capital)
A tecnologia passa demasiadas vezes por ser politicamente neutra. Não é. A tecnologia é uma questão política central do desenvolvimento e a forma como a ciência e a técnica intervêm no processo produtivo define diferentes ideologias.
A tecnologia pode servir para acelerar e ampliar erros estando dedicada a uma ideologia errada. Mega estruturas empresariais, com milhares de programas informáticos e servidores não impediram as crises capitalistas nem a falência de grandes empresas financeiras às quais a intervenção estatal teve de deitar a mão. O que prova como os sofisticados modelos matemáticos que servem de suporte às teorias económicas vigentes, estão completamente fora da realidade, simplesmente são os que convêm aos interesses do grande capital.
Para se gerar lucro é preciso haver quem compre e a questão é: quem compra produtos à medida que se reduz a força de trabalho? Claro que haverá sempre trabalho passado incorporado nos equipamentos, na configuração dos sistemas, na I e D, na avaliação de aspetos da qualidade. Contudo ou os sistemas da 4 i se destinam a produzir pequenas séries para uma camada restrita que privilegia o luxo dos detalhes e então não é nenhuma “revolução” ou para tornar rentáveis os investimentos gera grandes quantidades, configurando-se então um cenário de sobreprodução, guerras comerciais e tecnológicas, em que grandes transnacionais subsistem num oceano de pobreza e desigualdades, mesmo nos países dominantes.
A tecnologia não levou nem leva à redução das contradições do capitalismo. A ilusão de progresso pela inovação e as “novas tecnologias” em nome da competitividade, são um lugar-comum que ignorando o social apenas serve para mascarar o aumento da exploração e a acrescida instabilidade. O essencial mantém-se: o poder supranacional imperialista com uma burocracia ao serviço da oligarquia, contra a soberania nacional.
Não haja ilusões, em termos capitalistas os países dominantes continuarão a extorquir matérias-primas aos países dominados e a querer explorar ao máximo possível os trabalhadores e as empresas subcontratadas num processo de troca desigual, em que a maior parte do valor acrescentado é captada pela conceção, gestão e comercialização destas atividades, isto é, pelo núcleo transnacional. Assim, embora a produção, a montagem e ensaios sejam das mais importantes fases do processo produtivo, correspondem apenas entre 2% a 5% do valor acrescentado. É esta a sua natureza, é isto que resulta da sua lei fundamental: a maximização do lucro e extorsão de mais-valia.
A tecnologia é mais uma arma do domínio imperialista através das transnacionais que detêm quase que em exclusividade as patentes das tecnologias mais avançadas. A compreensão destes fenómenos ajuda-nos a perceber os mecanismos da troca desigual, acentuados pelas “deslocalizações”, pela “livre circulação de capitais” e pelos dogmas do “livre comércio”. É o que a “economia digital” pretende generalizar e iria agravar.
5 - A ganância de uns e a ignorância de outros
O importante no mundo da globalização neoliberal é que as pessoas não se deem conta da sua real situação, percam a noção de cidadania, dos seus direitos e deveres para com o coletivo, o comum. O cidadão é manipulado por "especialistas em comunicação".
Os propagandistas do sistema apresentam como permanente o que é transitório. Confrontados com a realidade divergem em explicações e procura culpados (sindicatos, funções sociais do Estado, além dos tais casos de trafulhices e corrupção) responsáveis por o “mercado” não poder exercer os seus efeitos “benéficos”.
Com a falácia de “quem cria emprego são as empresas não é o Estado”, em que como axioma empresas públicas não devem fazer parte do tecido económico, com as privatizações o Estado viu-se espoliado de milhares de milhões de lucros anuais, que o grande capital obteve ao desbarato: oligopólios cujos lucros são postos em paraísos fiscais e os gestores recebem remunerações milionárias que os media fazem por ignorar. Na realidade, o que pode criar emprego são as políticas macroeconómicas do Estado orientadas para o desenvolvimento económico e social. Mas o que também impede o emprego e o desenvolvimento é a vassalagem ao imperialismo.
Os fanáticos das "contas certas" – para o social – e do Estado como "boa dona de casa" deixam de fazer contas quando se trata de favorecer a oligarquia – dita "a economia" – e na obediências às sanções imperialistas.
Entre nov/2021 e out/2022, o défice da BC de bens atingiu 30,3 mil milhões de euros (taxa de cobertura 71,7%), dos quais só em produtos agrícolas e alimentares o défice num ano atinge 5,5 mil milhões de euros. Porém, em crescendo, extrapolando os últimos 7 meses vai para os 6,3 mil milhões num ano. (INE - Boletins Mensais de Estatística - novembro e junho de 2022). Quanto à produção industrial, tendo como base 100 o ano de 2015, o índice de produção na indústria transformadora era em outubro de 2022: 96,4. As prioridades não são colmatar estes enormes buracos, mas seguir o que é definido pela UE: uma obscura digitalização da economia ao sabor dos "mercados" e as "energias verdes".
Porém a própria UE está confrontada, via sanções, de prescindir do principal fornecedor em matérias-primas e produtos energéticos baratos, a Rússia, e pressionada para prescindir do seu principal parceiro comercial, a China. É evidente que não é possível qualquer progresso na base de uma pretensa elite que se limita a reproduzir o aventureirismo belicista do centro imperialista.
De forma que a ganância de uns e a ignorância de outros têm expressão nas ilusões tecnocráticas ignorando as contradições que os vários processos capitalistas desencadeiam económica e socialmente.
A formação, mesmo universitária, coloca os quadros científico-técnicos ao serviço do pensamento imperialista dominante em vez de constituírem elementos fundamentais do progresso e participantes na definição e concretização do desenvolvimento económico e social do país.
A visão dos cientistas e técnicos de todas as áreas não pode limitar-se à sua área de especialização, são elos fundamentais nas emergências da erradicação da fome e da miséria na Terra e da redução de impactos ambientais. Como o passado de há muito demonstrou, nenhuma “revolução tecnológica” salva o capitalismo das suas contradições e crises.
Os entusiastas destas “revoluções tecnológicas” do capitalismo não deixam de exigir que seja servida por “pessoal qualificado e flexível” e quem não se adaptar enfrentará “o desemprego e a desigualdade salarial” – como se isso não fosse a consequência direta da sua “revolução. O conceito de segurança no emprego é para ser eliminado: o trabalhador tem de estar preparado para ter horário parcial e enfrentar o desemprego, dizem os que vivem à sombra dos benesses e subsídios vindos da UE e do Estado.
É uma “revolução” que vê a flexibilidade laboral como uma virtude. Para isto não era necessário nenhuma “revolução”, foi desde sempre o objetivo do grande capital. O patronato e os ideólogos da CIP dizem que a relação com o trabalho tem de ser muito diferente do passado e que “os sistemas de segurança social estão desatualizados”.
A liberdade sindical é pervertida pela teoria das "novas relações laborais". Os trabalhadores já não têm real direito de sindicalização. Nos grandes grupos económicos, as tentativas de ativismo sindical são confrontadas com a repressão e despedimentos ilegais. As grandes transnacionais dispõem de quadros especializados na repressão à atividade sindical e pró-sindical e na perseguição aos ativistas. Os países enfrentam sempre a ameaça de deslocalização das empresas transnacionais se a atividade sindical as afetar.
A maior dificuldade para os seus planos é portanto o sindicalismo de classe. Não admira por isso que reacionários de todos os matizes defendam o "investimento estrangeiro" e ataquem o investimento público. A emancipação do proletariado era insuportável, havia que acabar com a unidade das camadas proletárias e liquidar a classe operária. Por detrás dos pomposos encómios propagandísticos tudo se resume a pagar menos e despedir mais facilmente. Por outras palavras: sacrifiquem-se para que os mais ricos sejam cada vez mais ricos.
De facto, por este lado, a sua “revolução” poderia prosseguir. Na Europa e nos EUA a percentagem de trabalhadores sindicalizados passou para menos de um terço do que era há uns 30 ou 40 anos. Enquanto isto, as desigualdades e os lucros do grande capital não pararam de crescer. Em Portugal sucessivas revisões da legislação laboral – com o apoio do divisionismo sindical – levaram a que 75% dos trabalhadores com menos de 25 anos e 62% entre os 25 e os 34 anos tenham vínculos laborais precários. Contudo o patronato da CIP não permite (é o termo) que as alterações ao Código do Trabalho introduzidas em 2012, pela direita no tempo da troika, sejam alteradas. Mas se foram e são, como dizem, fundamentais para favorecer a competitividade das empresas, não se percebe como a BC apresenta um défice de 30,3 mil milhões de euros.
O índice de criminalidade, a pobreza, a população presa e as gritantes desigualdades nos EUA são um indicador da disfuncionalidade, mesmo da desintegração de um sistema que tem de ser substituído. Face ao "Império do caos" criado pelo imperialismo , o socialismo tornou-se mais necessário que nunca, porque de facto: "um outro capitalismo não é possível".
As questões tecnológicas são um problema social e de estratégia económica, uma questão de soberania e não uma questão privada e tecnocrática, no sentido de maximizar o lucro capitalista, particularmente o transacional. Em suma, uma questão do planeamento económico democrático, assegurando o desenvolvimento independente com o estudo, criação e adoção das técnicas mais adequadas aos recursos humanos e materiais do país e, sim, verdadeiramente sustentável.
Uma posição consequente de esquerda, de princípios marxistas, integrará o sistema científico-técnico no planeamento dos sectores produtivos, numa estratégia de benefícios sociais.
Sem a compreensão da realidade dada pelo materialismo dialético a vida torna-se tão incompreensível como disse Hamlet: “life is a tale told by an idiot and meaning nothing”.